Contar uma estória não é rigorosamente o mesmo
que contar a história. Mas às vezes ficam tão próximas, há
uma tão forte sobreposição entre uma e outra que o leitor tem a
sensação de ter à sua frente e em simultâneo, o real e a sua
representação, se assim me posso exprimir.
F. Campos vem com este livro penetrar no século XVII
depois de ter andado pelo séc. XV (A Esmeralda Partida
correspondente ao reinado de D. João II), pelo XVI (A Sala das
Perguntas, ou a vida de Damião de Góis e os seus problemas
face ao Santo Ofício), pelo séc. XVI, 2ª metade, (A Casa do Pó,
que nos dá a vida de Frei Pantaleão de Aveiro com o seu Itinerário
da Terra Santa) e ainda já nos finais do mesmo século A
Ponte dos Suspiros (de certo modo, uma ressurreição do D.
Sebastião). E que pretexto lhe vai servir para abordar esse tão
controverso século XVII? Nada mais, nada menos do que a espantosa
figura desse homem tão mal-amado (ouso dizê-lo!) e tão mal
conhecido que foi D. Francisco Manuel de Melo.
Eu próprio me dou conta da minha profunda ignorância ao
reconhecer ter lido apenas a Carta de Guia de Casados. Não há
edições das suas obras em português e são raras em espanhol, ao
que julgo saber. Sirva-me isso de desculpa!
Mas, de facto, F. Campos dificilmente encontraria outra
figura que consubstanciasse as contradições daquele período como
D. Francisco Manuel de Melo. Claro que existe outra figura, gigante,
curiosamente da mesma idade, o Padre António Vieira (nasceram ambos
em 1608 e foram amigos) mas os caminhos são diversos apesar de
algumas convergências.
Vejamos então: D. Francisco Manuel de Melo é filho de mãe
espanhola e de pai português num período em que Portugal havia
perdido a sua soberania. Serve a Espanha com brilho mas passa a ser
perseguido quando D. João IV toma o poder. É visto como um traidor
aos olhos dos espanhóis; resta-lhe, quando isso lhe é possível,
regressar à pátria onde vai prestar serviços inestimáveis. Mas o
ter servido Espanha torna-o suspeito aos olhos de muitos portugueses
ou porventura é a sua inteligência que lhe vai granjear inimigos
quase até ao fim da sua vida e também o ciúme, esse sentimento
que levou D. Gregório Taumaturgo a persegui-lo enquanto foi vivo já
que nunca lhe perdoou que ele tivesse amado a sua sobrinha, depois
sua mulher, Branca de Vilhena, tornada assim condessa de Vila Nova,
que não pôde recusar um tal casamento em nome dos interesses das
grandes famílias. D. Gregório casou com D. Branca mas nunca teve o
seu amor. E isso, ele nunca perdoou a D. Francisco.
D. Francisco foi vítima dos mais variados percalços da
vida: apoiava D. Duarte, irmão de um rei sem vontade, ele próprio
(D. Duarte) perseguido também sem que o irmão lhe valesse. Esteve
preso várias vezes (é certamente o preso mais célebre da Torre de
Belém), exilado no Brasil onde a Santa Inquisição não deixou de
o incomodar.
Pagou muitas vezes do seu bolso despesas de que nem sempre
foi ressarcido.
Escreveu nas duas principais línguas ibéricas, o português
e o castelhano e apesar de toda esta riqueza de inteligência, de
sentimentos, de generosidade, de coragem que nunca lhe faleceu, foi
um homem infeliz.
E é este o nosso drama desde longa data: passamos a vida
a elogiar os medíocres, os arrivistas, e desprezamos ou mandamos
para longe alguns dos nossos melhores.
Ora um dos grandes méritos de Fernando Campos, e não o
único, é ter a sensibilidade e o talento para nos trazer à mão
estes acontecimentos históricos com rigor, sim, mas sem a frieza do
historiador, obrigado a uma objectividade onde tudo tem de estar
documentado. Pelo contrário, não comprometendo a verdade dos
factos, Fernando Campos dá-lhe a cor, dá-lhe a música,
dá-lhe os cheiros, virtudes que só um bom escritor pode
transmitir.
Pela parte que me toca tenho aprendido alguma história de
Portugal através dos livros deste autor o que não significa que não
conheça algumas obras importantes sobre a história do país. Mas
com estes livros de F. Campos é diferente porque o autor sabe dar
vida a locais, a pormenores da intimidade das pessoas, a mil
pequenos nadas que fazem de um romance uma obra de arte; ora,
um livro escrito por um historiador, por maior que seja a sua
qualidade, dele nunca se poderá obter uma fruição estética; será,
sim, um ensaio, isto é, um texto científico.
Claro que ambos os textos são importantes e
complementares. Ficamos mais ricos se conhecermos os dois. Mas para
já, recomendo-lhe, caro leitor este O Prisioneiro da Torre Velha
que é uma belíssima obra de divulgação desse período complicado
que foi o de Portugal ter tido como reis, durante 60 anos, os
Filipes (II, III e IV de Espanha ou I, II e III de Portugal). O barroco
ainda não tinha morrido, mau grado D. Luís de Gôngora ter
desaparecido em 1627, quando D. Francisco tinha 18 ou 19 anos e no
ar ainda pairavam os fumos do Concílio de Trento.
É, uma vez mais, uma cuidada edição da Difel.
Luís Serrano, Fev. 2004.
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