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Amélia Maria Serafim Anastácio



Trazida pelo vento

Sempre gostei de vir para aqui. Acho que é por ser grande, e as coisas grandes sempre me fizeram sentir pequena e centrada em mim. Não sei se isso é bom ou mau, mas faz-me sentir muito bem.

A planície calma que escorre o vento deita-se a meus pés e este velho Alentejo, que pode parecer calmo e até enfadonho a muitos, enche-me de vida, e, a cada momento, reaviva-me e preenche-me de força. Acho que, com o tempo, aprendi a amar isto. Sempre vivi aqui, mas aos olhos que tenho hoje, vejo as coisas como se fosse uma primeira vez. E cada coisa que, ontem, me parecia nova, hoje, parece-me nova outra vez: cada palha, cada oliveira, cada porco, cada ovelha e o soar daqueles estalidos que o sol faz quebrar na erva parece-me uma melodia nova inventada só para mim.

Resolvi deixar-me arrastar pelo vento e deixá-lo trazer-me até aqui, deixar-me deitar no seu leito e repousar a minha cabeça no seu regaço de Outono.

Ontem, apeteceu-me dar uma volta pela quinta e ver os cavalos, as galinhas, as vacas e o casalinho de borreguinhos gémeos que nasceram no outro dia, e que a mãe não quer amamentar. Como pode uma mãe rejeitar alimentar, com o leite dos seus seios, os filhos que a natureza, que a vida, lhe deu? Bem…quando me baixei para tocar num, surgiu-me, de repente, na memória, uma lembrança que o meu Eu , há muito, julgava esquecida.

Parecia acordar de um sono para me vir acotovelar, espicaçar, perturbar. E, por breves minutos, relembrei uma história de anos que a minha memória quis cortar de mim, e guardá-la num qualquer canto onde não a conseguisse encontrar.

Tudo se passou pelos meus quinze… dezasseis anos… não sei bem… mas lembro-me perfeitamente do resto e conto com a perfeição de como se tivesse sido ontem. Dediquei alguns minutos a pensar em ti, meu avô: aquela tua pobre existência de quem não tinha existência e vivera sempre para a terra, aquele quinhão de terra que te pertencia.

E, sobre aquele momento, teço ainda as palavras que deveria ter-te dito – de como gostava de ti, avô. De como gostava de que não tivesses morrido, de que não me tivesses deixado sozinha, sem família, ou alguém que cuidasse de mim.

E, nesta pobre existência finita que percorre cada fio de vida, que me liga à vida, penso, ainda hoje, como sempre suaste a carne para me dar o pão para a boca e para o espírito, batalhando, cada dia, com se fosse contra a tua própria sina que terminou sem que pudesses ouvir o que te digo agora.

Aquela doença que te sugou os últimos rasgos de vida, que te deixou sem feições, e aquele olhar azul de céu que brilhava sempre que eu dizia: «Avô, já cheguei.»

Sabe Deus a que horas acordavas tu, seis dias por semana, para ir à praça vender aquilo que a terra te dava como se entregasse uma dádiva a um deus. E, ao sétimo dia, descansavas esse teu velho corpo, onde o rosto, coberto de rugas, fazia parecer a terra que cada ano cavavas a custo, como quem cavava a própria sepultura.

Oh!... e que dor lembrar que, alguém que não conheço, a quem poderia chamar “minha mãe”, não conhece sequer a vida que nasceu de dentro dela, a quem abandonou sem sequer lhe dar um nome, abandonou nos teus braços, ó meu avô, meu pai, minha mãe, minha avó, minha família! Acho que nunca dera muito valor à tua fadiga e ao teu trabalho, de sol a sol, até que eu própria tive de me sujeitar a uma tarefa de tal forma custosa que também foi deixando marcas do tempo na minha memória.

Sempre vivemos naquela pobre casa de adobe onde, à varanda, floresciam, todos os verões, sardinheiras lilases que cobriam o chão e salpicavam a casa de cor.

…E, à medida que o verão foi passando, as sardinheiras foram secando e soltando as suas flores secas, tu foste ficando cada vez mais doente. Então, aí, eu cuidava de ti, alimentando-te como se fosses meu filho, e, cada dia que passava, parecia o último da tua vida, que em breve acabaria deixando-me só.

Sem mãe (pai não conhecia, ou conheço), a avó morrera alguns anos antes de eu nascer, como poderia prosseguir? Então tive de me mandar à vida, buscando o pão para a boca e para o espírito. E como eu gostava de estudar, de ler e saber os nomes dos descobridores portugueses, dos rios que nasciam em Espanha e vinham parar a Portugal!...

