1.Voltar ao contacto do poeta F.
Echevarría é, naturalmente, um privilégio. E o pretexto é simples:
tecer alguns comentários sobre o seu livro Figuras (Edições
Afrontamento, 1987).
Trata-se de um curioso e bem
conseguido livro de poesia; curioso a vários títulos e desde logo
porque esta poesia se assume como forma de pensar, isto é, em que o
acto de pensar constitui o pretexto para a escrita poética
continuando uma tradição onde poderíamos situar alguns dos maiores
poetas portugueses (Camões, Antero, Pessoa, Jorge de Sena, entre
outros).
Nele se reúnem 105 poemas
distribuídos por 3 partes: Figuras I (17 poemas), Figura (22 poemas)
e Figuras II (66 poemas).
O número preferido de versos por
poema é 14 (42 poemas) embora sejam frequentes os poemas de 12
versos (23 poemas) e de 10 versos (14 poemas) totalizando 75%. Os
restantes 25% têm de 6 a 20 versos.
Os poemas mais frequentes, os de 14
versos, podemos subdividi-los em sonetos propriamente ditos (versos
decassilábicos com uma estrutura de 2 quadras e 2 tercetos ou num
caso de 3 quadras e 1 dístico à maneira inglesa) e são em número de
21. A estes devem acrescentar-se 3 poemas com a estrutura de soneto
mas em que os versos são heptassílabos. Finalmente, deve referir-se
a existência de 18 poemas de 14 versos mas cuja estrutura não é a do
soneto e apresentando os seus versos um número variável de sílabas;
a estes poderemos chamar-lhes, à falta de melhor designação, falsos
sonetos.
O facto de F. Echevarría
privilegiar o soneto (tendência já existente em livros anteriores)
não deixa de ser interessante pois que essa preferência já se
encontrava nos autores acima citados (se, é claro, exceptuarmos
Pessoa) e vem pôr em realce não estar ainda esgotada esta tão antiga
forma, introduzida entre nós, como se sabe, por Sá de Miranda.
F. Echevarría subverte, obviamente,
o soneto clássico dando-lhe uma grande flexibilidade e adaptando-o
assim, às necessidades da poesia deste final de século.
2.São vários os processos
utilizados por este poeta. Sublinharia desde já a existência de um
vocabulário nuclear razoavelmente frequente e constituído pelas
palavras: brisa, velhice (e formas do verbo envelhecer), figura(s),
lugar, luz, paz, pensamento, silêncio, sítio, solidão, tempo,
triste(za) e vento a que se pode ainda acrescentar antiguidade,
rosto, ondeação, enigma. Chegam a aparecer 5, 6 e até 7 destas
palavras, juntas, no mesmo poema.
Em torno destes vocábulos se
constrói um discurso poético, um diálogo entre Figura e Figuras,
entre a unidade e a diversidade, entre o poeta e os outros, discurso
onde tem uma especial importância o acto de pensar e de conhecer,
conhecimento que é sobretudo decorrente do acto de ver (são inúmeras
as alusões à visão) e que tem por objectivo a decifração do enigma:
[...] Tem aquela / enigmática luz que se diria / insondável altura
de tristeza / prestes a revelar o enigma. [...] (p. 113).
Esse acto de conhecer,
simultaneamente sensorial e racional, simples e complexo, adquire,
por vezes, contornos quase epicuristas, com o homem no centro do
Universo e as coisas (as figuras) a passarem por ele:
Como é triste, ou alegre, ou outra
coisa,
sermos esse lugar pando de vento
em que passam figuras, luminosas
nomeações. Que fazem pensamento
desse lugar [...] (p. 9)
Outras vezes é o próprio acto de
pensar que é surpreendido pelo poeta como nesse belíssimo soneto da
p. 15;
Surge no vidro o jeito / cometido
que sublinha / o rosto de paz perfeito / pousado na mão, que vinha /
sustentar o grave peso / de pensar. [...]
ou no poema da p. 39:
[...] É no que pensa. E o que pensa
move / a organização mais íntima / de ser. (...)
