Acesso à hierarquia superior.

João Paulo Freire e Carlos de Passos, Mafra, Col. Monumentos de Portugal, nº 1, Porto, Ed. Litografia Nacional, 1933

MAFRA - SUA ANTIGUIDADE E SEU VALOR HISTÓRICO

AGRUPAMENTO de treze freguesias, abrangendo a área de 27.083 hectares e uma população de 25.000 almas, constitui o concelho de Mafra. A vila, cabeça comarcã, à lonjura de 40 kms de Lisboa, não logra elementos de interesse para os forasteiros, exceptuada a igreja de Santo André, orago local. Ao convento, um dos maiores e mais notáveis monumentos da Europa, em especial pela basílica, deve importância e nomeada(1). Da sua fundação promanou o desdobramento da vila, que se compõe de duas partes distintas, ligadas por duas rampas – a velha(2), erecta à volta das muralhas do castelo(3), e a nova(4), germinada e desenvolvida à sombra do convento.

Tem assento, a nova, num lugar ventoso e frio, de paisagem árida, feia, cuja tristonha monotonia grandemente reduz a tapada / 10 / conventual. Lembra uma cova a posição da velha, visto a rodearem, à distância, os montes da Vela, da Vermelha, do Sunível e outros(5), o que, segundo a tradição, firmada pelo notável arabista Frei João de Sousa, em fins de setecentos, provocou o nome do povoado. Afirmou ele(6) que Mafra procedia do árabe Mahfara, termo correspondente a cova. Ora, no voto do Prof. David Lopes, o mais ilustre dos nossos arabistas, não se justifica a origem do onomástico Mafra nem pela etimologia nem pelas formas antigas; além disso o valor de cova, expresso pelo frade, menos se comprova, visto que o h de Mahfara devia transformar-se em t, tal sucedeu no antigo alfifar, da mesma raiz, e em mahmude, donde saiu Mafamude. É, pois, admissível o crer na fantasia de Frei João, coadjuvada quer pela configuração topográfica quer pelo remoto povoamento do sítio, nele compreendido o dos moiros.

Activo e amplo foi ao sul do Mondego o domínio sarraceno; onde subsiste um copioso toponímico a relembrá-lo (Alpanel, Almeirim, Alvarinhos, Alfara, Almada, Arrifana, Alcainça, Alqueidão, Almograve), embora falhem os elementos arqueológicos. Alvitrou-se, até, que no chão da igreja de Santo André se levantasse a mesquita, do que Estácio da Veiga, investigador exímio da região, discordava.

Todavia, a muito antes ascende a povoação destes lugares. Dos tempos romanos achou o dito arqueólogo um cemitério, o de Lexim, com onze sepulturas exploradas e outras já destruídas, apesar do que ainda recolheu várias armas de ferro, um bronze e moedas de Tibério e Teodósio I. Dos pré-históricos, além do topónimo Antas, nas proximidades, aproveitou ele machados de pedra polida (as pedras de raio, na crença do povo) e descobriu grutas curiosas(7).

Importante era o castelo de Mafra entre as defensivas atalaias de Lisboa e Aires de Sá o reputou como local estratégico por godos e árabes escolhido para entendimentos com os postos / 11 / fronteiros às Berlengas e ao castelo de Sintra. Logo, seria natural que despertasse os apetites conquistadores de Afonso Henriques, demais que na marcha para Lisboa, após o haver empolgado Santarém, a táctica prudente efectivava de se apoderar dos castelos e fortificações intermediários(8).

Em 1146 os moiros perderam Mafra; daí até 1193 manteve-se na posse da Coroa(9). Neste ano a cedeu, com seus termos, à freiria de Évora(10), cujo mestre era Gonçalo Viegas(11), o senhor D. Sancho I e a doação confirmou em 1218 Afonso II ao mestre D. Fernando(12).

Ignora-se até quando a guardou a freiria, mas julga-se que tenha revertido à Coroa no tempo de Afonso III. Por um escambo / 12 / de 1289, feito entre D. Dinis e D. Maria Annes de Aboim(13), renovado em 1301, averigua-se o ser já propriedade régia; pelo dito recebeu Maria Annes a vila de Mafra em troca da sua vila de Portel, com todos os direitos reais. Com esta dama principia o domínio particular, que se extinguiu com o último marquês de Ponte de Lima(14). Logo, deve ser falso também o foral outorgado em 1304 por D. Dinis, porquanto isso constituiria uma violação do contrato e dos direitos senhoriais(15).