E aquilo que tu dizias: «O canudo, filha, é aquilo que te traz o futuro. Não deixes de ir à escola, Matilde.», fermentava-me na cabeça como um cuco que martela um tronco de árvore. Então decidi lançar-me ao trabalho durante o dia enquanto, à noite, suava o pensamento a tentar perceber a matéria de Ciências, e por que é que o nosso coração precisava de dois ventrículos.

Foste tão importante para mim, meu avô! Meu querido avô, velho homem, a quem louvava cada calo que jazia nas suas mãos gretadas e rijas que o cabo da enxada fizera assim…

Fui então trabalhar para aquela fábrica de enlatados que tresandava a óleo requeimado e peixe, cheiro fétido, podre. Que trabalho duro que me desgastava, deixando-me sem forças para, sempre que chegava a casa, ir para o liceu, estudar à noite.

Mas tudo renascia quando me sentava frente aos livros, resolvendo aqueles problemas matemáticos. Foi aí que comecei a dar valor àquela tua expressão de cansado e cada dia me agarrava mais aos livros e, mesmo sozinha naquela casa onde outrora se ouviam os discos antigos da Amália, e aquela voz chinfrinada que suava a ti e me fazia rir, não me sinto abandonada… talvez porque sempre o fui e daí não estranhar!...

Um dia, a solidão assombrou-me. Aliás, acho que a minha vida sempre foi cheia de repentes e de coisas que nascem do segundo e que parecem vir de um inferno sombrio para me assustar. Deitei-me, à noite, e parecia tudo tão frio, tão esquecido, tão vazio… mesmo aquele pequeno quarto, preenchido com aqueles velhos móveis de pau, me parecia escuro e morto como numa casa assombrada, abandonada pelas gentes. Deixei-me adormecer nesta sombra que me tapava a alma e, pela manhã, quis procurar alguém, alguém que preenchesse, nem que fosse por um breve momento, um pouco da solidão que me assaltava.

Fui então para o liceu.

Nesse dia, comecei a andar com a Marlene e a Cristina que, até então, não me tinham chamado a atenção., mas que, de alguma forma, souberam preencher a minha solidão naquela altura. Fomos dar uma volta depois das aulas e entrámos numa loja de um qualquer estabelecimento comercial. Olhei para um vestido preto, pendurado, e foi como se me apaixonasse por ele. «Então, Matilde, gostas?» – perguntou-me a Cristina. «Sim, é muito bonito! Mas não tenho dinheiro para este tipo de futilidades!» … e esbocei um sorriso amarelo. «Eu também não!», respondeu-me ela. `A saída, quando íamos a passar a porta, o alarme começou a tocar e, de súbito, o meu coração disparou e senti-me assaltada por uma sensação de susto, porque, afinal, a Marlene e a Cristina nem tinham lá muito boa fama… De repente, vejo-me rodeada de seguranças a arrastarem-me para um canto onde o resto da clientela não pudesse ver o que se passava.

Começaram a procurar, na minha mala, nem sabia o quê. Então perguntei o que se passava e um dos seguranças respondeu que, se o alarme tinha tocado, era porque alguma de nós tinha qualquer coisa da loja. Mas… como podia ser?! O certo é que, no meio das minhas coisas, estava o vestido pelo qual me encantara à entrada. Como podia aquilo ser?!... Eu nem sequer o pusera na mala! A Marlene e a Cristina foram-se embora e eu fiquei ali, a ser arrastada para a esquadra.

Nessa tarde, os polícias fizeram-me milhentas perguntas a que respondi sempre que não. O certo é que iria passar quarenta e oito horas ali, naquele sítio imundo onde nunca estivera. Atiraram-me para uma cela onde encontrei duas mulheres de aspecto duvidoso, diga-se. Uma delas, negra, usava um vestido vermelho de corte ordinário que lhe evidenciava as gordas carnes da barriga. Fumava calmamente como se estivesse sentada numa esplanada, à espera que um empregado lhe levasse um café. A outra era branca e usava umas calças muito largas, rotas e baixo, junto com umas botas enormes, velhas e sem brilho. Tinha uma camisola verde que dizia: “Freedom to your soul”. Não sei bem porquê inspirou-me confiança quando se dirigiu a mim e perguntou: «Porque vieste dentro?». Por momentos, não consegui responder e acho que as lágrimas me sufocaram a voz naquela altura. Respondi-lhe, então, muito devagar: «Uma colega minha pôs-me um vestido na mala, sem eu saber, e, à saída da loja, o alarme disparou…». Baixei os olhos para o chão sujo e com beatas que jaziam sob os meus pés, e senti um calafrio invadir-me toda. Não sei se era frio, fome, nojo, mas, mesmo que houvesse um cobertor ou comida, penso que não conseguiria aceitar nem um, nem outra. Sentei-me no chão, junto à cama onde estava sentada a primeira mulher, que se virou para mim e disse: «Tu és muito nova p’ra ‘tar aqui…Olha, eu sou a Odete, mas todos me chamam de Dete. E aquela é a João, como lhe chamam… Eu ‘tou aqui porque fui apanhada numa rusga a uma discoteca. Aquela ali mete-se em revoluções estudantis… Pensa que ‘tá no 25 de Abril!... Bom, de qualquer maneira, vamos ‘tar aqui mais um dia. E tu?» - «Quarenta e oito horas», respondi-lhe.

