Este é o sétimo livro de António Barbedo, poeta que é
também médico psiquiatra. Há nele (no livro, entenda-se) uma
regularidade que não parece ser devida ao acaso, quer no número de
poemas por cada uma das seis partes onde encontramos esta sequência:
8-6-6-8-8-3, quer no número de versos por poema. Apenas a última
parte (Três Sábados) contém apenas 3 poemas o que é de algum
modo compensado por um número maior de versos por poema (13, 11 e
14, respectivamente). De uma maneira geral os poemas são constituídos
por um número reduzido de versos (em média e por parte 5, 4, 7, 5,
8 e 13) lembrando alguns os conhecidos haikai japoneses.
Esta regularidade traduz uma grande preocupação de rigor
e de contenção conseguindo comprimir em pouquíssimas palavras um
pensamento, um instantâneo, um acontecimento, um gesto do
quotidiano.
O título sugere-nos a referência a um lugar (o lugar
onde está situada a árvore) e a um tempo, um tempo que se repete
(o sábado, dia de descanso). A árvore não é uma apenas, há
referências a várias: o diospir(eiro), a buganvília, a japoneira,
o cedro, o tulipeiro. A todas elas está subjacente uma ideia que é
a ideia de árvore. Ora, como se sabe, a árvore assume
simbolicamente as duas vertentes, a feminina e a masculina. Pela sua
ligação à terra através das raízes, ela adquire um carácter
matricial, feminino, portanto; pela sua posição erecta, vertical,
ela transforma-se num símbolo fálico, masculino. Uma tal
ambiguidade casa bem com a linguagem poética que é, por natureza,
ambígua, polissémica ou plurissignificativa.
Leia-se a título de exemplo o primeiro poema da obra: O
sol / varre as folhas vermelhas / afasta a teia os ramos / envolve o
diospiro / e o estorninho // o sol enfermo de Dezembro.
Estamos claramente num dia de inverno mas há sol e esse
sol é o motor de tudo o que é dito no poema através de um
processo metafórico que se socorre do verbo varrer. É o sol
débil de Dezembro (que) varre as folhas vermelhas, (que) afasta
a teia, (que) afasta os ramos, (que) envolve o
diospiro, (que) envolve o estorninho. E tudo isto é dito
com muito menos palavras do que as que eu tive de usar para dar
alguma explicitação ao poema (de resto escusada). E é neste poder
de contenção que reside o segredo desta poesia: simples, luminosa,
transparente.
A segunda parte do livro As Mãos de Argila refere
aquilo que fez do homem um ser à parte: aquilo a que chamamos
civilização resulta fundamentalmente do poder transformador da mão.
(É a mão que) Molda em barro preto / o cinzeiro / para pousar
moedas pétalas secas
como se diz logo no primeiro poema desta segunda parte.
Chamo de novo a atenção do leitor para o carácter ascético desta
poesia. Não há aqui concessões a certos efeitos fáceis tão do
agrado de certos poetas e que, parafraseando Alexandre O’Neill, são
o pão-de-ló dos tolos.
Na terceira parte De Outro Modo reúnem-se poemas
que remetem para “O Elogio da Loucura”, evento que decorreu no
Hospital do Conde de Ferreira no âmbito do “Porto 2001” e é
constituída por 6 poemas. De Refúgio de Baltazar Torres
retiro estes dois versos belíssimos: A poesia é um lugar / onde
se chega ao anoitecer.
Da quarta parte Área de Serviço destaco o poema Roda
de Escape que pode perfeitamente ser visto como uma metáfora do
conhecimento: desmontamos a realidade e quando julgamos que já
sabemos tudo, descobrimos que afinal há sempre uma qualquer coisa
que nos escapa. Vejamos o poema em questão: Desmonta o relógio
de bolso / solta a corda no tambor a âncora / e o cabelo do volante
/ a lupa colada às pálpebras / conta as sílabas os rubis // um
segredo / as iniciais na caixa de prata.
Segue-se a quinta parte que tem curiosamente o título da
rua em que mora o poeta Rua Vitorino Nemésio : são um
conjunto de memórias onde se insere entre outras a Igreja românica
de Rio Mau (Vila do Conde) num brevíssimo apontamento. Assim: De
Rio Mau / guarda a fotografia / as mãos que elevam a cabeça / até
ao cordeiro / no tímpano. Da própria Rua Vitorino Nemésio e
em dez simples versos António Barbedo traça um quadro do que
guarda dessa rua e que não resisto à tentação de transcrever: Muito
cedo / grasnam os gansos / e a névoa senta-se no regato / são mais
nítidas as árvores / as sombrias gruas do horizonte / as
carruagens vermelhas do comboio / muito cedo / quando as luzes
deixam as casas / e cintilam pela estrada / um café curto chávena
fria. É uma recordação forte dos primeiros alvores da manhã.
Chamo a atenção para o verso tão belo e a névoa senta-se
no regato. São versos destes que fazem a
diferença entre a linguagem poética e outro qualquer tipo de
linguagem (refiro-me à linguagem escrita). A poesia de Barbedo tem
destas coisas: pequeninas pérolas deixadas aqui e ali mas sem
abusar delas para que o seu efeito resulte plenamente. Chamo eu a
isto domínio do ofício, consciência oficinal.
O livro termina com Três Sábados, dos quais me
permito destacar Com os Pais em Junho; é um poema em que o
poeta relembra um tempo da infância na proximidade da adolescência:
Pousa
o cesto / com framboesas no mirante / os livros de Salgari / a
espingarda de pressão de ar // lembra / o pai na oficina dos relógios
/ a mãe / ao volante do poço / regando a horta e as roseiras //
magoa / como arrancar os selos ao álbum / sábado / na fábrica dos
fósforos.
Que mais se pode dizer desta poesia que não seja
redundante? Há nela um aticismo tão assumido que se tivesse de
eleger uma cor para a caracterizar, escolheria o branco dos países
e das regiões do sul, aquele de que várias vezes nos falou já Eugénio
de Andrade.
E não esqueça: A poesia é um lugar / onde se
chega ao anoitecer.
É uma edição da Editora Campo das Letras
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Luís Serrano, Maio 2004
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