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CENA IX
CAMÕES,
CAMINHA
CAM. — (entrando). Discreteáveis com alguém,
ao que parece...
CAMÕES
—
É verdade.
CAM. — Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi
logo que era o nosso poeta, de quem tratava há pouco com
alguns fidalgos. Sois o bem-amado, entre os últimos de Coimbra.
─
Com que, discreteáveis... Com alguma dama?
CAMÕES
—
Com uma dama.
CAM. — Certamente formosa, que não as há de outra
casta nestes reais paços. Sua Alteza, cuido que continuará, e
ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pai. Damas
formosas, e, quanto possível, letradas. São estes, dizem, os
bons costumes italianos. E vós, Senhor Camões, por que não
ides a Itália?
CAMÕES
—
Irei a Itália, mas passando por África.
CAM. — Ah! ah! para lá deixar primeiro um braço, uma
perna, ou um olho... Não, poupai os olhos, que são o feitiço
dessas damas da corte; poupai também a mão, com que nos haveis
de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupeis...
CAMÕES. — Uma palavra, Senhor Pedro de Andrade, uma
só palavra, mas sincera.
CAM. — Dizei.
CAMÕES
— Dissimulais algum outro pensamento.
Revelai-mo... Intimo-vos que mo reveleis.
CAM. — Ide à Itália, Senhor Camões, ide à Itália.
CAMÕES
—
Não resistireis muito tempo ao que vos
mando.
CAM. — Ou à África, se o quereis... ou a Babilónia...
A Babilónia é melhor; levai a harpa ao desterro, mas em vez de
a pendurar de um salgueiro, como na Escritura, cantar-nos-eis
a linda copla da galinha, ou comporeis umas outras voltas ao
mote, que já vos serviu tão bem:
Perdigão perdeu a pena,
Não
há mal que lhe não venha.
Ide a Babilónia, senhor Perdigão!
CAMÕES
—
(pegando-lhe no pulso). Por vida
minha, calai-vos!
CAM. — Vede o lugar em que estais.
CAMÕES
—
(solta-o). Vejo; vejo também quem
sois; só não vejo o que odiais em mim.
CAM. — Nada.
CAMÕES
—
Nada?
CAM. — Coisa nenhuma.
CAMÕES
—
Mentis pela gorja, senhor camareiro.
CAM. — Minto? Vede lá; ia-me deixando arrebatar,
ia conspurcando com alguma vilania esta sala de El-rei.
Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós?
─
Pode ser que sim, porque eu creio que efectivamente vos odeio,
mas só há um instante, depois que me pagastes com uma injúria
o aviso que vos dei.
CAMÕES
—
Um aviso?
CAM. — Nada menos. Queria eu dizer-vos que as
paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas.
CAMÕES
—
Não serão; mas eu as farei caladas.
CAM. — Pode ser. Essa dama era...
CAMÕES — Não reparei bem.
CAM. — Fizestes mal; é prudência reparar nas damas;
prudência e cortesia. Com que, ides à África? Lá estão os
nossos em Mazagão, cometendo façanhas contra essa canalha de
Mafamede; imitai-os. Vede, não deixeis lá esse braço, com que
nos haveis de calar as paredes e os reposteiros. É conselho de
amigo.
CAMÕES — Por que seríeis meu amigo?
CAM. — Não digo que o seja; o conselho é que o é.
CAMÕES — Credes, então?...
CAM. — Que poupareis uma grande dor e um maior
escândalo.
CAMÕES — Percebo-vos. Imaginais que amo alguma dama?
Suponhamos que sim. Qual é o meu delito? Em que ordenação, em
que rescrito, em que bula, em que escritura, divina ou humana,
foi já dado como delito amarem-se duas criaturas?
CAM. — Deixai a corte.
CAMÕES. — Digo-vos que não!
CAM. — Oxalá que não!
CAMÕES
—
(à parte). Este homem... que há
neste homem? lealdade ou perfídia? (Alto.) Adeus,
Senhor Caminha. (Pára no meio da cena). Por que não
tratamos de versos?... Fora muito melhor...
CAM. — Adeus, Senhor CAMÕES. — (CAMÕES sai).
CENA X
CAMINHA,
logo D. CATARINA DE ATAÍDE
CAM. — Ide, ide, magro poeta de camarins... (Desce
ao proscénio.) Era ela, decerto, era ela que aí estava com
ele, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh
temeridade do amor! Do amor? ele... ele... Mas seria ela
deveras?... Que outra podia ser?
D. CAT. — (espreita e entra). Senhor...
senhor!
CAM. — Ela!
D. CAT. — Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e
peço-vos que não nos façais mal. Sois amigo de meu pai, ele é
vosso amigo; não lhe digais nada. Fui imprudente, fui, mas que
quereis? (Vendo que CAMINHA não diz nada.) Então? falai...
poderei contar convosco?
CAM. — Comigo? (D. CATARINA, inquieta e aflita,
pega-lhe na mão; ele retira-lha com aspereza.) Contar
comigo! Para quê, minha senhora D. Catarina? Amais um mancebo
digno, porque vós o amais... muito, não?
D. CAT. — Muito!
CAM. — Muito! Muito, dizeis... E éreis vós que
estáveis aqui, com ele, nesta sala solitária, juntos um do
outro, a falarem naturalmente do céu e da terra... ou só do
céu, que é a terra dos namorados. Que dizíeis?...
