As
gaivotas, os borrelhos e um ou outro fuselo já faziam ouvir o
seu piar assustados com a nossa presença.
A
água, no seu vaivém, arrastava plásticos, trapos, ramos de
árvore e até uma galinha morta.
Quase
a cair sobre a embarcação, lá está o palheiro na marinha
da Ramalha, já carcomido da traça e inclinado pelos ventos,
nos seus alicerces de estacas de pinho.
Restos
de um mercantel desfeito e apodrecido, quando encobertos pela
maré, são um perigo para a hélice da embarcação, pois
pode partir a cavilha de segurança e é uma carga de trabalho
e perda de tempo para quem tem de aproveitar as marés.
Após
a Boca Torta, chegamos ao Canal da Veia, largo e fundo, com a
água a correr em grande velocidade, fazendo redemoinho nas
pedras do leito na sua ânsia de encher, até transbordar os
muros, alagar os juncais nas grandes marés de quase 3 metros
que mal deixam ver a ponta do junco e distinguir os esteiros.
Nos dias de acalmia, essas grandes marés parecem um enorme
espelho semeado de pequenos espetos!... Mas, com vento,
formam-se "cavalinhos" de espuma branca soltos ao vento, que,
quando presos às pontas do junco, fazem nascer água na boca
de desejos de algodão doce, daquele que se vende nos
carrinhos que palmilham a Costa Nova à procura da nossa infância!
O
dia começa a nascer com um sol por detrás do casario da
cidade. Só se ouve o ruído do motor e o chapinhar da água
na proa da caçadeira. É escusado falarmos, pois não nos
ouvimos. Os pensamentos são os que a paisagem faz nascer em
cada um de nós.
Está
um dia de sol radioso e sem nuvens e bandos enormes de gaivotas
evolucionam sem aparente sentido.
As
falcoeiras estão inertes e quase indiferentes à nossa
passagem, apenas virando o papo roliço para o nosso lado, cabeça
atravessada, orientando o olho vivo e deixando ver os recortes
robustos do bico que tudo estraçalha. Como se fosse uma
paisagem do céu, as gaivinas e as andorinhas do mar, no seu
bater rápido das asas, param de repente e mergulham
inesperadamente na água, desaparecendo e voltando com um
camarão-bruxo já quase engulido. Bonito de se ver!
No
muro esburacado da margem, uma ratazana pára momentaneamente
para nos observar e desaparecer rapidamente como por encanto.
Ela apanha caranguejos com o rabo pelado ou come alguma ave morta
e esquecida pelo caçador. Nada rápido e os caçadores exclamam
sempre: «— Parece um coelho!”, aludindo ao seu enorme
tamanho! Na verdade, apenas são os indispensáveis
“almeidas” da Ria, limpando todos os detritos!
Deixamos
o Canal da Veia e enfiamos pelo esteiro do Gramato, que logo
à entrada tem o palheiro da Ceboleira, que era do Dr. António
Peixinho, com o emblema do glorioso Beira-Mar pintado na
porta. A marinha tem o muro rebentado e a cambeia vai
aumentando sempre todas as marés e a corrente, na vazante, até
arrasta as embarcações. Dá pena. Nem sal nem peixe!
Voltamos
à esquerda, pelo esteiro estreito que separa o juncal do
Gramato das marinhas de sal da Laçarota ou Esteiro Novo;
desviamos a tábua, ou prancha, de passar que obriga a exercícios
de equilíbrio, quando, por descuido ou comodismo, fica ao
correr com o esteiro. O que precisa de passar e para não ter
de ir à água, tem escondido no junco da margem um cordel com
uma pedra amarrada numa das pontas, atirando-a a uma
extremidade da tábua, trazendo-a até à margem, fazendo-a
rodar na enorme cavilha espetada no topo de uma grossa estaca.
Esta prancha fica entre a marinha da Laçarota e a da Nova do
Camelo, deixando o Esteiro das Brazalaias à esquerda.
Atracamos nos Fornos.
Mal
assomamos ao muro da marinha, um bando enorme de borrelhos, de
nome científico «charadrius alexandrinus», esvoaça
fazendo círculos, ora mostrando o peito, ora o dorso,
deixando o sol traduzir em reflexos as suas evoluções de
cambiantes rápidos. Parecem mosquitos!
Aliviada
a embarcação dos necessários, fomos até ao palheiro
arrumar as coisas e arranjar a tarimba para pernoitarmos.
Nos
palheiros a porta está quase sempre virada a sul, e o
estreito postigo, de 0,60 x 0,20 cm e sem vidro, a norte ou a
sudoeste, tapado por vezes por uma tábua que se lhe ajusta. O
palheiro é de alvenaria e laje, a servir de cobertura,
descaracterizando os palheiros lindos feitos de madeira, que
agora só são dois na Ria, quase todos tendo o nome da
marinha inscrito por cima da porta, num rectângulo de madeira
ou azulejo. É a Nortada, a Espaventa, a Corte, os Bulhões,
etc. Em 1280, já algumas das marinhas tinham esses nomes!
Sabe-se lá a sua origem e de há quantos séculos a labuta do
sal e do pescado e a preservação dos seus segredos?! Que
isto de fazer sal não é para todos! Que o digam os
estrangeiros e em especial os da Galiza, a quem D. Pedro, em
decreto de 8 de Novembro de 1695, proibiu que trabalhassem o
sal para não levarem o segredo para Espanha. Os rendeiros ou
feitores que lhes dessem trabalho estavam sujeitos a ser açoitados
e degredados durante cinco anos para as galés!
O
Homem, na sua infinita sabedoria, baptizava para todo o sempre
aqueles rectângulos cercados de muros do pão do seu
sustento.
Alguns
palheiros têm da parte de fora um banquinho coberto por uma
parreira de cepa teimosa em crescer, uma figueira de figos
capados cedo e até uma pequena horta que, à mingua de
trazeres, fornece umas couves raquíticas para umas berças
oleadas com o mesmo azeite das dobradiças da porta cheias de
salmoura.
Depois
de espalharmos melhor o feno na tarimba e no chão, para
pernoitarmos, e pendurarmos espingardas e cartucheiras, assim
como os farnelórios no arame pendurado da trave que atravessa
o palheiro de parede a parede e que está embrulhado com um
trapo embebido em óleo queimado, por causa das formigas não
irem ao tacho, lá arranjámos espaço, com todas as alfaias
de trabalhar a marinha bem a um canto, assim como a grande
jarra de barro de matar sedes de gargantas ressequidas do
salgado.
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