O livro “Barcas Novas” de Fiama
Hasse Pais Brandão (Editora Ulisseia, 1967) é um curioso livro cuja
temática incide sobre episódios bem conhecidos da nossa história,
não para constituir mais uma perspectiva sobre os mesmos mas para
problematizar a história moderna e nessa conjectura é um livro
engagé aparecendo como alternativa ao que então faziam os poetas que
se reivindicavam do movimento neo-realista (ou cujas opções
estéticas se enquadravam no neo-realismo; ou se não era uma
alternativa, apontava pelo menos uma saída possível para alguns dos
impasses com que se debatia o movimento.
O livro passa em revista o início
da nossa arte de navegar a partir de um conhecido poema de Joam
Zorro, poema que dá o nome ao livro, mas também à batalha de
Aljubarrota, o drama de Alcácer-Quibir, a memória dos nossos mortos,
o assassinato de Inês de Castro, o cerco de Lisboa.
São alusões a episódios que
marcaram de algum modo o nosso viver colectivo e que servem de
contraponto aos desastres que uma política suicida nos havia de
conduzir nos anos 60 com o envio de milhares de soldados para a
guerra colonial (em termos literários, Fiama usa-os para reflectir o
momento presente; de algum modo, poder-se-á dizer que os poemas que
constituem este livro funcionam, na sua globalidade, como uma
metonímia).
O poema de Joam Zorro é feito, como
era comum ao tempo, na base de tercetos com repetição do 3º verso de
cada estrofe e era endereçado à mia Senhor velida; o poema de Fiama
utiliza um ritmo ainda mais simples na base de dípticos com uso da
anáfora e da rima toante e dirige-se ao leitor e não já a uma
criatura especial (é um convite à reflexão; tem, portanto, funções
didácticas).
O vocabulário é num poema e noutro
fortemente substantivo e em grande parte comum aos dois.
No quadro junto pode ver-se a
distribuição dos vocábulos e a sua frequência nos dois poemas.
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Substant. |
|
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Adjectiv. |
|
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Formas |
verbais |
|
Zorro |
Fiama |
|
Zorro |
Fiama |
|
Zorro |
Fiama |
Armas |
- |
5 |
Novas |
4 |
6 |
Deitar |
1 |
- |
Barcas |
4 |
6 |
Velida |
4 |
- |
Fazer |
2 |
- |
Guerra |
- |
3 |
|
|
|
Lavrar |
2 |
5 |
Homens |
- |
4 |
|
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Levar |
- |
1 |
Lisboa |
2 |
3 |
|
|
|
Mandar |
6 |
5 |
Mar |
3 |
4 |
|
|
|
Meter |
1 |
1 |
Senhor |
4 |
- |
|
|
|
São
mandadas |
- |
2 |
|
|
|
|
|
|
Lavradas
de armas |
- |
2 |
|
|
|
|
|
|
Lavradas
de homens |
- |
1 |
Vejamos a distribuição dos
substantivos: Lisboa, mar e barcas aparecem nos dois poemas como
pano de fundo que é comum às duas situações: a partida das primeiras
naus (séc. XII-XIII) e a partida dos militares para as colónias
(1960-1974).
Mas, ainda a nível de substantivos,
aparecem no poema de Fiama outros vocábulos: armas, homens, guerra e
terra, necessários para caracterizar uma situação que é
completamente diferente daquela a que alude Zorro e até
contraditória. Em Zorro fala-se de um início e em Fiama de um final
(ou, pelo menos, do início de um final).
Quanto aos adjectivos, eles são
quase inexistentes: novas e velida no poema de Zorro e novas no
poema de Fiama. Curiosamente, novas qualifica sempre barcas excepto
num caso em que qualifica armas (Fiama, último verso).
Esta pequena subtileza mostra bem
que Fiama nos fala de um outro tipo de barcas com características e,
sobretudo, funções diferentes.
Em relação aos verbos, há também
algumas particularidades nas quais vale a pena atentar.
Três verbos são comuns aos dois
poemas: lavrar, mandar e meter.
Mandar e meter têm significação
idêntica nos dois poemas mas lavrar pode aparecer com mais do que um
sentido.
Assim, lavrar no poema de Zorro
significa construir (...) barcas novas mandei lavrar (...). No poema
de Fiama lavrar pode significar: trabalhar a terra (...) as armas
não lavram terra (...) ou (...) não lavram terra com armas (...) mas
também ter uma utilização metafórica para aludir à guerra (Lisboa
tem barcas / agora lavradas de armas (...) ou (...) Lisboa tem
barcas novas / agora lavradas de homens (...) ou ainda (...)
mandaram as barcas / novas lavradas de armas (...).
No poema de Zorro, os verbos
aparecem conjugados no pretérito perfeito perifrástico e na 1ª
pessoa: mandei lavrar (v.2 e 7), mandei fazer (v.5 e 10), mandei
deitar (v.8), mandei meter (v.11).
Em Fiama, o presente e o passado
complementam-se para aludir a acontecimentos que são já históricos e
que continuam a fazer a história: Lisboa tem barcas (v.1 e 3), levam
guerra (v.5), não lavram terra (v.6 e 11) para o presente e mandaram
meter (v.13), mandaram as barcas (v.15) para o passado, expressões
de dois tempos definidos às quais se deve acrescentar: ao mar
mandadas (v.8), são mandadas (v.9 e 18), expressões que dão a ideia
de continuidade e que ligam passado e presente, sempre na 3ª pessoa;
isto é, o autor é, neste caso, um simples observador, não toma parte
na acção ao contrário do que acontecia em Zorro.