Outras ainda, a observação do real
é tão atenta que leva à decomposição do movimento, num processo
analítico que nos lembra a técnica romanesca de alguns escritores da
chamada école du regard; veja-se a este título o soneto da p. 18:
Move uma perna. E o lugar terminal
/ onde vier pousar o calcanhar / a luz do movimento, que ilumina /
profundidade estrita de assentar (...)
Poesia decantada em que o poeta nos
dá a ver o real, refractado por discretos filtros, transmitindo-nos
sem concessões a irreversível passagem do tempo, o inevitável
envelhecimento, as suas marcas sobre um rosto, com aquele delicado
pudor de quem sabe moderar ou controlar a emoção:
Entramos pela zona de velhice / em
que começa a iluminar-se o vento (...) (p.77)
ou
(...)Estamos indo. E a levar atrás
/ a ampliação atónita do tempo // (p. 38)
Esta passagem do tempo parece ser
aqui reforçada e em grande parte traduzida pela palavra vento (e/ou
vento+brisa) cuja fluidez poderia muito bem substituir rio, mais
comum na tradução do carácter diacrónico da vida. Note-se que
vento+brisa aparecem em conjunto 31 vezes.
Parece-nos pertinente relembrar
aqui dois versos do poema da p. 42:
A velhice é um vento que nos toma /
no seu halo feliz de ensombramento [...]
Grande importância parecem assumir
para o poeta as referências espaciais que de um modo muito claro
estabelecem a ligação ao real; estas são traduzidas por duas
palavras (lugar e sítio) que no seu conjunto nos aparecem 34 vezes.
Veja-se a propósito o poema da p.
60:
Então lugar é ir indo / por onde a
íntima convocação do trono / rege a sonolência implícita dos
círculos / com que voamos para onde somos//
ou o da p. 62:
Lugares há em que o vento / se
torna imóvel./
como se as coordenadas espaciais
condicionassem a relatividade do tempo (e não condicionam?).
De todos os vocábulos é, apesar de
tudo, luz o mais frequente (46 vezes) pois é a luz que ilumina e não
há visão (e, portanto, conhecimento) sem ela:
Estamos a olhar para quando / não
mais veremos o que agora vê / estarmos a olhar. E ficamos / rodeados
da luz de estar a ver. (p. 111)
E isso é verdade mesmo quando a
hora da morte se aproxima:
Mas ter a luz tão triste é quase
estrela, / pacificação (p. 113)
De resto, é a luz que simboliza a
vida, a salvação, a felicidade acordadas por Deus segundo o Antigo
Testamento (1).
Ousaria dizer que há na poesia de F.
Echevarría (ou pressente-se) um sentimento de paraíso perdido que se
traduz em vários poemas pela presença de vocábulos retirados da vida
simples do meio rural como animais, arado, bois, campos, enxada,
enxúndia, gleba, lavoura, lavração, ribeiros, rincões, etc. (poemas
das páginas 95, 98, 102, por exemplo). Assim:
(...)a paz espalhava pelos campos
dentro / memória de crianças pensativas / que puxavam os bois (...)
(p. 102)
Sobre este paraíso perdido reflecte
o poeta com alguma tristeza e em alguma solidão mas envolto num
silêncio criativo, numa atmosfera de paz com que procura certamente
compensar o “desconcerto do mundo”.
3.Porque é que sentimos atracção
por esta poesia? Eu creio que tal atracção se deve ao facto de o
autor ter sido capaz de encontrar a linguagem mais adequada aos
temas e ao mesmo tempo o ritmo próprio que faz pulsar o poema.
Quando este equilíbrio é conseguido, então (e por maioria de razão),
forma e conteúdo são, realmente, duas faces de uma mesma realidade
(digo, unidade), fundidas e confundidas.
Para conseguir esse equilíbrio, o
poeta serviu-se de uma série de tropos e eu permitir-me-ia destacar
alguns: a anáfora e a aliteração directamente ligadas ao ritmo e à
qualidade musical do poema, a anástrofe ou inversão e finalmente a
metáfora como processo imagético e analógico.
