Tínhamos ido ver os jovens da
Associação Desportiva de Taboeira jogar futebol. Os campos, para a
prática do futebol, estão instalados no terreno que foi pertença dos
condes de Taboeira e, ao olharmos para o que resta do solar, a
curiosidade levou-nos a visitá-lo.
Deparou-se-nos uma casa em ruínas
e totalmente devassada, que, pelo que observámos, além de vandalizada e
delapidada de valores, servia de abrigo a marginais.
Receosos, pois podíamos ficar
soterrados, percorremos os compartimentos possíveis. Em dois dos muitos
compartimentos do solar, deparámo-nos com muitos papéis espalhados pelo
chão, cheios de pó, calcados, rotos e molhados.
Durante quase duas horas, fomos
escolhendo os que nos pareciam satisfazer a nossa crescente curiosidade,
mas houve um que, ao lê-lo, nos entusiasmou a escrever esta biografia.
Trata-se do testamento de João
Cardoso Valente, conde de Taboeira, em favor de sua esposa, Dona Maria
Aurora e do qual transcrevemos o trecho essencial: 27 de janeiro de 1904
(a condessa requereu nesta data cópia do testamento) “…instituo minha
universal herdeira, de todos os meus bens mobiliários e imobiliários,
valores, papéis de crédito, direitos e ações, dívidas ativas constantes
dos meus livros de escriturações, em suma, de tudo que à data da minha
morte legitimamente me pertença, a minha mulher, D. Aurora Munõz de
Valente, como verdadeiro testemunho do meu verdadeiro amor por ela e em
último reconhecimento das suas virtudes e do muito que lhe devo como
companheira carinhosa e esposa exemplar.”
A nossa decisão em escrever esta
biografia floria, ingenuamente, pois faltava-lhe o fertilizante
complexo, que seria a pesquisa em arquivos espalhados por Espanha,
passando por Lisboa até à região duriense.
Esmorecemos, mas ao auscultarmos
taboeirenses, uns por transmissão oral dos seus antigos, outros porque
ainda conheceram as duas senhoras (as biografadas, D. Maria Aurora,
condessa de Taboeira, falecida em 30.1.1946 e, sua sobrinha por
afinidade, D. Arcelina, em 1976), puseram-nos nas mãos a virtude da
filantropia, pertença das duas senhoras.
De facto, entre papéis poeirentos
e depoimentos, descobrimos que um fidalgo pode esconder, por trás das
suas vestes sumptuosas e títulos nobiliárquicos, um coração magnânimo!
Mas à escada com cem degraus que
nos propusemos subir, faltavam uns aqui, outros acolá, e esse facto não
nos permitia sair do fundo do poço, onde, voluntariamente, tínhamos
caído.
Destas vidas a tão longa
distância, por culpa própria, mas sobretudo alheia, já que outros não
ajudaram a encastoar os ditos degraus, ficcionar seria falsear a verdade
que queríamos respeitar. Por esse motivo, o leitor irá encontrar
lacunas, mas uma coisa é certa, ficará a saber que estas duas senhoras
eram cultas e frontais, e tinham virtude ainda maior, chamada bondade.
Como todos os mortais, sofreram ingratidões, injustiças, ataques soezes,
mais por ignorância e avidez do que por razões justificáveis, mas
triunfaram sempre e, entre a bondade das duas, por razões que o leitor
encontrará expostas nestas páginas, é de destacar D. Maria Aurora, uma
mulher quase sublime.
Uf… Depois de uma árdua tarefa e,
considerando que uma biografia é a mais difícil missão para o escritor,
concluímos com a sensação de faltarem algum dos degraus atrás
mencionados. (Lamentavelmente, oito dos descendentes de alguns dos
mencionados na biografia não quiseram dar o seu contributo, o que
obviamente amputou o livro de dados essenciais).
Foi-nos difícil rivalizar com a
internet (temos-lhe ódio de estimação, mas consideramos que as novas
tecnologias, embora sejam uma faca de dois gumes, fazem avançar e
facilitar o conhecimento), onde quase todos bebem tudo, e aqui só o
cunho pessoal de pensar e de escrever marca a diferença. Gastámos muitas
esferográficas, papel e paciência, mas uma coisa é certa, só nos
realizamos desenhando os pequenos aranhiços que são as letras. É como o
ar que respiramos!
