Ainda
me lembro de uma vez, mesmo no beirado, ali pela Palhaçana,
em pleno Inverno, mais o João da Carneirinha, o caçador que
ia todos os dias à Ria sozinho na sua pequena e frágil caçadeira,
estarmos à espera dos patos, quietos e silenciosos, olhos em
alvo nos patos de borracha a que chamamos “chamados” ou
‘negaças’, que armavam por vácuo e que os parentes do João
tinham mandado da América.
Tínhamo-los
colocados aí a uns vinte metros presos ao fundo através de
barbante amarrado a uma chumbeira para não os deixar afastar
com a corrente da maré.
A
dada altura, e inesperadamente, soaram dois tiros por cima das
nossas cabeças e dois “patos” esvaziaram e logo se
afundaram! Olhamos para trás e deparámos com um caçador
descalço, calça arregaçada com ar atónito, de boca aberta.
canos a fumegar da pólvora preta, sem conseguir dizer
palavra! Por fim articulou a medo “é amigos, desculpem,
julgava que eram marrequinhas”, de seu nome científico
“anas crecca”, é o pato mais pequeno da Europa com os
seus 37 cm. O macho é muito lindo, tendo uma mancha ocular
verde escura curvada e orlada por um tom claro. — Logo o
Carneirinha lhe retorquiu “ó seu sacana, desapareça já,
então se fossem marrecas esperavam que viesse de pé por cima
da ilha?!”...
O
homem desapareceu como fumo, e nós fomos “pescar” os
“chamados” furados e regressámos a Aveiro desiludidos e
estupefactos. Não enganámos os patos, mas enganámos o
homem!
Outra
vez no extremo poente, no Amoroso, os patos eram aos milhares
alterando a cor da lama. Escondido e arrastando-me pela lama
quase lhes cheguei; mas, mal levantou o primeiro, o bando
levantou todo parecendo o ruído dum jacto, e logo pousou no
sequeiro do Amoroso erguendo-se todos no extremo da cauda
batendo as asas resplandecendo ao sol a pino do meio-dia.
Descoroçoado,
fui ter com o meu pai, que dentro da embarcação pescava no
Ramalho. Só que para lá chegar tinha de atravessar o lamaçal
com mais de cem metros, com as botas altas de borracha a
enterrarem-se até acima dos joelhos, obrigando-me a enorme
esforço. O suor escorria-me pelo rosto e tronco, pois na Ria
o sol a pino, em Agosto, aleija e corta a respiração.
Quando
consegui chegar próximo do meu pai, que descansado ia tirando
uns robalinhos de palmo, logo me disse: “olha pousou acolá
um casal de reais!” Atravessei quase igual distância à
anterior, cada passada obrigando-me a um esforço enorme para
arrancar as botas da lama. Mal cheguei ao junco “ vi” dois
patos numa clareira. Nem esperei que levantassem, tal o cansaço.
Dei-lhe dois tiros e, espanto meu, não ficaram nem
levantaram! Andei aos círculos pelo junco pois podiam ter
ficado de asa. Cabeça a andar à roda, fechei os olhos,
sentei-me no junco e lama e só então tomei consciência que
o sol intenso, o cansaço e a obsessão me tinham originado
uma miragem!...
Outra
vez, em pleno Inverno, na Moacha, próximo dos vestígios da
que foi a casa do Afonso, o frio era tanto que não segurava a
espingarda nas mãos, indo bater os pés no que restava da
porta da dita casa e aproveitando o sol que começava a
inundar a ilha. De repente e por cima da Regueira do Moroso,
vinha voando baixo um ganso bravo — um “anser anser”
cinzento claro, com o comprimento de 80 cm e 1,70 metros de
envergadura, vindo lá do norte da Europa. Passou mesmo por
cima da seiteira onde tinha estado escondido, a não mais do
que 15 metros de altura! Fiquei roído de raiva por perder a
oportunidade única de caçar um tão belo exemplar. Meu pai
que estava distante mas via o ganso, gritou, “é pá não vês
nem um boi por cima de ti, vê lá se ele te caga nos
canos”!... Fiquei mudo, fazendo um gesto de desconsolo!...
Tenho
muitas e boas peripécias passadas no Monte Farinha, mesmo
dentro da boa e grande casa que lá tem, onde há um eucalipto
e um poço de água doce filtrada pela areia, mas não posso
deixar de contar uma que se passou comigo e com o meu pai.
Tínhamos
ido ao extremo poente da ilha mesmo até Lavacos, pois a maré
estava em baixo. Quando regressávamos a maré subia
rapidamente e ao chegarmos à regueira que atravessa a ilha de
lado a lado só o meu pai conseguia passar, pois tinha botas
altas. Eu que normalmente ando descalço, o que adoro, só
tirei as calças. Meu pai teimou em atravessar-me às
cavalitas. Quando íamos a meio do esteiro, reparei que os
cavalos que pastavam próximo pararam de comer e olhavam-nos
com ar interrogativo! Então eu disse para o meu pai: «—
olha o que aqueles cavalos estão a pensar de ti ao ver-te
levar-me “às cavalitas”»! Rapidamente fez um gesto
brusco para me atirar à água, mas eu estava bem agarrado ao
pescoço, chegando a seco à outra margem apeando-me da
“montada” improvisada que vociferava!...
