Heitor de Oliveira, natural e morador na
Granja de Baixo da comarca de Eixo, herdou de seu pai o gosto pelos
cavalos mas, para além disso, recebeu uma educação esmerada por parte
dos progenitores que o enviaram para a vila de Aveiro onde, junto dos
mestres, aprendeu direito canónico que, no fundo, são leis civis que a
Igreja adopta, dando-lhe validade e eficácia, permitindo esta formação,
para poder ser nomeado Juiz de Fora.
Entretanto, casou-se na Igreja de Santo
Isidro, em Eixo, com Dona Branca da Costa. Passado pouco tempo, Dona
Branca sentiu-se pejada e, um tanto inesperadamente, Heitor foi nomeado
Juiz de Fora em Couto do Mosteiro, próximo de Santa Comba Dão. Passados
seis meses de estar a exercer a sua actividade, soube que era pai de um
menino. Heitor estava num dilema, pois, sabia que o filho tinha de ser
baptizado até oito dias após o nascimento, e que se o não fizesse,
ficava sujeito a sanções.
Por isso, resolveu pedir ao Bispo de
Coimbra, para prolongar até três meses o dia do baptizado, alegando que
viera para o Couto do Mosteiro, um tanto inesperadamente, e que a esposa
poderia perder o filho se viesse antes, por ter de percorrer quarenta e
cinco léguas por maus caminhos. Além disso, ele não podia ir a Eixo,
devido aos seus compromissos como Juiz de Fora.
Foi-lhe aceite o pedido, mas com a condição
de logo que Dona Branca chegasse, não podia sair de casa nem assistir ao
baptismo. O Bispado deve também ter levado em linha de conta o facto de
o Inverno ser frio e chuvoso.
... O parto tinha corrido bem. Foi chamada a
parteira Violante de Requeixo pela sua fama. Logo que chegou, além de
mandar aquecer água, pediu toalhas bem lavadas, uma garrafa com azeite e
mandou acender velas a Nossa Senhora da Paz. Depois de rebentarem as
águas e a parturiente começar a sentir o útero a contrair-se e
alongar-se, ritmadamente, permitiu a saída do bebé, após as dores que
demoraram meia hora. A parteira ajudou ao parto, untando as mãos com
azeite, e logo ergueu o recém-nascido, dizendo alto e bom som: − Que
rico rapagão! É grande e rosado, Dona Branca. Sua felizarda! Tome-o lá,
por um instante, pois tenho de lhe dar banho, depois de lhe cortar o
cordão.
A mãe, com lágrimas de felicidade, abraçou o
seu filho contra o peito e disse: - Só tenho pena que o meu adorado
esposo não assistisse a este momento mas, daqui a pouco tempo, estaremos
todos juntos.
Curiosamente, houve como que um fenómeno na
altura do menino nascer. Eram dez da noite do dia 25 de Dezembro. O
burro da parteira, preso na alpendurada, zurrava aflito. Chovia
torrencialmente e ouvia-se, ao longe, o ribombar do trovão precedido de
faíscas. No preciso momento em que o bebé nasceu, um raio iluminou, com
forte intensidade, todo o casario e, o pavio das velas quase se apagava
fazendo oscilar as sombras projectadas nas paredes. Todos se
persignaram. Para a mãe era milagre de S. Isidro mandado por Deus, ou do
Espírito Santo venerado na Granja. Para os restantes era pura
coincidência.
A parteira, estava habituada a estes
fenómenos, assim como a bruxas, lobisomens "maus olhados", "cobranto",
"ventre caído", "sozões", "tradomelho", "Zirpela", e "ogados". Por
exemplo, para curar o "tradomelho" impunha-se a seguinte encenação:
andar com uma canga à volta do paciente e dizer: eu cerco e talho todo o
fogo afogueado, que este fogo se vá embora com a canga do meu gado.
Conhecedora de todos os caminhos mais o seu burro "faz que anda", disse
com ar solene, na convicção de que ia amealhar uma boa quantia de
moedas: − Sempre que faísca e troveja, durante o nascimento de alguém, é
sinal de que o nascido vai ser um grande Homem ou Mulher! Outra coisa,
já se esqueceram que hoje é Natal?
Dona Branca sorriu e disse: − Deus a ouça, e
que o meu filho seja tão doce como Jesus.
Passados os três meses, mãe e filho que,
pelo desejo dos pais, se chamaria Fernando, viajavam para o Couto do
Mosteiro na companhia do futuro padrinho, o muito amigo Diogo de Sousa,
homem abastado e integro da dama de companhia Catarina Castro, de um
cocheiro e de quatro homens armados, pois, era frequente aparecerem
bandoleiros no caminho, caminho este irregular e com poças de água. A
viagem demorou três dias sem sobressaltos de maior. Fernandinho
portou-se muito bem e só chorava quando tinha fome. Felizmente, Dona
Branca alimentava o seu filho, dando-lhe de mamar. As albergarias onde
pernoitaram não primavam pela limpeza, mas Dona Branca sempre arranjava
maneira do seu filho tomar banho.
Heitor destacou um dos seus homens para o
avisar da chegada da comitiva, vinda de Aveiro. Quando os seus chegaram,
largou tudo e correu como um jovem de encontro à sua esposa, que trazia
o filho ao colo. Abraçou-os e, afastando-se um pouco, olhou sorridente
para o seu filho e segurou-lhe um dedo gorduchinho, dizendo cheio de
alegria: − Meu pequenino e bonitinho filho, como sou feliz! Obrigado,
meu Deus.
