Acesso à hierarquia superior.

João Paulo Freire e Carlos de Passos, Mafra, Col. Monumentos de Portugal, nº 1, Porto, Ed. Litografia Nacional, 1933

OS PÁRA-RAIOS (1)

O processo empregado pelos franciscanos arrábidos para se defenderem dos raios era o do tangimento do sino de Santa Bárbara, geral na época. Crentes na virtude milagrenta do mesmo, com ele, precisamente, facilitavam os perigos de que procuravam defender-se.

Quanto era irreal essa virtude experimentaram-no eles com a queda de quatro raios, no período de 1717 a 65. Caiu o 1.º em 1717 e o 2.º, em 1731, ambos sem estragos. Em certa noite de 1740 trovejava. Nas torres 8 donatos ocupavam-se piamente em fazer dobrar os sinos grandes para afugentar os raios. De repente, sobre a do sul passou uma nuvem electrizada e explodiu sobre ela com estampido e clarão horríveis. Os donatos, envoltos em chamas, fugiram espavoridamente. Um, porém, ficou assombrado, sem mais dano. A torre ficou indemne.

O de 18-02-1765 foi o pior. Caiu no zimbório e tão violentamente que fez tombar pessoas que passavam no largo. O lanternim ficou muito prejudicado. Pedras de arrobas, dele arrancadas, foram projectadas a grande distância e as lascas na igreja caídas chegaram para carregar 20 carros. Caso singular: nada sofreram a cruz, os ornatos e a pedra-chave do zimbório. Os reparos fizeram-nos, depois, os cónegos.

Em 4-XII-1772 caiu na torre do norte o 5.º, já o convento / 90 /  estava na posse dos cónegos. Tinham eles proibido o toque dos sinos em ocasiões de trovoada, o que desagradou ao povo. Trovejou certo dia e dois homens subiram à torre e puseram-se a badalar o sino de Santa Bárbara. Caiu um raio, mas os sineiros escaparam sem dano.

Notável foi o 6.º pelos estragos causados na igreja e nas pessoas, caído em 19-III-1786. Era dia festivo e a igreja estava cheia. Dobravam e repicavam os sinos, apesar de trovejar. Entraram dois raios na torre do sul, desceram à igreja e ao vestíbulo, com grandes estragos. Ficaram feridas muitas pessoas. Na capela-mor dois cónegos, revestidos de pluviais de seda, sofreram muitas queimaduras.

Neste mesmo ano preservaram os cónegos o convento com uma instalação de pára-raios, havida a licença régia, sendo encarregado da mesma D. Joaquim da Assunção Velho, sócio da Real Academia de Ciências de Lisboa e cónego do convento. Foram estes os 1.os pára-raios colocados em Portugal.

Duma barca espanhola naufragada em Peniche se aproveitou o metal para sua feitura. Eram 17, distribuídos pelo zimbório, pelas torres, pelos torreões e corpos do edifício. Todavia, uma trovoada de 1844 foi tão violenta que certa descarga, no zimbório, inutilizou o cabo condutor. Com outra, em 1855, o pára-raios rebentou.

Feita a instalação, em dia de trovoada subiu aos terraços D. Joaquim Velho com um frade leigo. Tremia este apavoradamente a cada ribombo. As explicações das leis físicas que lhe propinava o cónego, segundo as quais um raio devia forçosamente cair nalgum dos aparelhos, não o sossegavam. Num dado momento, para justificar o seu manifesto temor, obtemperou-Ihe: Creio tudo e não tenho medo, mas receio que venha um raio estúpido, que não saiba as leis da física, e, caindo sobre nós, nos despedace.

Saberia o leigo o que acontecera ao célebre Richmann?

Se não sabia, certo é que o frade era homem prudente e de bom humor.

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(1) Extracto do artigo de J. da Conceição Gomes publicado em O Instituto de 1882 e, depois, em A Vida Moderna, de 1-VI-1888. Este artigo baseou-se todo na memória de D. Joaquim da Assumpção Velho publicada no vol. I da colecção História e Memórias da Academia, sob o título Observações físicas por ocasião de seis raios que caíram sobre o real edifício de Mafra.

 
 

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