Vidas Atribuladas: Condessa de Taboeira e D. Arcelina Valente Moreira, Aveiro, 2013, 254 págs.

Explicação sumária

Tínhamos ido ver os jovens da Associação Desportiva de Taboeira jogar futebol. Os campos, para a prática do futebol, estão instalados no terreno que foi pertença dos condes de Taboeira e, ao olharmos para o que resta do solar, a curiosidade levou-nos a visitá-lo.

Deparou-se-nos uma casa em ruínas e totalmente devassada, que, pelo que observámos, além de vandalizada e delapidada de valores, servia de abrigo a marginais.

Receosos, pois podíamos ficar soterrados, percorremos os compartimentos possíveis. Em dois dos muitos compartimentos do solar, deparámo-nos com muitos papéis espalhados pelo chão, cheios de pó, calcados, rotos e molhados.

Durante quase duas horas, fomos escolhendo os que nos pareciam satisfazer a nossa crescente curiosidade, mas houve um que, ao lê-lo, nos entusiasmou a escrever esta biografia.

Trata-se do testamento de João Cardoso Valente, conde de Taboeira, em favor de sua esposa, Dona Maria Aurora e do qual transcrevemos o trecho essencial: 27 de janeiro de 1904 (a condessa requereu nesta data cópia do testamento) “…instituo minha universal herdeira, de todos os meus bens mobiliários e imobiliários, valores, papéis de crédito, direitos e ações, dívidas ativas constantes dos meus livros de escriturações, em suma, de tudo que à data da minha morte legitimamente me pertença, a minha mulher, D. Aurora Munõz de Valente, como verdadeiro testemunho do meu verdadeiro amor por ela e em último reconhecimento das suas virtudes e do muito que lhe devo como companheira carinhosa e esposa exemplar.”

A nossa decisão em escrever esta biografia floria, ingenuamente, pois faltava-lhe o fertilizante complexo, que seria a pesquisa em arquivos espalhados por Espanha, passando por Lisboa até à região duriense.

Esmorecemos, mas ao auscultarmos taboeirenses, uns por transmissão oral dos seus antigos, outros porque ainda conheceram as duas senhoras (as biografadas, D. Maria Aurora, condessa de Taboeira, falecida em 30.1.1946 e, sua sobrinha por afinidade, D. Arcelina, em 1976), puseram-nos nas mãos a virtude da filantropia, pertença das duas senhoras.

De facto, entre papéis poeirentos e depoimentos, descobrimos que um fidalgo pode esconder, por trás das suas vestes sumptuosas e títulos nobiliárquicos, um coração magnânimo!

Mas à escada com cem degraus que nos propusemos subir, faltavam uns aqui, outros acolá, e esse facto não nos permitia sair do fundo do poço, onde, voluntariamente, tínhamos caído.

Destas vidas a tão longa distância, por culpa própria, mas sobretudo alheia, já que outros não ajudaram a encastoar os ditos degraus, ficcionar seria falsear a verdade que queríamos respeitar. Por esse motivo, o leitor irá encontrar lacunas, mas uma coisa é certa, ficará a saber que estas duas senhoras eram cultas e frontais, e tinham virtude ainda maior, chamada bondade. Como todos os mortais, sofreram ingratidões, injustiças, ataques soezes, mais por ignorância e avidez do que por razões justificáveis, mas triunfaram sempre e, entre a bondade das duas, por razões que o leitor encontrará expostas nestas páginas, é de destacar D. Maria Aurora, uma mulher quase sublime.

Uf… Depois de uma árdua tarefa e, considerando que uma biografia é a mais difícil missão para o escritor, concluímos com a sensação de faltarem algum dos degraus atrás mencionados. (Lamentavelmente, oito dos descendentes de alguns dos mencionados na biografia não quiseram dar o seu contributo, o que obviamente amputou o livro de dados essenciais).