O baptizado foi realizado, ao outro dia, na
Igreja Matriz de Santa Columba, tendo como padrinhos o já citado Diogo
de Sousa e a amiga e confidente da família, Violante Dinis da aldeia
Colmeas, terra próxima de Couro do Mosteiro.
Fernando, Fernão, ou Fernandinho foi
crescendo no meio de mil cuidados. Aos quatro anos já sabia contar e ler
pequenos trechos. Quando encontrava um tanque ou um charco com água,
tudo o que flutuasse servia para navegar, obrigando a vigilância mais
apertada, por parte da ama Catarina Castro, órfã de Eixo, e por Dona
Branca.
Aos seis anos, foi aprender a cate que se e
a ler. Durante as aulas, revelava a sua irreverência e aparente
indiferença, o que levou o prior a fazer queixa a Heitor. Este, na
presença do prior, perguntou ao filho porque se portava assim, ao que
ele respondeu: - Pai, estou a pensar noutras coisas, mas se me
perguntarem tudo o que se passou nas aulas, eu sei, e o que é isso de
irreverência?
Pai e prior sorriram, e sem a presença de
Fernando, disseram em simultâneo: − É caso único, não há volta a
dar-lhe. − E o padre acrescentou: − É um garoto cheio de personalidade e
adivinha-se, ali, um futuro grande homem, tenha a certeza disso.
Heitor não acrescentou nada, mas havia um
sorriso de felicidade no seu rosto, reforçado com a ideia da vinda de
uma menina, o que ia acontecer em breve.
Quando Fernando tinha oito anos, e como os
pais notavam nele um certo misticismo, ou religiosidade, resolveram
enviá-lo para casa dos avós na Granja e, caso assim o entendessem, ir
para o Convento de São Domingos.
Chegado à Granja, logo arranjou amizade com
o órfão e mendigo Segismundo. A partir daí, e após a catequese e as
aulas dadas pelo padre Francisco Vieira, e o recolhimento a que se
votava, durante espaços de mais de meia hora, o que intrigava os avós,
tudo o que fosse casqueira ou cortiça se transformava em caravelas, isto
para além das feitas, com esmero, pelos dois amigos, pois, tinham:
costado, cavername, mastros com velas e canhões, tal como Nando tinha
visto numa gravura, e iguais às que levaram às descobertas, no tempo do
Infante Dom Henrique.
Como, perto de casa, não tinham planos de
água, suficientemente grandes, decidiram ir para a ribeira da Balsa ou
para o rio Vouga.
Como já se disse, os Oliveiras criavam
cavalos que o avô Pedro fornecia à Ordem de Cavalaria de Santiago e
Espada, vivia na Granja, rodeada pelo planalto do monte e Vale do
Arrujo, entre outras terras. (Como vizinho tinham o homem-bom, Dom Jorge
da Silva "o novo", filho primogénito de Dom Jorge da Silva e de Dona
Isabel Soares. Dom Jorge, filho, era escrivão de órfãos da Câmara de
Eixo, sendo casado com Dona Leonor Gonçalves. Dom Jorge, instituiu
capela, com vínculo e com a invocação do Espírito Santo, situada junto
ao seu palacete. As missas e outros actos litúrgicos são celebrados pelo
bondoso e velhinho padre Francisco Vieira que, montado no seu burrinho
"Tiro", acode a todos os fieis espalhados por lugares e póvoas. Os dois
amigos, montados no cavalo "Raio", demoravam, desde a sua casa na Granja
até à Ribeira da Balsa e se o cavalo fosse a trote, cerca de uma hora e
vinte minutos e, da Balsa até ao rio, mais dez minutos. Para dizer a
verdade, a viagem era um tanto perigosa, pois havia a meio do caminho
uma alcateia de lobos e constava-se que alguém tinha visto um urso.
Ainda que a sua área ficasse próxima de Anadia, Fernando não tinha
descurado o facto resolvendo a situação caso fossem atacados. Levavam
consigo uma cana-da-índia comprida, com trapos envolvidos em óleo, que
acendia com uma pedreneira e se aproximaria dos atacantes se necessário.
Quando os dois "navegadores" iam a passar no local conhecido como Cilha
da Sardinha, Nandinho disse para o amigo: − Sabes "Mundo", neste local
já se fabricou sal, tal como em Alquerubim e Cilhas de Vil ar. Fica
sabendo, meu néscio, que Cilha significa muro que divide os tabuleiros
das marinhas de sal.
Segismundo, o "néscio", disse por sua vez: −
O patrãozinho sabe tudo!
− Qual patrão qual carapuço, − disse
indignado Fernando − e fica sabendo que, há muitos milhares de anos, a
água salgada, isto é, o mar ia, pelo menos, até à Alfandega.
Os dois amigos tinham tempo de sobra para
brincarem com as caravelas, pescar e, se fosse altura das aves porem
ovos, é certo e sabido que os lavancos ficavam sem eles.
A brincadeira consistia em amarrar as
caravelas com barbantes, deixando que o vento ou a corrente as
afastassem. Com outro fio accionavam as bombardas que eram fundidas na
forja do ferreiro Soeiro Gonçalves (ferrador de Bestas e construtor de
alfaias que, por isso, vivia desafogadamente) segundo molde feito por
Oliveira. Quanto à pólvora, o padre Pedro Gonçalves, que era muito
instruído e conhecedor de química, ensinou ao Fernando e aos outros, a
fabricá-la, misturando em proporções: carvão, 15%, enxofre, 10% e 75% de
salitre. Também ensinou que a pólvora tinha sido descoberta pelos
chineses, há mil e quinhentos anos, aquando da chegada à Europa no séc.
XlV, e utilizada pelas armas, em 1343.
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