Curiosas eventualidades continuaram a experimentar o senhorio de Mafra. De Maria Annes, na falta de geração, passou para o sobrinho-neto D. Diogo Afonso de Sousa(16), igualmente herdeiro da Ericeira e Enxara de Cavaleiros. Recebeu-o depois Lopo Dias de Sousa(17), o filho primogénito, que, sem geração, o legou ao irmão Álvaro Dias de Sousa(18), cuja viúva, a célebre D. Maria Teles(19), tão formosa quão dissipadora, foi obrigada, mau grado os seus bastos cabedais e o fruir as rendas da Ordem de Cristo(20), que não contentavam a sua louca ostentação, a vendê-lo, com a Ericeira e a Enxara, para pagar à irmã, a ainda mais célebre Leonor Teles, / 13 / o empréstimo feito por esta para a trasladação do marido. Um primo deste, Gonçalo Rodrigues de Sousa, foi o comprador. Todavia, por ao serviço de Castela haver passado, o mestre de Avis confiscou-lhe as terras e concedeu-as a D. Lopo Dias de Sousa, filho de Álvaro Dias de Sousa e Maria Teles.

De lícita progénie inibia-o a dignidade do mestrado de Cristo; como compensação deixou a ilegítima representação de nove filhos, dos quais herdou Mafra, em dote paterno, Leonor de Sousa, que em 1.ªs núpcias casou com Fernão Martins Coutinho. A filha, Brites Coutinho, foi mulher de D. Pedro de Menezes, 1.º conde de Vila Real e 2.º de Viana; deles nasceu Isabel Coutinho e com ela casou D. Fernando de Vasconcelos(21). Sucedeu-lhes o filho D. Afonso de Vasconcelos e Menezes, 1.º conde de Penela (mercê de Afonso V), cuja mulher foi Isabel da Silva(22). Sem geração morreu o primogénito, D. João de Vasconcelos e Menezes, 2.º conde de Penela, de modo que Mafra passou às mãos do irmão terceiro D. António de Vasconcelos (o 2.º também falecera). Em 1633 igualmente morre sem geração D. João Luís de Vasconcelos, filho de D. António. Ficava Mafra sem dono. Porém, outro D. João Luís de Vasconcelos, capitão-general de Mazagão(23), dela se apossou, não sem haver de aguentar demandas com vários pretendentes. Do seu casamento com D. Maria de Noronha(24) nasceu D. Joana de Vasconcelos e Menezes, que em 2.ªs núpcias foi mulher de D. Diogo de Lima Brito Nogueira, 8.º visconde de Vila Nova de Cerveira. Por sentença régia de 1648 ficou-lhe pertencendo a vila / 14 / de Mafra; era o fecho das contendas provocadas pelo acto de pilhagem do pai. Desta sorte na casa dos viscondes de Cerveira, depois marqueses de Ponte de Lima, ficou incorporado o senhorio de Mafra. Na vila velha construíram o seu palácio, comprido casarão setecentista, modesto, sem relevo artístico, no qual apenas as varandas extremas e do centro são guarnecidas com frontões triangulares. No interior, os salões foram divididos em quartos pela conveniência dos novos proprietários.

Brutamente abandonada, confrangedoramente arruinada, jaz a igreja de Santo André, antiga matriz e belo exemplar do gótico primário, da transição dos séculos XIII e XIV, afim das igrejas de Atouguia da Baleia e S. Francisco de Alenquer. Todavia, raros a visitam.

Foi dela prior o célebre papa João XXI, Pedro Julião ou Hispano, médico, astrólogo e autor da 1.ª Lógica da península.

Abre-a um portal românico, saliente, de três arquivoltas ogivais – a 1.ª e 3.ª cingidas por toros e chanfrada a 2.ª – assentes em capiteis ornados com motivos vegetais e providos de ábacos. No lado sul ergue-se outro portal do mesmo tipo, sendo, porém, chanfrada a 1.ª arquivolta.

Rematam as paredes da nave cornijas apoiadas em cachorros singelos, de perfil côncavo e amparam-nas rudes botaréus.

É de planta pentagonal, com lados iguais, a capela-mor. Com os da nave emparelham os seus gigantes e cachorros.