Foi-nos difícil rivalizar com a internet (temos-lhe ódio de estimação, mas consideramos que as novas tecnologias, embora sejam uma faca de dois gumes, fazem avançar e facilitar o conhecimento), onde quase todos bebem tudo, e aqui só o cunho pessoal de pensar e de escrever marca a diferença. Gastámos muitas esferográficas, papel e paciência, mas uma coisa é certa, só nos realizamos desenhando os pequenos aranhiços que são as letras. É como o ar que respiramos!

Apesar das muitas dificuldades que algumas instituições e pessoas nos criaram, houve alguma sorte, ou acaso, e nós tivemos disso. Os documentos encontrados e a colaboração de gente anónima de Taboeira foram um contributo precioso.

Já não entendemos que, quando em 1999, o Solar e a Quinta passaram dos Teles da Silva para a posse da Câmara Municipal de Aveiro, não se tivessem tomado as providências necessárias para preservar o que restava. Hoje, interroguemo-nos, quem de direito permitiu tal coisa!1 A cultura não é o que está à superfície, o que permitiria que todos a vissem, mas tal como numa árvore, as raízes que a alimentam estão escondidas por culpa própria ou alheia. Quem foi ou foram os responsáveis não sabemos e, por isso, não podemos acusar ninguém de desleixo cultural.

Agora, e talvez o devêssemos ter feito em primeiro lugar, agradecemos a uns tantos que disponibilizaram o seu tempo e ocupação para nos ajudarem nesta insana tarefa.

Eis os seus nomes sem qualquer ordem de grandeza, porque os nossos amigos são todos iguais.

Aí vai:

Manuel Clara Soares que, quando menino, brincava como um igual com os filhos dos Valente Cardoso ou dos Teles da Silva, trazendo até nós recordações que tanto úteis nos foram. Os olhos dele sorriem como quando era criança ao reviver e transmitir os tempos idos.

Também os homens e mulheres que serviram D. Arcelina, como Sebastião, Maria Emília, Rosa do Campo ou Rosa Patrocínia, que bem vivos nos contam a vivência no Solar, na Quinta e nas terras adjacentes.

Não podemos deixar de mencionar Bartolomeu Conde, que nos forneceu dados importantes, e ainda nos deliciou com o seu senso de humor ao servir-se do seu apelido, para se pôr ao nível de D. Arcelina, a quem chamavam “condessa”, nome que perpetuava, no imaginário dos taboeirenses, a continuação dos méritos de sua tia, por afinidade, D. Maria Aurora.

Também é obrigatório mencionar os amigos: Paula Peralta Naia, Bruno Justiça, André Barbosa da Silva, Carlos Tiago Sarabando, Ana Elisa Prata Velha, Dr. Delfim Bismarck, Prof. Pedro Calheiros, Rev. Dr. Artur Mergulhão (da Paróquia de Arícera - Armamar) e Teresa Cardoso.

Muitas das descrições desta biografia podem parecer deslocadas, fora do contexto e até marginais, mas houve a preocupação de relatar vivências das épocas em causa, não só para satisfazer curiosidades, como sentir o ambiente. Aliás, se nos referíssemos em exclusivo ao que chegou até nós, acerca das duas senhoras, um restrito opúsculo bastaria. Há, no entanto, muitas cartas, sobretudo da condessa, que teve o cuidado raro de fazer cópias dos originais, provavelmente a partir da morte do seu marido, em 1903, como garantia futura.

Porém, a maioria das cartas versavam sobre o mesmo assunto, como foi o caso do aluguer, restauro e venda do Palacete do Campo dos Mártires da Pátria, no Porto.

Outro aspeto que é de realçar são os diversos cordões umbilicais que ligavam a então Companhia Portuguesa de Celulose, hoje Portucel – Empresa Produtora de Pasta de Papel S.A. sediada em Cacia, a filhos da região aveirense.

Porém, Taboeira esteve ligada à fábrica por três cordões umbilicais! Um, era o fumo incomodativo das chaminés e dos digestores descontínuos. Outro, o diretor de então, Engenheiro José de Magalhães e Menezes Forjaz Vilas Boas que entrou para a Celulose nos anos cinquenta2. E outro como chefe de setor, Francisco Castelo Branco, também íntimo do Solar de Taboeira.