Porém,
a Ria também tem os seus dramas; e apesar de doce e meiga faz
as suas vítimas, poucas que se conste.
Lembro-me
de um caso, acontecido na minha juventude, com dois criados de
lavoura, meus vizinhos, que foram ao junco para estrumarem os
currais por cima do mato para amaciar as camas do gado,
alindar os pátios ou atapetar as ruas nos dias de festa na
aldeia, para depois ser transformados em estrume para as
terras!... Os moços eram serranos e nunca tinham visto água
larga. Ao leme da bateira vinha o Ti Elias Freire, homem
experiente, mas ali pela Eira da Prancha, um golpe rápido de
vento fez a bateira embater contra o muro projectando um dos
inexperientes irmãos para a água.
O
outro logo se lançou em seu socorro, desaparecendo ambos.
Acorreram vários marnotos, mas foram infrutíferas as suas
tentativas.
Então
o Manuel Cabo D’ordens com o seu enorme chinchorro conseguiu
arrancá-los da lama onde tinham enterrados os braços na ânsia
de se salvarem. Disseram na altura que se tinham agarrado um
ao outro e que foi difícil separá-los!...
Noites
a fio não conseguia adormecer, parecendo-me ainda ouvir o
dedilhar do seu cavaquinho que me embalava lá desde o celeiro
nas noites de Inverno da minha adolescência.
Também
o drama daquele velhote, o Ti João das Enguias, que andava
junto à Fajarda apanhando enguias à unha, pondo os dedos
junto ao buraco babado, que é o lado do rabo da enguia e
calcando com os pés no outro buraco onde está a cabeça.
Assim a enguia vem de rabo e com a prática de longos anos,
apanha-a pelo meio, e num gesto rápido lança-a para dentro
do cesto ou da nassa.
Ou
foi o frio ou algum ataque cardíaco que o vitimou com as
pernas enterradas até às coxas pela lama dentro. Ao outro
dia encontraram-no na maré-baixa, assim como o cesto meio de
enguias pousado em cima dum “barbelão”, ou seja, um monte
de lama acima da água, uma pequena ilha.
Outra
vez vinha pela Cale da Veia uma bateira à vela conduzida por
um homem de Mataduços, que trazia consigo um seu enteado de
12 anos sentado na proa. De repente, ali pela Capela Seca, o
rapaz escorregou após uma repentina viragem da vela, e logo
desapareceu nas águas profundas da Cale. O padrasto lançou-se
à água na vã tentativa de salvar o seu menino; mas se não
fosse a pronta intervenção de uns marnotos que andavam no
amanho do sal, também lá ficava. Vasculhou-se o sítio em vão,
mergulhando até ao fundo e usando os ancinhos, só vindo a
aparecer o cadáver ao outro dia, um pouco mais abaixo do
local onde tinha caído, ali pela Prancha.
Também
o moço de marnotos da marinha, Rabo Teso, se afogou, talvez
por indigestão, pois foi nadar após o almoço. Apareceu a
boiar ao outro dia junto a São Vicente. Foi encontrado por
marnotos que iam amanhar o seu pão. Amarraram o cadáver a
uma estaca e mandaram recado à Capitania indo à mesma para a
faina, não fossem as autoridades fazer perder o seu precioso
tempo com as costumadas formalidades!...
Muito
badalada foi a morte do Marabuto e da sua companheira. Diz-se
que um deles deve ter caído acidentalmente em cima da
alavanca de velocidades e que o motor de grande potência deu
um safanão à lancha e os projectou para a água, o que
motivou uma congestão por terem comido há pouco, pois parece
que a água até era pouco profunda à entrada do Amoroso.
Depois
há pequenas peripécias, também perigosas, que merecem ser
contadas. Por exemplo, o que aconteceu ao Leonilde e a um seu
companheiro — pediu um motor com 30 cv para a sua lancha,
que habitualmente era accionada por um motor de 8 cv. Quando
iam a entrar no Esteiro dos Frades, puseram o “prego a
fundo” e a lancha, num impulso rápido e inesperado, foi
direita ao muro da Marinha São Vicente, projectando os dois
ocupantes para dentro da marinha! A sorte deles, que saíram
ilesos, foi a maré ser muito alta, pois de contrário teriam
chocado contra o muro que tem a revesti-lo tijolos velhos.
Passados dias, andando à caça no local, encontrei o chapéu
do Leonilde que com o susto o tinha lá deixado!...
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