Acesso à página inicial.


Diversos


Cantos do Amanhecer - de Manuel Dias da Silva

 

Cantos de Amanhecer é o segundo livro de Manuel Dias da Silva, este agora com a chancela das Edições Sagesse.

Insere-se esta poesia numa estética que se pode designar por estética do silêncio de que temos a percepção desde o inicio logo, quanto mais não seja, por uma das epigrafes de Sophia de Mello Escuto mas não sei/se o que oiço é silêncio

De resto, o vocábulo silêncio é o que aparece mais vezes no livro (26 vezes) e figurava já no título do seu primeiro livro Silêncio e Outros Temas.

É curioso citar aqui o que nos diz sobre o silêncio o Dicionário dos Símbolos (Chevalier e Gheerbrant e notar, desde já, que o silêncio nos aponta para dois caminhos divergentes. Creio que, neste livro, o simbolismo que mais se adequa é o que constituí o prelúdio de abertura à revelação; é um silêncio [que] abre uma passagem já que segundo as tradições, antes da criação havia o silêncio; e haverá de novo silêncio no fim dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos [...] dá às coisas grandeza e majestade. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimónia A este silêncio opor-se-ia o mutismo.

 

Poema

Silêncio

Vento

Tempo

Água

Memória

Rio

Sol

Chuva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I

9

11

5

2

4

3

9

4

II

12

4

7

1

4

-

1

1

III

5

3

-

1

1

3

1

-

Total

26

18

12

4

9

6

11

5

 

Lembremos ainda, à guisa de ilustração, aqueles versos da grande poeta mexicana Glória Gervitz: El silencio es un trabajo que durará toda su vida. Ocurre en lo más profundo en lo más oscuro como una enfermedad mortal São versos que vêm dar uma nova dimensão ao silêncio como se dele dependessem os caminhos cruzados da vida e da morte,

O livro encontra-se dividido em 3 partes: na primeira (p. 5 a 39), o poeta fala de si próprio (a epígrafe E agora ó Deuses que vos direi de mim? de Sophia de Mello é particularmente significativa; a segunda parte fala da mulher amada (p. 41 a 59), parte também balizada epigraficamente por Sophia (Por maior que seja o desespero/ Nenhuma ausência é mais funda do que a tua) e finalmente a terceira parte (p. 61 a 77) alude à amizade e inicia-se por uma epígrafe de Eugénio de Andrade, belíssima de resto, Um amigo/é o lugar da terra’ onde as maçãs brancas são mais doces.

Reportando-se a estes 2 autores, Sophia e Eugénio, o autor põe a descoberto a sua mundividência, de natureza que eu diria especialmente apolínea.

Há um conjunto de vocábulos que aponta no sentido da água: água, rio, mar, chuva, lágrima. Outro que aponta num sentido apolíneo: sol, luz, amanhecer, dia. Outro que aponta no sentido do passado: tempo, memória. Outro no da mudança: vento. Grande parte dos poemas contém, pelo menos, um ou dois destes vocábulos.

 

1ª parte – o autor pretende conhecer-se a si mesmo:

É em grande parte uma poesia que se desencadeia no sentido do conhecimento do eu, algumas vezes com ecos heraclitianos: Ao escrever as mesmas/palavras escrevo! coisas diferentes// O sol/ de hoje não é o sol/ de amanhã. (p.9) ou ainda Não sei se acredito no mundo/ só porque o vejo// Não sei se/ o essencial é ver (p.13) que põe em causa o conhecimento que se obtém através dos orgãos dos sentidos, ou no poema da p. 15 que nos faz recordar um poema de F. Guimarães, Não sei se as coisas que escrevo/ são diferentes das coisas que existem// etc. etc., que põe em confronto o real e a sua representação.

É patente nesta poesia um claro desejo de viver, mesmo que ele seja, por vezes, ensombrado pelo desencanto:

Quero envolver-me! naturalmente com a vida!! [...] De repente o desencanto! tapa o raio de sol/que gostava eterno. (p.27).

O vento assume-se como um elemento perturbador de um certo equilíbrio. De resto, (Chevalier e Gheerbrant, Dicionário de Simbolos), é anotado neste dicionário como simbolizando a instabilidade, a inconstância mas também o sopro divino: Escondo-me atrás! da realidade que escrevo!! O vento sopra O tempo/ desaparece Como a lua!! Talvez que o eu que eu sou/não o seja (p. 29).