Eram íntimos da família do conde João Cardoso Valente e, consequentemente, de D. Arcelina3, com quem conviviam, devido também à grande proximidade geográfica entre Taboeira, Cacia e Aveiro. D. Arcelina que a todos acudia, metia a sua cunhazita para muitos dos habitantes da aldeia, o que, afinal, também era sua por opção, como tivera sido da D. Maria Aurora, para se empregarem na “Celulose de Cacia”. Revele-se o facto do último feitor da quinta de Taboeira, Manuel Soares, ou Manuel Escudeiro, como era conhecido, acabar por ser trabalhador da Celulose. Muitos taboeirenses foram trabalhar para a Celulose.

O cheiro proveniente da descompressão dos digestores descontínuos, principalmente quando o vento era de noroeste, penetrava nas casas, nos corpos e até na paciência de todos aqueles que eram abrangidos pelo seu rasto.

Os tempos mudaram, quer na mentalidade dos homens, quer nas tecnologias.

O autor desta biografia que, entre mil e novecentos trabalhadores deu o melhor de si, durante trinta anos na “Celulose de Cacia”, ao visitá-la, e depois de explicações dadas pelo seu diretor acerca da evolução técnica e produtiva, ficou verdadeiramente surpreendido. Mas a produção não é o único objetivo dos atuais gestores. O ambiente também foi acautelado. O tratamento dos gases e dos efluentes estão resolvidos e até os peixes e as cegonhas proliferaram!

Não há uma ordem cronológica dos acontecimentos, pois era normal que começássemos a apresentar, em primeiro lugar, a personalidade e vivência das duas senhoras em causa. Porém, consideramos de primordial importância focalizar os ambientes físicos, temporais e emocionais, onde foi possível D. Aurora e D. Arcelina darem expressão à sua personalidade fidalga e filantrópica.

Modestamente, cremos que esta cronologia, para além da biografia propriamente dita, ajuda os eventuais interessados a conhecer e recordar aspetos pouco conhecidos de Taboeira. Também temos a certeza que muitos aspetos importantes não foram desvendados por inacessíveis ou por incapacidade do autor.

Fizemos o nosso melhor, umas vezes com paixão, outras com o desânimo do inacessível.
Advertência:

Alguns dos trechos que escrevemos constituem depoimentos de pessoas, algumas das quais anónimas, de Taboeira, umas já falecidas, pois começámos a escrever a biografia há mais de três anos e, se ferirem algumas sensibilidades, peço que os vivos compreendam que nos limitamos ao que nos relataram; de contrário, seria truncar o que se passou. No entanto, sei que são tiros no escuro.

Sou um admirador profundo das novas tecnologias mas, por razões que não importa explicar não as utilizo, diretamente, senão em casos pontuais e por intermédio de outros.

Portanto, para além de cópias originais, todo o livro foi manuscrito. Confesso, no entanto, como já referi atrás, que só me sinto realizado como escritor desenhando aqueles pequenos rabiscos que são as letras e que são superiores em gastos e rapidez!

Troquei dezenas de cartas manuscritas na procura de dados para a bibliografia, mas as respostas apenas rondaram metade dos contatados.

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1 “A memória histórica de um povo alimenta-se da transmissão de ideias, particularmente, na forma oral, escrita ou edificada, possuindo esses testemunhos um valor acrescentado quando a temática pertence a épocas mais recuadas, pois a escassez de elementos informativos sobre qualquer assunto que a sorte deixou sobreviver apenas permite uma obscura interpretação conceptual dos elementos subsistentes.” (Arquit. Luís Aguiar Branco)

2 O engenheiro civil José Magalhães era segundo filho do Conde de Vilas Boas Fernando de Magalhães e Menezes (1873-1951). O título de Conde, foi-lhe atribuído pelo Rei D. Carlos a 20 de Maio de 1907.

3 Nos anos setenta, D. Arcelina era accionista da CP. de Celulose.

 
 

21-03-2014