Transire ou transitar, passar de um lugar a outro, eis um
título, desde já sugestivo porque apontando para um livro de
viagens (e é-o seguramente), aponta também para o carácter efémero
da nossa passagem (pelo mundo, já se vê).
A obra é precedida de um prefácio de 15 páginas da
autoria de António Pedro Pita e intitula-se Onde está o livro
das falas esquecidas? – Ensaio de releitura da obra de poética de
António Augusto Menano e passa a ser um trabalho de referência
sobre a evolução da escrita poética do autor.
A obra foi galardoada com o Prémio Nacional de Poesia
Sebastião da Gama 2001.
Os poemas incidem, curiosamente, sobre uma série de
lugares mediterrânicos se exceptuarmos Londres e Bordéus (Itália,
Grécia, Sul de Espanha, Portugal, Sul de França, Egipto). Isto
pressupõe, à partida, a importância que para o poeta assumem
estes lugares míticos onde se desenvolveu a civilização que, mau
grado alguns aspectos negativos, é ainda a nossa referência, é
ainda para nós motivo de orgulho.
Logo no primeiro poema Galáxia de sangue, António
Augusto Menano nos aborda falando da grande divisão do mundo que
foi acordada através do Tratado de Tordesilhas (1494); a assinatura
desse acordo teve lugar num palácio sito em Tordesilhas (pequena
cidade próxima de Valladolid) e que ao tempo da escrita deste poema
estava transformado em asilo de velhos. Este poema é um misto de
recordações e de contradições onde luz e sombra se misturam (barroco
/ di luce e di ombri) ou como em Quando estás mais longe /
estás mais perto,.
Em três poemas italianos (referem-se a Milão, Florença
e Vaticano), o poeta aproveita os faits divers do quotidiano
para dialogar com as grandes obras de arte (a catedral de Milão, símbolo
do gótico flamejante, o Baptistério de Florença, a Pietá do
Vaticano) e fá-lo com uma linguagem despida, ascética, como se
recusasse esse barroco a que fazia referência no primeiro poema. Um
exemplo desta contenção e desta elegância (digamos assim): Estar
em Milão em Setembro à tarde/ é assim como sentir, na pele, a
sombra/ e o silêncio (...).
Quase todos os poemas foram escritos, não nos locais
visados mas muito longe deles. É o que acontece com Praça de S.
Marcos escrito em Macau. Creio que não é por acaso que há
neste poema uma chamada para os vários órgãos dos sentidos, tão
forte é a impressão que nos causa a cidade de Veneza com o seu Palácio
dos Doges e a sua Basílica de S. Marcos, que as nossas percepções
se intersectam ou interferem umas com as outras (Um pássaro de
asas azuis... A orquestra toca Vivaldi, / é doce beber café...
passeamos o olhar e o corpo/ no poder gasto pelos anos.
Há referências muito significativas ao branco, à cal,
à luz como também aos velhos mitos (Ariadne, o Minotauro), às
oliveiras porque de tudo isso é feita a nossa cultura e o nosso
entendimento com o mundo. E de repente o poeta abandona estes espaços
para falar de Portugal, da serra do Buçaco onde o verde é apenas
uma explosão de clorofila como que a contrapor-se à aridez da Grécia
ou do Sul de Espanha. (Há, sempre, o verde./ Confirma, nos
olhos,/ distâncias suspensas no tempo.// Quem fez estes minutos,/
de sons e musgo,/ vozes no húmus refrescadas? Permito-me chamar
a atenção do leitor para a grande contenção dos versos
transcritos onde é possível distinguir, não apenas a obsessão do
olhar, mas também o ouvido que sinaliza de uma forma exemplar a
passagem do tempo.
Dois poemas dedica António Menano a Buarcos, povoação
onde reside; sente-se o sentimento da nostalgia de quem muito viu e
viveu neste espaço tão belo e de algum modo se revê nalgumas
imagens que recorda e termina (p.52) escrevendo estes versos
dolorosos: Em barcos ancorados,/ frente à muralha, guarda-se a
morte do tempo. De facto para o poeta e certamente para muitos
pescadores (eventualmente seus antigos colegas nas brincadeiras da
meninice) um certo tempo já morreu.
Regressa ao Mediterrâneo em Espelho, poema muito
belo escrito na Tunísia, onde há cabras debaixo do calcário,/
poços secos (...).
Mas
Portugal reaparecerá uma vez mais, agora na forma daqueles que
partiram para as Franças e araganças à procura do pão que não
encontravam no seu país. E eu vi-os às centenas nos bairros pobres
de Bordéus.
E o livro acaba com O Terraço no Rio, escrito em
Banguecoque e terminado 12 anos depois em Buarcos. Deve ter sido um
poema difícil de escrever pois o poeta, ele próprio, se refere
fundamentalmente a uma paleta de cores, a uma necessidade de
transformar a realidade em pintura e não em poema (Na mão trago
o sabor de tintas várias) mas nada disso (quero dizer a
representação) impede que o poeta confesse a sua ignorância (Já
não sei se sei se aquilo que digo/ é o acre sabor, da face da
morte.)
Curiosamente, o poema e o livro fecham com estes três
versos lapidares e significativos: Regresso sempre ao lugar onde
nasci,/ aos lençóis brancos,/ ao terraço onde adormeço a ouvir o
vento.
É uma edição Minerva Coimbra 2003 e representa o que de
melhor escreveu este nosso amigo e regular colaborador do Região
Bairradina.
Luís Serrano, Março 2004.
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