Nessa noite, não consegui adormecer, ou sequer cerrar os olhos para descansar. Sentia-me petrificada por estar ali retida por uma coisa que não fizera. Mas, pelo menos, eu, a Dete e a João embarcámos numa conversa que me ensinou coisas que, hoje, me fazem ver a vida de maneira diferente.

A Dete, por exemplo, contou-me que a sua mãe também fora prostituta, e cedo conhecera as lides da vida de quem tem de vender o corpo e até a alma, segundo ela, por algum dinheiro para matar a fome que lhe roía o estômago. Acreditava em Deus apesar de, segundo ela, Ele parecer tê-la esquecido. Sabia que nunca iria subir na vida e que, noite após noite, um medo de morte lhe invadia o ser, fazendo-a lembrar-se que a sua existência era só mais uma… Não sentia orgulho naquilo que fazia, mas como não sabia fazer mais nada…

Tive a petulância de lhe dar um conselho. Achei que ela precisava. Porque não deixar de fazer o que fazia, arranjar um emprego decente e, sabia-se lá, um pouco de dignidade?... Sorriu para mim como se dissesse: ”Quantas vezes já ouvi isso…”.

A João, com o seu espírito revolucionário, sempre passara noites em celas por causa de revoluções estudantis, qual Dom Quixote lutando contra moinhos de vento. E afirmava, convicta: «Quem corre por gosto não cansa…». Havia qualquer coisa nela que me fazia sentir bem. Tinha um olhar centrado, e nunca falava ou ouvia as pessoas sem as olhar olhos nos olhos. Bastante calma, parecia-me porém algo perdida como se, como eu, procurasse alguma coisa que a preenchesse. Não consegui descobrir o quê…

Na manhã seguinte, foram embora ao mesmo tempo e lançaram-me um olhar de despedida que ainda hoje relembro perfeitamente. Nunca mais as encontrei. Mas ainda faltava uma noite para eu sair dali. E iria parecer ainda mais longa que a anterior.

Não aceitei a comida que me deram – a fome era a última coisa que me preocupava naquele momento. Não entrou mais ninguém para a minha cela e resolvi fechar os olhos à procura de uma nesga de sono que me assaltasse e me fizesse esquecer, por momentos, aquele cheiro e aquele cinzento que banhava o chão, as paredes, o tecto, as pessoas, tudo… Consegui dormir e sonhei contigo, avô. Sempre me socorreste em situações perigosas, como daquela vez em que caí ao poço e tu me foste lá buscar. E quando me tiraste, abracei-me a ti como quem abraçasse a própria vida, agarrando-a, para me não escapar. E beijei-te o rosto uma e muitas vezes, sem parar. Como eu adorava ver os teus olhos de mar a brilharem e aquele lindo sorriso que tinhas quando estavas feliz!

Quando acordei, o guarda dizia-me que estava na altura de me ir embora. Foram as palavras que eu mais teria querido ouvir naquele momento. Saí depressa e nem sequer olhei para trás: era uma imagem que não queria reter.

Quando cheguei a casa, lavei-me como quem lavasse a alma, e parecia que a imundície, tal como o pecado, não me queriam largar. Deitei-me ao comprido, languidamente, na cama, e deixei-me dormir longas e mornas horas, naquele silêncio solitário que preferia agora muito mais ao daquele som infernal que nascia das pessoas e dos seus crimes e que preenchia a minha escola.

No dia seguinte, regressei ao liceu e não olhei sequer para a Marlene e para a Cristina – as suas existências já não me importavam mais.

E, hoje, aqui, perante a Lua que se vai pondo na planície, lembro tudo outra vez, tal como ontem, na quinta. E não consigo esquecer-te, avô. E cada vez te dou mais valor, e à tua simplicidade sapiente, e à tua bondade quase divina, e ao beijo terno que me davas ao deitar.

E adoro a liberdade que tenho e o que faço, e os animais de que cuido na minha profissão de veterinária, e esta planície abençoada por Deus que parece ainda virgem das mãos do homem, sem apresentar qualquer maldade que ele lhe tivesse podido fazer, e digo isto porque nem todos os homens são como tu eras, meu avô…

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