Dela irrompem os algerozes, mascarados nas bocas. Ao norte rasga-a uma janela gótica, mainelada.

A torre, coberta com cúpula piramidal, tem a planta quadrada.

Colunas monolíticas dividem o corpo em três naves, de quatro tramos as laterais, cobertas com abóbadas de barrete de clérigo ou arco de claustro. Nas suas capelas existiam recentemente alguns azulejos moçárabes.

Assenta o arco triunfal, ogivado e de três arquivoltas, de aresta viva a do meio e toradas as laterais, em colunas pentagonais. Tanto nestas como nos capitéis há vestígios de pinturas. Um óculo orbicular, análogo a alguns do norte, sobreposto ao arco, ilumina a nave.
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Fecha a capela-mor uma abóbada de cruzaria gótica, firmada em colunas, cujos capitéis ostentam ornatos vegetais, do tipo românico. Rudes são as suas nervuras, abraçadas por eixos lavrados vegetalmente. Motivos românicos, flores estilizadas e uma suástica de 18 raios, adornam os fechos. Tal não surpreende, diz Virgílio Correia, visto a decoração bizantina perdurar até ao pleno naturalismo gótico. Enchia a parede fundeira um belo retábulo de talha seiscentista, mofinamente desaparecido.

Regista-se na igreja uma estupenda e abominável violação das sepulturas, cujas ossadas se encontram dispersas e a monte numa cova. À direita da nave ficam dois grandes túmulos de liós, nos quais, adverte a tradição, é perigoso mexer, sob risco de desgraça. Pertencem aos antigos senhores de Mafra Diogo Afonso de Sousa e Violante Lopes Pacheco. São, pois, do século XIV. Nas faces das arcas vêem-se os respectivos brasões; uma faixa aberta de folhas estilizadas rodeia as tampas, angulares.

Estes donatários ofereceram à igreja uma bela cruz processional, de cristal e prata dourada. Ainda existe, guardada no Museu. Alguns a localizaram no século XV. Procede, porém, do XIV, segundo o atestam os brasões dos doadores.

Há alguns anos arbitrariamente se executaram na igreja obras de restauro. Melhor seria não lhe terem mexido pelo que de mau realizaram. É velha balda nacional a de cada um, sem estudo e inteligência, julgar que a um tempo desbanca os sete sábios da Grécia.

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NOTAS

(1) – Embora a visita compense os enfados originários do mau serviço de transportes, por  falha de justas ligações, preferível seria não os suportar.

(2) – Até à hora da magnânima loucura joanina não passou de pobre e mesquinho vilar, limitado a umas cem casas.

(3) – Há longo tempo destruído. Erguer-se-ia a torre, talvez, nas cercanias da igreja de Santo André, cujos restos devem subsistir nos paredões dos quintais sobranceiros à rua das Tecedeiras, assim como os do castelo.

(4) – Cujo titulo legítimo é o de vila e não vila nova, contra o uso geral.

(5) – Pelo norte e oeste, porém, fica descoberta.

(6) – Vestígios da Língua Arábica em Portugal.

(7) – Antiguidades de Mafra.

(8) – Na Crónica del-rei D. Afonso Henriques assim no-lo diz Duarte Nunes de Leão: «E porque lhe pareceo (ao rei) melhor conselho antes de a cerquar (Lisboa) tomar os lagares do redor para se delles valer e os inimigos terem menos socorro logo tomou o castelo de Mafora e o deu a... Depois cercou o castelo de Cintra e o tomou...».

(9) – É erróneo o assento de Patrocínio Ribeiro – o de Afonso Henriques a ter doado a D. Fernão Rodrigues Monteiro.

(10) – Em 1166 e em Évora fundou Afonso Henriques esta ordem militar, após Geraldo Sem Pavor ter conquistado aos moiros a dita cidade. Regia-se pela regra de S. Bento, da reforma de Cister, e era dependente da de Calatrava (a). Em 1211 mudou para Avis, cujo nome tomou (b); em 1213 libertou-se do senhorio de Calatrava, embora esta ficasse até 1436 com o direito de visitação.

(a) Supôs-se, por vários documentos não aludirem a tal dependência, que esta não existiu nos 1.ºs tempos. Ora Rui de Azevedo prova-a em As origens da Ordem de Évora ou de Avis (In História, n.º 4), demonstra nelas o ter sido filial de Calatrava a freiria de Évora. No entanto, é certo que tinha completo carácter nacional, pois lograva mestres próprios e portugueses, O qual até reconheceu uma bula de Inocêncio III, de 1201.