Quanto ao poema Sebastião Rei,
apenas duas anotações: o poema é todo construído sobre dípticos com
rima toante e o emprego sistemático das negações não e nem ao longo
do poema para caracterizar a figura do rei louco. (...) Não chegou
de manto / nem com lenço e pranto / (...). A excepção dos últimos
dois versos é significativa. (...) perdeu arraiais / e tendas de
pano /; é, obviamente, a afirmação de uma derrota.
Em Poema para a padeira que estava
a fazer pão enquanto se travava a batalha de Aljubarrota, Fiama
socorre-se mais uma vez de um processo que era comum nos poetas
medievais: a repetição encadeada a partir de um núcleo relativamente
reduzido de palavras.
Vejamos: são dez os substantivos
mais frequentes: amor (aparece três vezes), arma(s) (oito vezes),
campo(s) (três vezes), casa (três vezes), mão(s) (seis vezes), mesa
(quatro vezes), mortos (quatro vezes), pão (cinco vezes), paz (três
vezes) e repouso (três vezes).
Por outro lado, as formas verbais
mais frequentes são as dos verbos aguardar (três vezes), pôr (três
vezes) e repousar (cinco vezes).
Pode dizer-se que existe uma
dialéctica entre dois conjuntos de vocábulos (ver quadro), um
conjunto que aponta no sentido do amor e da paz (amor, casa, mão(s),
mesa, pão) (coluna 1) e um outro que a este se contrapõe e simboliza
a guerra (campo e mortos) (coluna 2).
Coluna 1 |
Coluna 2 |
amor |
|
arma de amor |
|
arma de paz |
arma |
arma de mão |
|
|
campo |
casa |
|
mão(s) |
|
mesa |
|
|
mortos |
pão |
|
em repouso |
sem repouso |
A estes dois conjuntos há que
acrescentar dois vocábulos cuja função é polivalente: arma que tanto
pode aparecer no primeiro conjunto (arma de amor, arma de paz, arma
de mão) como no segundo conjunto e repouso (em repouso no primeiro
conjunto e sem repouso no segundo conjunto).
Estes dois vocábulos estabelecem a
ponte entre os dois conjuntos antitéticos.
Em Estando Lisboa cercada por El
Rei de Castela, Fiama dá mais uma vez essa antinomia vida/morte por
uma alternância dos vocábulos moça e morto que aparecem sempre no 2º
verso das estrofes do poema 2 ao mesmo tempo que o verbo cantar
produz a imbricação necessária para a ligação dos dois temas
(Cantando dentro o amor / moça // Quisera El-Rei ao cantar /
morto...).
O poema 3 do mesmo título emprega
ainda um refrão, um díptico, E mais seriam / se fossem mais que pela
sua carga fonética, pela sua força onomatopeica e pelo seu emprego
alternado muito ajuda à construção de um ritmo adequado à acção de
Sete cavalos altos / (que) correram sete corridas.
Quanto ao poema Inês de manto,
desenvolve-se este em torno do pranto pela morte de Inês e dos
símbolos da sua importância: manto, trono, espaldar, veludo, cinto,
firmal de ouro, brocado.
Não é de um vulgar assassinato que
se trata mas sim de liquidar uma certa amante do futuro rei; é um
acto político antecedido de uma fria planificação em que está
envolvido o próprio rei (“malhas que o império tece”). Também aqui,
Fiama nos dá, com uma grande sobriedade, o drama que haveria de
pesar na história portuguesa e haveria de se cobrir de uma
indiscutível carga mitológica.
Os poemas restantes: Crónicas, As
covas e Os usos não são mais do que a abordagem do registo deixado
pelos muitos acidentes, pelas muitas vicissitudes que o país sofreu.
E se isto era verdade para um tempo passado, objecto de crónicas, a
verdade é que há alusões no poema de Fiama a um tempo presente (o
da década de 60).
Repare-se como no poema Crónicas,
Fiama alude ao aproveitamento desses mortos, desses desastres junto
dos governantes do tempo e que por caminhos ínvios vinham caucionar
uma política de suicídio colectivo (como já atrás se disse) (...há
uma maneira segura / de utilizar os feitos / para efeito de futura /
vida ou sítio).
Mas há outros registos, igualmente
soturnos e nocturnos, As covas, por exemplo, onde se enterram os
homens que morreram (em nome de quê?) (A história tem os sinais / o
rumor demais / as covas o pálio / o pátio dos mortos (...).
O terceiro registo é o do poema Os
usos.
Os usos são o eco da vida das
populações, uns antigos, invariáveis, ajudam a estabilizar a
pirâmide social (Os usos / para quem os sonda / são costume / fios
de fuso / a que remonta / a maneira de os usar...), outros,
recentes, condicionados pelos novos tempos e com os quais se
promovem os ajustamentos necessários para as novas relações (...Os
outros já flexíveis / são os usos / que o novo costume estuda / que
o entalhador afia / enquanto muda / a vida).
Já passaram 25 anos desde que, pela
primeira vez, li este livro.
Relê-lo, agora, em 1992, não
constitui apenas um prazer (o prazer de ler); foi também a
possibilidade que tive de confirmar a minha primeira opinião sobre a
importância desta obra.
Creio que havia neste livro algumas
pistas para uma literatura “engagée” no melhor sentido que não
chegou a ser retomada nem mesmo pela autora. Mas isso não é,
certamente, o essencial do livro. O importante é que ele ficou como
uma referência desses conturbados tempos dos anos 60, conturbados
mas esperançosos como não são, provavelmente, os de hoje. Para isso
também serve a literatura: dar testemunho, balizar a história e a
cultura.
Luís Serrano,
Out. 1992.
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