Apesar das muitas dificuldades que
algumas instituições e pessoas nos criaram, houve alguma sorte, ou
acaso, e nós tivemos disso. Os documentos encontrados e a colaboração de
gente anónima de Taboeira foram um contributo precioso.
Já não entendemos que, quando em
1999, o Solar e a Quinta passaram dos Teles da Silva para a posse da
Câmara Municipal de Aveiro, não se tivessem tomado as providências
necessárias para preservar o que restava. Hoje, interroguemo-nos, quem
de direito permitiu tal coisa!1 A cultura não é o que está à superfície,
o que permitiria que todos a vissem, mas tal como numa árvore, as raízes
que a alimentam estão escondidas por culpa própria ou alheia. Quem foi
ou foram os responsáveis não sabemos e, por isso, não podemos acusar
ninguém de desleixo cultural.
Agora, e talvez o devêssemos ter
feito em primeiro lugar, agradecemos a uns tantos que disponibilizaram o
seu tempo e ocupação para nos ajudarem nesta insana tarefa.
Eis os seus nomes sem qualquer
ordem de grandeza, porque os nossos amigos são todos iguais.
Aí vai:
Manuel Clara Soares que, quando
menino, brincava como um igual com os filhos dos Valente Cardoso ou dos
Teles da Silva, trazendo até nós recordações que tanto úteis nos foram.
Os olhos dele sorriem como quando era criança ao reviver e transmitir os
tempos idos.
Também os homens e mulheres que
serviram D. Arcelina, como Sebastião, Maria Emília, Rosa do Campo ou
Rosa Patrocínia, que bem vivos nos contam a vivência no Solar, na Quinta
e nas terras adjacentes.
Não podemos deixar de mencionar
Bartolomeu Conde, que nos forneceu dados importantes, e ainda nos
deliciou com o seu senso de humor ao servir-se do seu apelido, para se
pôr ao nível de D. Arcelina, a quem chamavam “condessa”, nome que
perpetuava, no imaginário dos taboeirenses, a continuação dos méritos de
sua tia, por afinidade, D. Maria Aurora.
Também é obrigatório mencionar os
amigos: Paula Peralta Naia, Bruno Justiça, André Barbosa da Silva,
Carlos Tiago Sarabando, Ana Elisa Prata Velha, Dr. Delfim Bismarck,
Prof. Pedro Calheiros, Rev. Dr. Artur Mergulhão (da Paróquia de Arícera
- Armamar) e Teresa Cardoso.
Muitas das descrições desta
biografia podem parecer deslocadas, fora do contexto e até marginais,
mas houve a preocupação de relatar vivências das épocas em causa, não só
para satisfazer curiosidades, como sentir o ambiente. Aliás, se nos
referíssemos em exclusivo ao que chegou até nós, acerca das duas
senhoras, um restrito opúsculo bastaria. Há, no entanto, muitas cartas,
sobretudo da condessa, que teve o cuidado raro de fazer cópias dos
originais, provavelmente a partir da morte do seu marido, em 1903, como
garantia futura.
Porém, a maioria das cartas
versavam sobre o mesmo assunto, como foi o caso do aluguer, restauro e
venda do Palacete do Campo dos Mártires da Pátria, no Porto.
Outro aspeto que é de realçar são
os diversos cordões umbilicais que ligavam a então Companhia Portuguesa
de Celulose, hoje Portucel – Empresa Produtora de Pasta de Papel S.A.
sediada em Cacia, a filhos da região aveirense.
Porém, Taboeira esteve ligada à
fábrica por três cordões umbilicais! Um, era o fumo incomodativo das
chaminés e dos digestores descontínuos. Outro, o diretor de então,
Engenheiro José de Magalhães e Menezes Forjaz Vilas Boas que entrou para
a Celulose nos anos cinquenta2. E outro como chefe de setor, Francisco
Castelo Branco, também íntimo do Solar de Taboeira.
