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Artigos Publicados


Barcas Novas

de Fiama Hasse Pais Brandão

In: “Letras e Letras”, n.º 81, 21 de Outubro de 1992

 

 

O livro “Barcas Novas” de Fiama Hasse Pais Brandão (Editora Ulisseia, 1967) é um curioso livro cuja temática incide sobre episódios bem conhecidos da nossa história, não para constituir mais uma perspectiva sobre os mesmos mas para problematizar a história moderna e nessa conjectura é um livro engagé aparecendo como alternativa ao que então faziam os poetas que se reivindicavam do movimento neo-realista (ou cujas opções estéticas se enquadravam no neo-realismo; ou se não era uma alternativa, apontava pelo menos uma saída possível para alguns dos impasses com que se debatia o movimento.

O livro passa em revista o início da nossa arte de navegar a partir de um conhecido poema de Joam Zorro, poema que dá o nome ao livro, mas também à batalha de Aljubarrota, o drama de Alcácer-Quibir, a memória dos nossos mortos, o assassinato de Inês de Castro, o cerco de Lisboa.

São alusões a episódios que marcaram de algum modo o nosso viver colectivo e que servem de contraponto aos desastres que uma política suicida nos havia de conduzir nos anos 60 com o envio de milhares de soldados para a guerra colonial (em termos literários, Fiama usa-os para reflectir o momento presente; de algum modo, poder-se-á dizer que os poemas que constituem este livro funcionam, na sua globalidade, como uma metonímia).

O poema de Joam Zorro é feito, como era comum ao tempo, na base de tercetos com repetição do 3º verso de cada estrofe e era endereçado à mia Senhor velida; o poema de Fiama utiliza um ritmo ainda mais simples na base de dípticos com uso da anáfora e da rima toante e dirige-se ao leitor e não já a uma criatura especial (é um convite à reflexão; tem, portanto, funções didácticas).

O vocabulário é num poema e noutro fortemente substantivo e em grande parte comum aos dois.

No quadro junto pode ver-se a distribuição dos vocábulos e a sua frequência nos dois poemas.

 

 

Substant.

 

 

Adjectiv.

 

 

Formas

verbais

 

Zorro

Fiama

 

Zorro

Fiama

 

Zorro

Fiama

Armas

-

5

Novas

4

6

Deitar

1

-

Barcas

4

6

Velida

4

-

Fazer

2

-

Guerra

-

3

 

 

 

Lavrar

2

5

Homens

-

4

 

 

 

Levar

-

1

Lisboa

2

3

 

 

 

Mandar

6

5

Mar

3

4

 

 

 

Meter

1

1

Senhor

4

-

 

 

 

São mandadas

-

2

 

 

 

 

 

 

Lavradas de armas

-

2

 

 

 

 

 

 

Lavradas de homens

-

1

 

Vejamos a distribuição dos substantivos: Lisboa, mar e barcas aparecem nos dois poemas como pano de fundo que é comum às duas situações: a partida das primeiras naus (séc. XII-XIII) e a partida dos militares para as colónias (1960-1974).

Mas, ainda a nível de substantivos, aparecem no poema de Fiama outros vocábulos: armas, homens, guerra e terra, necessários para caracterizar uma situação que é completamente diferente daquela a que alude Zorro e até contraditória. Em Zorro fala-se de um início e em Fiama de um final (ou, pelo menos, do início de um final).

Quanto aos adjectivos, eles são quase inexistentes: novas e velida no poema de Zorro e novas no poema de Fiama. Curiosamente, novas qualifica sempre barcas excepto num caso em que qualifica armas (Fiama, último verso).

Esta pequena subtileza mostra bem que Fiama nos fala de um outro tipo de barcas com características e, sobretudo, funções diferentes.

Em relação aos verbos, há também algumas particularidades nas quais vale a pena atentar.

Três verbos são comuns aos dois poemas: lavrar, mandar e meter.

Mandar e meter têm significação idêntica nos dois poemas mas lavrar pode aparecer com mais do que um sentido.

Assim, lavrar no poema de Zorro significa construir (...) barcas novas mandei lavrar (...). No poema de Fiama lavrar pode significar: trabalhar a terra (...) as armas não lavram terra (...) ou (...) não lavram terra com armas (...) mas também ter uma utilização metafórica para aludir à guerra (Lisboa tem barcas / agora lavradas de armas (...) ou (...) Lisboa tem barcas novas / agora lavradas de homens (...) ou ainda (...) mandaram as barcas / novas lavradas de armas (...).

No poema de Zorro, os verbos aparecem conjugados no pretérito perfeito perifrástico e na 1ª pessoa: mandei lavrar (v.2 e 7), mandei fazer (v.5 e 10), mandei deitar (v.8), mandei meter (v.11).

Em Fiama, o presente e o passado complementam-se para aludir a acontecimentos que são já históricos e que continuam a fazer a história: Lisboa tem barcas (v.1 e 3), levam guerra (v.5), não lavram terra (v.6 e 11) para o presente e mandaram meter (v.13), mandaram as barcas (v.15) para o passado, expressões de dois tempos definidos às quais se deve acrescentar: ao mar mandadas (v.8), são mandadas (v.9 e 18), expressões que dão a ideia de continuidade e que ligam passado e presente, sempre na 3ª pessoa; isto é, o autor é, neste caso, um simples observador, não toma parte na acção ao contrário do que acontecia em Zorro.