(b) Conquanto André Resende afirme que esteve em Évora até ao tempo de Afonso III.

(11) – Foi este o 1.º donatárlo de Mafra e o 1.º mestre da freiria de Évora e não o dito D. Fernão Rodrigues Monteiro.

(12) – Consta: 1.º – Em 1189 a doou D. Sancho ao bispo de Silves, D. Nicolau; 2.º – este bispo outorgou-lhe foral em 1190. O foral já está reconhecido como obra de invenção, o que permite suspeitar-se da nova doação ao bispo, à qual apenas se refere Brandão, na Monarchia Lusitana. Diz ele que no cartório de Santa Cruz de Coimbra a viu; ora no livro de doações do mosteiro, guardado na Torre do Tombo, não está ela inclusa. Assim Aires de Sá discutiu o problema.

Demais, é pouco aceitável que D. Sancho em 1193 concedesse o castelo à freiria e em 1189, a vila ao bispo, como alguns pretendem. Porque essa distinção entre vila e castelo? E porque haviam de ser dois os donatários de Mafra  – um com jurisdição civil e religiosa, com a militar o outro? Para mor esclarecimento ver Rui de Azevedo, op. cit.

(13) – Filha de João de Aboim, dos Nóbregas e Viegas de Riba Doiro, companheiro e amigo de Afonso Henriques e construtor do castelo de Portel. O escambo determinou-o à razão política, pois ao rei convinha a posse de PorteI.

(14) – Morto sem geração, ficando, assim, abolido o título, que não pode ter renovação legítima.

(15) – Unicamente João Baptista de Castro, no Mapa de Portugal, o menciona. É escassa e mesquinha a prova, tanto mais que na Torre do Tombo não existe o menor vestígio desse foral. Autêntico, porém, o de 1513, de D. Manuel.

(16) – Neto bastardo de Marina Pires, moura, talvez escrava, de quem Afonso lII houve o bastardo D. Afonso Dinis (tronco da notável casa de Sousa).

De tal modo, como Aires de Sá expõe, o dito D. Diogo foi senhor da terra em que a avó paterna fora vassala. Tanto ele como a mulher, D. Violante Lopes Pacheco, tiveram sepultura na igreja de Santo André, cujos túmulos ainda existem.

Aventa Aires de Sá que ao facto de nestes lugares terem florido os amores de Afonso lII e Marina Pires, a qual conhecera na Enxara de Cavaleiros, em dia de caça ou de excursão militar, se poderá atribuir o regresso de Mafra à Coroa. O rei devia estimá-los de grande.

(17) – Em sérias pugnas se envolveu com o almirante Manuel Pezagno, ao qual contestava o direito de obrigar os homens da Ericeira a servir nas galés del-rei.

(18) – Refugiado em Espanha e lá falecido. Com suas graças o brindava uma dama da predilecção de Pedro I. Tal descobriu o rei, mas a tempo fugiu Álvaro Sousa.

(19) – De joelhos em terra lhe falavam os vassalos.

(20) – Como administradora do filho menor, a quem pertencia o mestrado.

(21) – Filho de D. Afonso, senhor de Cascais, este filho ilegítimo do infante D. João, e neto de João I.

(22) – Filha do 1.º conde de Abrantes.

(23) – Trineto bastardo do 2.º conde de Penela e filho de D. Afonso de Vasconcelos e Menezes (3.º do nome, pois houve mais dois iguais), falecido em 1634. Morreu em Mazagão e em 1648, da queda dum cavalo. Foi trasladado e sepultado no Varatojo.

(24) – Filha herdeira de Fernão Álvares Cabral e D. Joana de Carvalhosa, o qual era filho de João Gomes Cabral e D. Brites de Barros, neto paterno de Fernão Álvares Cabral e Margarida Coutinho (ou de Castro, nome da mãe) e bisneto de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil. Este Fernão, filho de Pedro Álvares, teve ainda uma filha (morta s. g.), à qual uns genealogistas chamam Brites e outros Maria de Noronha. Ao ilustre genealogista António Machado de Faria devemos graças pelos seus amáveis esclarecimentos.

 

 

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