Curiosamente, do poema da p.32 ao da p. 39 nós assistimos à recriação de um dia na vida do poeta, recriação que começa com o acordar Liberta-me do sonho! O silêncio dum ladrar (p.33), a seguir Amanhece na cidade//O silêncio estilhaça-se na aurora// [...] os olhos enchem-se-me/ de mágoas e distâncias// e tudo isto se repercute na mente do poeta como um eco que apesar de ser do exterior parece só ter existência porque dela o poeta toma conhecimento. No poema seguinte, o da p. 34, o silêncio fica comprometido já que O familiar canto/dos pássaros alvoroça-me os sentidos//A cidade azeda-me os sentimentos. É, além de tudo, a expressão dos dois vectores que perpassam por todo o livro, dicotomia campo-cidade, equilíbrio-desequilíbrio, claro-escuro, campo-contra-campo.

No poema da p. 35 estabelece-se uma curiosa relação entre dois tempos, o da memória e o da realidade: Passeio no nevoeiro da memória! e absorvo o real esqueleto da cidade// Passa-me um rio aos pés// Corro// Revejo-me mais abaixo. Neste rio revê-se o autor mas também a cidade (p. 36): Em cinza retrata-se/no rio fingidamente/o indefinido recorte da cidade// e isso corresponde a uma aproximação do poeta à sua cidade. E o dia termina:

Chegam-me sonhos! no silêncio descalço da noite// [...] Se soubesse as horas/ adivinhava o que se esconde! no intervalo do tempo. E é altura do sonho voltar como tinha acontecido no momento de acordar: Sonho pássaros de espuma! neste poema azul// [...] A aurora vai crescendo/no canto dos galos//Seria o momento/de ancorar o tempo! Ou seja, de parar o tempo para sobrevoar o universo como se fosse possível operar essa estabilização que permitiria esclarecer a posição do homem nesse todo e ele (o autor) entender-se a si próprio. Mas a terminar no poema da p. 39 diz o poeta: Ao longe o vento/ canta o hino/das luas passando, isto é, a instabilidade voltou a aparecer porque é ela, ao fim e ao cabo, o motor da vida. Sem contradições, seria a morte. Apesar desta relação tão óbvia com a realidade do dia a dia do autor, é difícil não ver aqui uma metáfora sobre o caminho da vida, caminho com os seus momentos aprazíveis mas também de não raros momentos de luta e solidão.

 

2ª – diálogo entre o poeta e a mulher amada

Duas são as epígrafes de Sophia que dão acesso a esta parte onde o diálogo se processa com a mulher amada: O êxtase do ar e a palavra do vento! Povoaram de ti meu pensamento e Por maior que seja o desespero/Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Encontramos aqui o que é de regra nestas coisas, a identificação do amador- coisa amada: Nesta simbiose! o mais extraordinário! é tu tornares-te eu (p. 48); a amizade que caminha paredes meias com o amor: Acordo! entre os teus olhos! e as amarras da amizade. Também o gosto por aquilo de que o outro gosta: Eternamente amarei/as rosas e a poesia./porque umas e outra/ te trazem (p. 54), poema que nos lembra Ricardo Reis.

E também a expressão daquilo que no amor é a partilha de todas as contradições: E também a luz da alegria! o vento da solidão! as sombras da incerteza (p. 55). Curiosamente, este poema é construído alicerçando-se na anáfora Era o tempo das cerejas o que lhe confere um tom ritmado separando os vários estratos de que o poema se compõe e que no verso final sofre uma ligeira rotação para ser É o tempo das cerejas. Porque para o poeta todo o tempo é tempo de cerejas. Ainda aqui, Manuel Dias da Silva tem da vida uma visão positiva, como se a utopia fosse realizável. Ou, pelo menos, acha que vale a pena lutar por ela. O que de resto, já se deixa ver no próprio título do livro Cantos de Amanhecer.

Às vezes há um entusiasmo irresistível: Apetece-me cantar a vida!! sentir o voo da cotovia/ o cheiro da floresta (p.56) onde se percebe, mais do que se explicita, uma sinestesia que tudo engloba: os cheiros, os sons, as cores. Mas depois o que fica é aquilo que é a simplicidade do quotidiano: Não chegam grandes lembranças! Só pequenos nadas! palavras olhares sorrisos!! e aquele apertar de mãos! num silêncio esmagador (p.52), ou seja aquilo a que na p. 53 chama A grandeza dos pequenos nadas.