Anáfora – São raros os poemas onde
não intervém esta figura. Ela impõe um ritmo e ajuda a reforçar uma
ideia. A repetição ocorre com frequência mais do que uma vez e,
regra geral, é mais concisa a repetição do que o sintagma original.,
Alguns exemplos:
p. 9 – Como é triste ou alegre, ou
outra coisa (linha 1) (...)
Como é triste ou alegre. (linha 9)
p. 11 – Recua docemente (linha 1)
(...)
Recua (linha 5)
p. 15 – Surge no vidro o jeito
(linha 1) (...)
Surge no vidro (linha 9)
p. 53 – Ao longe, o ritmo
crepuscular das águas (linha 1) (...)
Ao longe, o ritmo crepuscular (linha 7)
Outras vezes, a anáfora
apresenta-se simultaneamente com inversão
p. 45 – E vemos estar a ouvir
(linha 2) (...)
Estar a ouvir tem a alma (linha 9)
Aliteração – Apenas dois exemplos
ao acaso:
(...) não é nossa. Não é dela /
Alua-se em sua mão // (p. 15) (...)
(...) como um campo recente de
centeio (p.16)
Anástrofe ou inversão – O emprego
deste tropo leva a um afastamento em relação ao discurso mais comum,
o do quotidiano, permitindo a obtenção de efeitos de grande beleza.
Algumas das construções de Echevarría lembram as alterações na ordem
do discurso produzidas por Jorge de Sena em Fidelidade. Veja-se este
exemplo retirado do soneto da p. 88:
(...) E, enquanto entra, um cântico
de brisa / lembra quanto por campos foi outrora / tempo apagando a
sua face lisa, // qual se alisando, se apagasse, a hora. /
Metáfora (e imagens, s. l.) – Há-as
belíssimas e eu diria que F. Echevarría tem um indiscutível bom
gosto, não apenas ao criá-las mas também ao reduzi-las a um número
mínimo (aquele que a economia da obra impõe), evitando os cachos de
metáforas a que não resistem alguns poetas e que em muitos casos
apenas servem para elas se neutralizarem umas às outras na sua
função polissémica.
Não é o caso, repita-se. Citem-se
alguns poucos exemplos para que o leitor se dê conta desse bom
gosto:
(...) O grave peso / de pensar
(...) (p. 15)
A velhice é um vento (...) (p. 42)
(...) E a velhice nos ilumina o
vento. (p. 42)
(...) o ritmo crepuscular das águas
(...) (p. 53)
A luz dos animais sobe da negra /
solidão que os estrutura (...) (p. 55)
(...) de aí o halo de douração que
envolve / a lavoura do rosto. (p. 79)
Era seu pensamento / uma estrondosa
escadaria de águas. (p. 87)
São muitos os recursos de que F.
Echevarría se serve para a elaboração dos seus poemas a que, de
resto, deve dizer-se, já nos tinha habituado, sobretudo a partir do
seu livro “Sobre as Horas” que a Moraes Editores tinha dado a
público em 1963 e que constitui, a nosso ver, um salto qualitativo
muito importante na sua obra.
Trata-se, obviamente, de uma poesia
inspirada mas também fortemente oficinal cujo pendor apolíneo é
determinante. O seu segredo e a sua alta qualidade residem, creio
eu, numa sábia dosagem dos recursos estilísticos postos em jogo.
Dessa alta qualidade fique o
testemunho do soneto da p. 15:
Surge no vidro o jeito
comedido que sublinha
o rosto de paz perfeito
pousado na mão, que vinha
sustentar o grave peso
de pensar. Mas sempre aberto,
com todo o seu dentro aceso
à ondeação do deserto.
Surge no vidro. E assente
a estarmos a vê-la ausente
e na sua perfeição.
Mas a luz de estar a vê-la
não é nossa. Não é dela.
Alua-se em sua mão.
CHEVALIER, J. – e GHEERBRANT, A. –
Dictionnaire des Symboles, Paris, Seghers, 1973, v. 3.
Luís Serrano,
Out. 1991.
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