Dulce da Cruz Vieira, Estudo/aprendizagem do vocabulário nos estudos iniciais do Latim, In: separata das actas do «III Colóquio Clássico», Univ. Aveiro, 1999.

 

«Com estas palavras tão roídas
por toda a gente,
- como querem que eu faça
poesia só minha

de sangue inocente?»

 

São de J. G. Ferreira (Poesia V) estes versos; e, posto a sua mensagem seja distinta e específica, devo confessar que me têm ocorrido à mente vezes e vezes, de há anos, observando o aflitivo e frenético desempenho de alguns — muitos — estudantes de Latim aquando, sobretudo, da prestação de provas escritas integrando um texto latino cuja compreensão e tradução se solicita.

Da mesma forma, as tarefas em torno da tradução em contexto de classe permitem constatar a profunda lacuna de que são portadores os nossos alunos, mesmo em fase mais avançada dos seus estudos, ao nível do conhecimento do léxico latino. É este um factor desmotivante, pois que, além do mais, onera, em termos de esforço e de tempo, qualquer tentativa de compreensão de um texto. 

Não será mesmo excessivo admitir-se que alguns alunos, conhecendo razoavelmente a morfologia e a sintaxe latinas, incorrem, por vezes, em momentos cruciais, em dificuldades e frustrações motivadas pela insuficiência do “corpus” vocabular que puderam apreender.

Torna-se então imperativo que as actividades em redor da lexicologia e da semântica — um tanto descuradas — entrosem, com a morfologia e a sintaxe, os objectivos de todas as aulas ou da sua maioria e sejam consideradas com a mesma continuada solicitude que se consagra àqueles outros componentes dos estudos linguísticos; e assim desde o início e sempre: “ab ouo” e "ad mala”. Tenho em vista um trabalho dinâmico, continuado e escorado na reflexão, um percurso orientado que pode transformar-se num excelente recurso de motivação para a disciplina; é útil em termos imediatos e em direcções várias; é imprescindível, porque uma língua não se realiza - logo não pode estudar-se - parcelarmente.

Por outro lado, - e de novo peço vénia aos poetas, agora a Eugénio de Andrade, para relembrar:

São como um cristal
As palavras.
Algumas, um punhal,
Um incêndio
Outras
Orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória
Inseguras navegam
...................................
E, mesmo pálidas,
Verdes paraísos lembram ainda.

«São como um cristal / as palavras» e «vêm ... cheias de memória» a revelar, no seu próprio itinerário, o milenar itinerário do homem, na busca incessante do seu espaço face aos outros homens e aos demais seres viventes, enfim dos seus elos com o mundo que lhes vai servindo de berço e de túmulo: as suas crenças, os seus medos, anseios, padrões, esquemas familiares, sociais, políticos. E as palavras latinas, quantas delas! ensinam, “ab imis fundamentis” o roteiro desse percurso em relação ao povo que as foi “roendo”. Temas da cultura e da civilização dos Romanos que os programas contemplam explicitamente - e outros que acontece ocorrerem no decurso das actividades lectivas - podem encontrar na observação da etimologia e da evolução semântica de palavras-chave um motivante centro de interesse. A descoberta torna aliciante a aprendizagem e mais duradoiro e útil o conhecimento. 

Concretizo, exemplificando: 

Os substantivos pater, ris ”o pai" e mater, ris "a mãe” são termos de uso recorrente nas aulas a partir de dado momento do primeiro ano de frequência de Latim.

São conhecidos dos alunos e ambos possuem um vasto e interessante leque de derivadas dos quais apenas importa, neste contexto, considerar patrimonium, ii, matrimonium, ii e um adjectivo derivado de pater: patrius, a, um. A análise do conteúdo semântico destes vocábulos é bastante elucidativa. Vejamos: matrimonium, ii designa o casamento propriamente dito, que reconhecia à mulher os seus direitos como mãe — a participação na praxis educativa dos filhos, a dignidade e a nobreza da matrona "mãe de família", detentora de um conjunto notável de atributos que dela faziam a companheira ideal, a guardiã fiel das tradições e valores da família; enquanto isto, patrimonium, iidesigna “os bens da família”, o património familiar, isto é, os bens do pai, que cabia ao pater administrar na condição de dono absoluto. Quanto a patrius, a, um, o sufixo esclarece o significado: “pertencente ao pai, como chefe da família”. Por patria potestas entendia-se a autoridade paterna; a expressão patrium ius et potestas designava os direitos e a autoridade do pai. O equivalente, linguisticamente possível, *matrius, a, um não existe, simplesmente. Curioso e significativo, ao considerarmos a organização da família romana, a sua extensão da gens até à ciuitas como célula modelar da organização da sociedade romana em termos sociais, económicos religiosos e políticos.

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