É nesta parte que o vocábulo silêncio aparece com maior frequência (12 vezes) e é também aí que o seu significado aparece mais bem esclarecido. A este titulo, não resisto a citar todo o poema da p. 58:

 

O silêncio é o encontro

das palavras desnecessárias

 

Naturalmente

as nossas peles envelheceriam em cada pensamento

 

os nossos corpos

seriam um pouco de sol a caminho do poente

 

Mas não

 

Os nossos olhos têm a intimidade

duma árvore no meio da floresta

 

Neste acariciador silêncio

outonal

acabamos sempre por ser

o ar o fogo a água a terra um do outro

 

Em itálico realço os aspectos que me parecem mais pertinentes: o silêncio não é a ausência de palavras mas sim o encontro das que são desnecessárias, ou seja o silêncio é significativo. Realço ainda a bela imagem os nossos olhos/ têm a intimidade/ duma árvore no meio da floresta que mostra bem que o silêncio, a intimidade é possível, muitas vezes, no meio das gentes (da floresta). Finalmente, o autor mostra nos 4 versos finais que a dupla amorosa se basta a si própria porque em si reúne todos os elementos: o ar o fogo a água a terra.

 

parte — a amizade

Como já se disse atrás, a 3ª parte (p.61-77) está dedicada à amizade e inicia-se com uma epígrafe de Eugénio de Andrade, muito a propósito: Um amigo! é o lugar da terra! onde as maçãs brancas são mais doces.

Os amigos entram nesta poesia, umas vezes directamente, outras por via indirecta através do mundo exterior: O comboio que passa/A casa que se faz/O dumper/O fumo poluente/ O telhado agressivo da oficina/[...] (p. 63).

A vida ganha um inequívoco sentido pela amizade, porque é por ela, sobretudo, por ela, que A alegria é o caminho! para a eternidade. (p.76) A alegria permite ao poeta avanç(ar) para um poente/ irresistivelmente belo. Esta 3ª parte corrobora o que atrás se disse sobre a perspectiva “optimista” do autor.

Bem precisamos dela, digo eu, num mundo de desencanto em que vivemos e em que tudo se faz em função do dinheiro e da rentabilidade de vistas curtas, como se a vida não fosse feita de muitas outras coisas. Para que serve encher sacos de dinheiro? Para olhar para ele como fazia o pai de Eugénia Grandet, a conhecida obra de Balzac?

 

Chamaria a vossa atenção para alguns aspectos formais utilizados pelo autor:

Os poemas são de dimensão exígua, versos curtos, desenvolvimento vertical.

A adjectivação é discreta, o vocabulário relativamente reduzido. Por isso, cada palavra adquire uma grande importância na economia da obra. De uma forma geral, a articulação dos fonemas é cuidada ainda que aqui e ali possamos detectar alguns problemas menos bem resolvidos.

Há, normalmente, um predomínio da 1ª pessoa com explicitação do pronome pessoal complemento: sinto-me, sento-me, abandono-me, imagino-me, invento-me; mas também na 3ª pessoa: embala-me, elevam-me, cortam-me, etc.

A linguagem torna-se por vezes elíptica abrindo o caminho à sugestão mas ainda a medo, diria eu; uma obra com esta temática teria a ganhar com um recurso mais frequente a esta figura que se adequa muito bem a uma estética do silêncio.

Diríamos a terminar que após Silêncio e Outros Temas e Cantos de Amanhecer, ficamos à espera de um terceiro livro que assuma correr mais riscos do que estes. Ousar ao nível do verbo, grande motor do discurso, fazendo-o intervir em vários tempos dentro do mesmo poema, ousar ao nível da metáfora, não por si própria ou por alguma intenção ornamental, mas porque é a metáfora a grande figura da transfiguração poética, aquela que multiplica os significados e é verdadeiramente, a que confere um novo olhar sobre o homem e sobre o mundo.

Aguardemos, pois. Fica aqui a minha convicção de que Manuel Dias da Silva pode fazer mais e com maiores ambições. É um homem que pensa nos problemas, que tem imensos interesses, e que por isso mesmo dispõe de vivências que pode transformar em arte. A sua preocupação de conhecer o mundo atira-o para fora de si contrariando qualquer pretensa veleidade umbilical e passa, naturalmente pelo outro. Pelo que, conhecimento e solidariedade humana não são aqui mais do que dois aspectos da mesma realidade. Procurar abordá-los na poesia é uma escolha acertada. Por aí pode passar, em grande parte, a ultrapassagem das muitas contradições que nos é dado viver.

A arte é em grande parte a explicitação da assunção das contradições através de uma certa via, a poética; digo poética, não no sentido restrito da palavra mas justamente no seu sentido mais abrangente, aquele que permite revelar através de uma linguagem polissémica.

Luís Serrano

 


Página inicial Página seguinte