Nascido na Gafanha da
Nazaré, em 1926, Ascêncio de Freitas parte para Moçambique em 1948.
Os 30 anos que aí passou permitiram-lhe conhecer, não apenas os
aspectos geográficos da antiga colónia, mas também as contradições
sociais e os muitos sonhos dos que para lá foram à procura do que
não encontravam em Portugal.
Desse profundo
conhecimento, dá-nos conta em O Canto da Sangardata, a sua
última obra, com a chancela da Editorial Notícias e o patrocínio do
Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.
Utilizando uma
linguagem, tão próxima da oralidade que não podemos deixar de nos
lembrar de Guimarães Rosa, onde as duplas negações são uma constante
(desdormido, desvivido, desconsigo, etc., etc.), consegue criar um
ambiente de grande sensualidade num clima sempre excessivo como é
próprio dos trópicos.
É
uma prosa barroca
carregada de contrastes. Não é, certamente, por acaso, que uma das
epigrafes é da autoria do Padre António Vieira: Entre os homens,
dominarem os brancos aos pretos, é força e não razão ou
natureza
Triste
afirmação de Vieira, plena de lucidez, que se mantém
actual 300 anos
depois.
Utilizando como narrador a primeira pessoa, a obra adquire um tom
confessional, que apesar disso não mascara a objectividade dos
problemas abordados, antes lhes dá aquele toque humano que confere
consistência e humanidade à obra de arte.
É
bem o
“Romance-soma de uma vida”, uma “sondagem penetrante e impiedosa da
própria condição humana”, como lhe chama, e bem, Eugénio Lisboa no
retrato entusiástico que lhe dedica no nº 779 de JL.
Está nesta obra, não só o que foi o canto do cisne do colonialismo
português, mas também o oportunismo dos que viram na independência
de Moçambique a possibilidade de, traindo as justas aspirações dum
povo oprimido, resolver os problemas pessoais, ceifando num
individualismo torpe, os sonhos que eram a expressão de uma moral e
de um destino colectivos.
É
livro de uma
grande sabedoria, devida a um contacto intimo de muitos anos com a
população e que a maturidade dos anos permite apreciar sem paixão,
antes com um olhar rigoroso mas desencantado. Afinal, a humanidade
não aprendeu nada? Voltaremos a cometer os mesmos erros dos nossos
pais e dos nossos avós? Isto parece dizer a cada momento, Ascêncio
de Freitas ou o personagem-narrador que nele se esconde.
Toda a obra, apesar do
seu grande equilíbrio sem concessões a certos folclorismos de fácil
construção, adquire a grandeza e a arquitectura fluvial desses
grandes rios, que, quando menos se espera, saltam as margens e
deixam nesse excesso a marca da sua força. Permitir-me-ia chamar a
atenção para o final do romance, as últimas 20 ou 30 páginas, onde
há uma força tão arrebatadora que nos amarra à leitura até ao fim.
Não que se resolvam as contradições do mundo na mente do escritor,
na sua escrita, mas justamente porque o adiamento sine dia é
uma condição da luta por um mundo melhor. Como diz o narrador: No
resto, olhem, no por enquanto que estou da banda de cá deste rio que
é a vida que eu narrei, só tomo a coragem de viver assossegavelmente
e à espera do tempo das águas limpas. Tendo no coração a inteira
esperança que a semente do homem se vá apurando para outra raça de
gente melhor quando se acabar a riqueza deste mundo
—
essas
filosofias, as altas artes.
Estamos em presença de
uma das obras mais importantes da ficção portuguesa dos últimos anos
e que vem, definitivamente, consagrar um escritor, que foi tudo na
vida: desenhador, caçador profissional, jornalista, pintor de
cartazes entre outras actividades. Quem dá um contributo destes, aos
74 anos, merece o nosso respeito e a nossa admiração sabendo nós,
como de resto o sabe o autor, que os problemas estão todos ou quase
todos por resolver.
Mas é para isso mesmo
que serve a obra de arte: oferecer um testemunho empenhado, ainda
que carregado de subjectividade e daquele sofrimento em carne viva,
que é o preço pago para podermos exibir os aspectos, sempre
contraditórios, da tão vilipendiada condição humana. |