D. CAT. — (baixando os olhos). Senhor...
CAM. — Galanteios, galanteios de que se há-de falar
lá fora... (Gesto de D. CATARINA) Ah! Cuidais que estes
amores nascem e morrem no paço? Não; passam além; descem à rua,
são o mantimento dos ociosos, e ainda dos que trabalham,
porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que
se há de ocupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com
que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava,
porque não podia talvez ser outra... E confessais que lhe
quereis muito. Muito?
D. CAT. — Pode ser fraqueza; mas crime... onde está
o crime?
CAM. — O crime está em desonrar as cãs de um nobre
homem, arrastando-lhe o nome por vielas e praças; o crime está
em escandalizar a corte, com essas ternuras, impróprias do
alto cargo que exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o
crime. E parece-vos pequeno?
D. CAT. — Bem; desculpai-me, não direis nada...
CAM. — Não sei.
D. CAT. — Peço-vo-lo... de joelhos até... (Faz um
gesto para ajoelhar-se, ele impede-lho).
CAM. — Perdereis o tempo; eu sou amigo de vosso pai.
D. CAT. — Contar-lhe-eis tudo?
CAM. — Talvez.
D. CAT. — Bem mo diziam sempre; sois inimigo de
CAMÕES.
CAM. — E sou.
D. CAT. — Que vos fez ele?
CAM. — Que me fez? (Pausa.) D. Catarina de
Ataíde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só a
sua soberba que me afronta; fosse só isso, e que me importava
um frouxo cerzidor de palavras, sem arte, nem conceito?
D. CAT. — Acabai.
CAM. — Também não é porque ele vos ama, que eu o
odeio; mas vós, Senhora D. Catarina de Ataíde, vós o amais...
eis o crime de CAMÕES. — Entendeis?
D. CAT. — (depois de um instante de assombro).
Não quero entender.
CAM. — Sim, que também eu vos quero, ouvis?
─
E quero-vos muito... mais do que ele, e melhor do que ele;
porque o meu amor tem o impulso do ódio, nutre-se do silêncio,
o desdém o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor...
D. CAT. — Calai-vos! Pela Virgem, calai-vos!
CAM. — Que me cale? Obedecerei. (Faz uma
reverência.) Mandais alguma outra coisa?
D. CAT. — Não, ficai. Jurai-me que não direis coisa
nenhuma.
CAM. — Depois da confissão que vos fiz, esse pedido
chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei
tudo a vosso pai. Não sei se a acção é má ou boa: sei que vos
amo, e que detesto esse rufião, a quem vadios deram foros de
letrado.
D. CAT. — Senhor! É demais!...
CAM. — Defendei-lo, não é assim?
D. CAT. — Odiai-o, se vos apraz; insultá-lo, é que
não é de cavaleiro...
CAM. — Que tem? O amor desprezado sangra e fere.
D. CAT. — Deixai que lhe chame um amor vilão.
CAM. — Sois vós agora que me injuriais. Adeus,
senhora D. Catarina de Ataíde! (Dirige-se para o fundo).
D. CAT. — (tomando-lhe o passo). Não! Agora
não vos peço... Intimo-vos que vos caleis.
CAM. — Que recompensa me dais?
D. CAT. — A Vossa consciência.
CAM. — Deixai em paz os que dormem. Não vos peço
nada. Quereis que vos prometa alguma coisa? Uma só coisa
prometo; não contar a vosso pai o que se passou. Mas, se por
denúncia ou desconfiança, for interrogado por ele, então lhe
direi tudo. E duas vezes farei bem:
─
não faltarei à verdade, que é dever de cavaleiro; e depois...
chorareis lágrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a
ver-vos sorrir. A vossa angústia será a minha consolação. Onde
falecerdes de pura saudade, aí me glorificarei eu. Chamai-me
agora perverso, se o quereis, eu respondo que vos amo... e que
não tenho outra virtude. (Vai a sair, encontra-se com D.
FRANCISCA DE ARAGÃO; corteja-a e sai).
CENA XI
D.
CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO
D. FRA. — Vai afrontado o nosso poeta. Que terá ele?
(Reparando em D. CATARINA.) Que tendes vós?... que foi?
D. CAT. — Tudo sabe.
D. FRA. — Quem?
D. CAT. — Esse homem. Achou-nos nesta sala; eu tive
medo; disse-lhe tudo.
D. FRA. — Imprudente!
D. CAT. — Duas vezes imprudente; deixei-me estar ao
lado do meu Luís, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão
apaixonadas... e o tempo corria... e podiam espreitar-nos...
Credes que o Caminha diga alguma coisa a meu pai?
D. FRA. — Talvez não.
D. CAT. — Quem sabe? Ele ama-me.
D. FRA. — O Caminha?
D. CAT. — Disse-mo agora. Que admira? Acha-me
formosa, como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para
não ser feliz, para ser amada às ocultas, odiada às
escâncaras, e, talvez... Se meu pai vier a saber... que fará
ele, amiga minha?
D. FRA. — O senhor D. António é tão severo!
D. CAT. — Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o
castigue, que o encarcere, não? E por minha causa... Não;
primeiro irei eu... (Dirige-se para a porta da direita).
D. FRA. — Onde ides?
D. CAT. — Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se
para a porta da esquerda) Vou ter com a rainha;
contar-lhe-ei tudo; ela me amparará. Credes que não?
D. FRA. — Creio que sim.
D. CAT. — Irei, ajoelhar-me-ei a seus pés. Ela é
rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Sai pela esquerda).
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