Penso
também que só depois de 1200, com o encerramento da duna
exterior, das aberturas, ainda que esporádicas, das várias
barras, e o abaixamento por isso dos leitos interiores, pois
no interior da laguna continuava a sedimentação de vasas e a
deposição das areias eólicas, o moliço começou a ser
apanhado, e, mesmo assim,4ias margens baixas.
Depois,
o homem teve consciência do seu valor nutriente e então começou
a utilizar um barco de fundo baixo, utilizando o ancinho
puxado a braço, inventando a seguir a tamanca e a forcada
para menor esforço.
Origens
dos traços deste belo barco?!... Olha, uns dizem que tem
formas dos barcos vikings, outros dos Fenícios, mas estes
chegaram a estas paragens pelo século X a.C. e aqueles creio
que nunca desceram à Península. Há no entanto quem garanta
que eles contornaram Portugal no ano 793, chegando até
Alexandria.
Eu
inclino-me mais para as galés de guerra romanas, perdendo as
carrancas das proas, substituindo-as por aquela proa airosa e
esbelta, que, com painéis alusivos e coloridos, dão alegria
à faina de apanhar moliço.
Perderam
os remos dos guerreiros e ganharam leveza e agilidade,
aproveitando os ventos, adaptados aos fundos baixos e funções
de trabalho. Foi só apainelá-los nas suas proas e rés com
motivos evocativos e folclóricos da região com as suas cores
e até os motivos votivos e outros das cangas e alminhas cá
do sítio.
Algo
confunde o álacre e o votivo nesta trilogia, quanto à forma
que tanta curiosidade e admiração suscita. Também discordo
de ilustres historiadores e amigos do moliceiro. Dizem eles
que é tal qual o bico de uma gaivota. Ora o bico da gaivota
é direito e na ponta com uma ligeira curva para baixo. Eu
admito, porém, que a razão do traçado da proa é outra. -
Então qual é amigo João?!, perguntou na expectativa o meu
companheiro: - “A mim”, respondi-lhe; “faz-me lembrar o
revoltear da onda do mar! Uma onda que avança, redonda, com a
ponta recurva, fragmentando-se e voltando-se a formar: - Ora
repara Zé naquela proa que se espraia quase rente à linha
d’água?”
—
“Realmente parece!... Mas como é que os construtores os
fazem tão iguais, tão bem feitinhos?”
—
“Pois, os mestres construtores têm uma vara chamada “pau
dos pontos” cujas, dimensões são 0,020 cm de lado na sua
base quadrada e 0,015 m na extremidade, e 1,5 metros de
comprimento e com incisões marcadas ao seu longo, servindo de
bitola para a construção sair perfeita e igual.
Nos
estaleiros de S. Jacinto havia um carpinteiro naval chamado
Boaventura, que ficou indubitavelmente ligado à Ria! Era uma
personagem excêntrica que, para explicar a perfeição das
suas obras, passava a sua mão direita sem alguns dedos pelo
casco das suas construções dizendo sempre: - “Não falha
nem um avo, absolutamente”!... Era uma figura
“charlotiana” que parecia gozar as outras pessoas com a
seriedade com que dizia as coisas! “Matei uni porco com
catorze arrobas e quinze quilos”, ou então contando as suas
aventuras no Amazonas ao Engenheiro Schemit, um engenheiro
alemão que o Roeder, dono do Estaleiro S. Jacinto, explorava;
pois ganhando dez contos na Lufthansa em Lisboa, e com medo de
ir para a Alemanha em guerra, o Roeder dava-lhe três contos!
Pois Boaventura contava-lhe muito sério que um dia estava a
comer “sandevicha” em cima dum tronco, reparou que já não
estava no mesmo sítio e que o tronco era afinal uma “carcolesia”,
fêmea do “carcodilo”. Lançou--lhe a “sandevicha”
para dentro da boca, fugindo, escapando a morte certa!...
Mas
fazer lanchas e baleeiras com os seus segredos, e o “pau de
pontos” para traçar sem plano geométrico as lanchas que
fazem carreira de S. Jacinto a Aveiro, já lá vai quase meio
século, era só com o Boaventura Fernandes!
Hoje
ainda se fazem moliceiros, embora raramente, na Murtosa,
Vagueira, Salreu e também em Pardilhó, onde há dois
construtores que são os mestres Henrique Ferreira da Costa,
que usa como emblema o “sino saimão” pintado a verde e
vermelho; e o mestre Agostinho lavares, que usa um símbolo
circular com as cores branco, verde e vermelho. Entre os
construtores mais jovens há o Felisberto no Saltadouro,
Pardilhó, que para além de raros moliceiros construi
bateiras de todo o tipo.
Normalmente
as pinturas álacres que ornamentam a proa e a ré são feitas
pelos próprios construtores, mas para refazer pinturas ou
pintar novos motivos também o Jacinto Vieira da Silva da
Torreira dá o jeito!
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