Eram íntimos da família do conde
João Cardoso Valente e, consequentemente, de D. Arcelina3, com quem
conviviam, devido também à grande proximidade geográfica entre Taboeira,
Cacia e Aveiro. D. Arcelina que a todos acudia, metia a sua cunhazita
para muitos dos habitantes da aldeia, o que, afinal, também era sua por
opção, como tivera sido da D. Maria Aurora, para se empregarem na
“Celulose de Cacia”. Revele-se o facto do último feitor da quinta de
Taboeira, Manuel Soares, ou Manuel Escudeiro, como era conhecido, acabar
por ser trabalhador da Celulose. Muitos taboeirenses foram trabalhar
para a Celulose.
O cheiro proveniente da
descompressão dos digestores descontínuos, principalmente quando o vento
era de noroeste, penetrava nas casas, nos corpos e até na paciência de
todos aqueles que eram abrangidos pelo seu rasto.
Os tempos mudaram, quer na
mentalidade dos homens, quer nas tecnologias.
O autor desta biografia que, entre
mil e novecentos trabalhadores deu o melhor de si, durante trinta anos
na “Celulose de Cacia”, ao visitá-la, e depois de explicações dadas pelo
seu diretor acerca da evolução técnica e produtiva, ficou
verdadeiramente surpreendido. Mas a produção não é o único objetivo dos
atuais gestores. O ambiente também foi acautelado. O tratamento dos
gases e dos efluentes estão resolvidos e até os peixes e as cegonhas
proliferaram!
Não há uma ordem cronológica dos acontecimentos, pois era normal que
começássemos a apresentar, em primeiro lugar, a personalidade e vivência
das duas senhoras em causa. Porém, consideramos de primordial
importância focalizar os ambientes físicos, temporais e emocionais, onde
foi possível D. Aurora e D. Arcelina darem expressão à sua personalidade
fidalga e filantrópica.
Modestamente, cremos que esta
cronologia, para além da biografia propriamente dita, ajuda os eventuais
interessados a conhecer e recordar aspetos pouco conhecidos de Taboeira.
Também temos a certeza que muitos aspetos importantes não foram
desvendados por inacessíveis ou por incapacidade do autor.
Fizemos o nosso melhor, umas vezes
com paixão, outras com o desânimo do inacessível.
Advertência:
Alguns dos trechos que escrevemos
constituem depoimentos de pessoas, algumas das quais anónimas, de
Taboeira, umas já falecidas, pois começámos a escrever a biografia há
mais de três anos e, se ferirem algumas sensibilidades, peço que os
vivos compreendam que nos limitamos ao que nos relataram; de contrário,
seria truncar o que se passou. No entanto, sei que são tiros no escuro.
Sou um admirador profundo das
novas tecnologias mas, por razões que não importa explicar não as
utilizo, diretamente, senão em casos pontuais e por intermédio de
outros.
Portanto, para além de cópias
originais, todo o livro foi manuscrito. Confesso, no entanto, como já
referi atrás, que só me sinto realizado como escritor desenhando aqueles
pequenos rabiscos que são as letras e que são superiores em gastos e
rapidez!
Troquei dezenas de cartas
manuscritas na procura de dados para a bibliografia, mas as respostas
apenas rondaram metade dos contatados.
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1 “A memória histórica de um
povo alimenta-se da transmissão de ideias, particularmente, na forma
oral, escrita ou edificada, possuindo esses testemunhos um valor
acrescentado quando a temática pertence a épocas mais recuadas, pois a
escassez de elementos informativos sobre qualquer assunto que a sorte
deixou sobreviver apenas permite uma obscura interpretação conceptual
dos elementos subsistentes.” (Arquit. Luís Aguiar Branco)
2 O engenheiro civil José
Magalhães era segundo filho do Conde de Vilas Boas Fernando de Magalhães
e Menezes (1873-1951). O título de Conde, foi-lhe atribuído pelo Rei D.
Carlos a 20 de Maio de 1907.
3 Nos anos setenta, D.
Arcelina era accionista da CP. de Celulose. |