Quanto ao poema Sebastião Rei, apenas duas anotações: o poema é todo construído sobre dípticos com rima toante e o emprego sistemático das negações não e nem ao longo do poema para caracterizar a figura do rei louco. (...) Não chegou de manto / nem com lenço e pranto / (...). A excepção dos últimos dois versos é significativa. (...) perdeu arraiais / e tendas de pano /; é, obviamente, a afirmação de uma derrota.

Em Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota, Fiama socorre-se mais uma vez de um processo que era comum nos poetas medievais: a repetição encadeada a partir de um núcleo relativamente reduzido de palavras.

Vejamos: são dez os substantivos mais frequentes: amor (aparece três vezes), arma(s) (oito vezes), campo(s) (três vezes), casa (três vezes), mão(s) (seis vezes), mesa (quatro vezes), mortos (quatro vezes), pão (cinco vezes), paz (três vezes) e repouso (três vezes).

Por outro lado, as formas verbais mais frequentes são as dos verbos aguardar (três vezes), pôr (três vezes) e repousar (cinco vezes).

Pode dizer-se que existe uma dialéctica entre dois conjuntos de vocábulos (ver quadro), um conjunto que aponta no sentido do amor e da paz (amor, casa, mão(s), mesa, pão) (coluna 1) e um outro que a este se contrapõe e simboliza a guerra (campo e mortos) (coluna 2).

 

Coluna 1

Coluna 2

amor

 

arma de amor

 

arma de paz

arma

arma de mão

 

 

campo

casa

 

mão(s)

 

mesa

 

 

mortos

pão

 

em repouso

sem repouso

 

A estes dois conjuntos há que acrescentar dois vocábulos cuja função é polivalente: arma que tanto pode aparecer no primeiro conjunto (arma de amor, arma de paz, arma de mão) como no segundo conjunto e repouso (em repouso no primeiro conjunto e sem repouso no segundo conjunto).

Estes dois vocábulos estabelecem a ponte entre os dois conjuntos antitéticos.

Em Estando Lisboa cercada por El Rei de Castela, Fiama dá mais uma vez essa antinomia vida/morte por uma alternância dos vocábulos moça e morto que aparecem sempre no 2º verso das estrofes do poema 2 ao mesmo tempo que o verbo cantar produz a imbricação necessária para a ligação dos dois temas (Cantando dentro o amor / moça // Quisera El-Rei ao cantar / morto...).

O poema 3 do mesmo título emprega ainda um refrão, um díptico, E mais seriam / se fossem mais que pela sua carga fonética, pela sua força onomatopeica e pelo seu emprego alternado muito ajuda à construção de um ritmo adequado à acção de Sete cavalos altos / (que) correram sete corridas.

Quanto ao poema Inês de manto, desenvolve-se este em torno do pranto pela morte de Inês e dos símbolos da sua importância: manto, trono, espaldar, veludo, cinto, firmal de ouro, brocado.

Não é de um vulgar assassinato que se trata mas sim de liquidar uma certa amante do futuro rei; é um acto político antecedido de uma fria planificação em que está envolvido o próprio rei (“malhas que o império tece”). Também aqui, Fiama nos dá, com uma grande sobriedade, o drama que haveria de pesar na história portuguesa e haveria de se cobrir de uma indiscutível carga mitológica.

Os poemas restantes: Crónicas, As covas e Os usos não são mais do que a abordagem do registo deixado pelos muitos acidentes, pelas muitas vicissitudes que o país sofreu. E se isto era verdade para um tempo passado, objecto de crónicas, a verdade é que há alusões  no poema de Fiama a um tempo presente (o da década de 60).

Repare-se como no poema Crónicas, Fiama alude ao aproveitamento desses mortos, desses desastres junto dos governantes do tempo e que por caminhos ínvios vinham caucionar uma política de suicídio colectivo (como já atrás se disse) (...há uma maneira segura / de utilizar os feitos / para efeito de futura / vida ou sítio).

Mas há outros registos, igualmente soturnos e nocturnos, As covas, por exemplo, onde se enterram os homens que morreram (em nome de quê?) (A história tem os sinais / o rumor demais / as covas o pálio / o pátio dos mortos (...).

O terceiro registo é o do poema Os usos.

Os usos são o eco da vida das populações, uns antigos, invariáveis, ajudam a estabilizar a pirâmide social (Os usos / para quem os sonda / são costume / fios de fuso / a que remonta / a maneira de os usar...), outros, recentes, condicionados pelos novos tempos e com os quais se promovem os ajustamentos necessários para as novas relações (...Os outros já flexíveis / são os usos / que o novo costume estuda / que o entalhador afia / enquanto muda / a vida).

Já passaram 25 anos desde que, pela primeira vez, li este livro.

Relê-lo, agora, em 1992, não constitui apenas um prazer (o prazer de ler); foi também a possibilidade que tive de confirmar a minha primeira opinião sobre a importância desta obra.

Creio que havia neste livro algumas pistas para uma literatura “engagée” no melhor sentido que não chegou a ser retomada nem mesmo pela autora. Mas isso não é, certamente, o essencial do livro. O importante é que ele ficou como uma referência desses conturbados tempos dos anos 60, conturbados mas esperançosos como não são, provavelmente, os de hoje. Para isso também serve a literatura: dar testemunho, balizar a história e a cultura.

Luís Serrano, Out. 1992. 

 


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