Memórias...
Haviam
passado dez anos desde a última vez que tinha estado lá na terra. A partir de
então nunca mais tivera notícias. Confesso que também nunca escrevi a
perguntar se estava tudo bem. Lembro-me que cheguei a responder a uma ou duas
cartas que a minha avó me tinha escrito, mas, com o passar do tempo, deixei-me
disso. Não nego que sinto saudades da casa da avó e que penso nela
frequentemente. Afinal vivi com ela durante muito tempo e ela tinha sido uma
verdadeira mãe para mim.
Ontem,
quando cheguei a casa cansado, depois de um dia de trabalho árduo, tinha uma
carta de lá, de Azevinhas. Estranhei. Há muito tempo que não havia qualquer
contacto. Esta carta era diferente. Tal como as outras, não fora escrita por
ela: a avó mal sabia escrever o próprio nome. Tinha tentado ensiná-la antes
de me mudar. Mas, diferentemente das outras cartas que tinha recebido, escritas
pela nossa vizinha D. Arminda, esta fora escrita pelo seu médico. Um tal de Dr.
Pompeu. Trazia más notícias: vinha escrito que a avó estava muito mal, no
centro de saúde lá da terra. Recomendava-me que fosse vê-la. De súbito,
senti uma amargura apoderar-se de mim, de certo modo remorsos por nunca mais lhe
ter dado notícias ou a ter procurado. Sabia que era a única pessoa com quem
ela podia contar e tinha-a abandonado.
Saí
de Azevinhas ainda era um miúdo – tinha catorze anos e vim para a cidade
viver com uma prima da avó. Apesar de gostar de lá, da terra, queria morar nos
prédios grandes e andar num carro vermelho, a altas velocidades. Sonhava ser um
jogador da bola: não queria passar a minha vida a trabalhar a terra como os
outros moços lá de Azevinhas. Eu queria ser alguém. Queria crescer na vida e
aparecer nos jornais. Eram sonhos de puto! Sempre fora um sonhador, mas eram o
meu tesouro, e, por eles, lá acabei por me mudar para a cidade, mesmo sabendo
que deixaria a avó desgostosa. Ainda me recordo dela a acenar-me, na paragem
das camionetas, com o lenço branco que trazia sempre no bolso do avental.
Os
primeiros tempos, cá, em Lisboa, foram difíceis. A prima da avó não era lá
muito afortunada e o dinheiro não dava para os dois. O que eu havia levado
comigo também tinham sido só uns troquitos: ganhara-os a fazer uns servicitos
lá na carpintaria, ao lado da casa da avó. Também não deram para mais que um
mês. A vida na cidade começava a mostrar-se mais cara que a de lá do campo. E
o que sabia eu disso? Sempre vivera às custas da minha avó com o dinheiro que
o falecido lhe havia deixado. Nunca precisara de fazer contas ou de me preocupar
se tinha dinheiro para comer. Depressa me vi forçado a procurar trabalho e a
adiar, por mais uns tempos, a carreira de futebolista.
Podia
não ter um carro vermelho veloz. De facto, andava de bicicleta para todo o lado
– tinha-a comprado em segunda mão, pois os bilhetes de autocarro saíam muito
caros ao fim do mês. Da casa da prima da avó ao centro ainda eram uns quilómetros
e, por isso, não podia ir a pé. Só quando o Inverno era mais rigoroso, ou
chovia, é que lá acabava por apanhar a camioneta. Também não tinha uma casa
num prédio grande: a casa da prima da avó estava muito degradada, quase a
ruir. Ficava nos arredores. A mobília era velha e pouca: havia a mesa da
cozinha com duas cadeiras, o sofá, na sala onde eu dormia, e a televisão e a
mobília de quarto da Conceição, a prima da avó. Junto da janela, uma planta
que eu tinha comprado. Sentia saudades daqueles jardins da casa da avó, das
flores…era uma maneira de os sentir mais perto. Mas jogar à bola, jogar à
bola era o que eu queria! Nunca desisti desse meu sonho! O resto não me
importava. Ainda joguei durante uns anitos, mas só um deles foi num clube, um
clubezeco lá dos arredores de que nem me lembra o nome. Costumava brincar à
bola com os miúdos lá da rua depois que vinha do trabalho. Claro que não era
aquilo que tinha sonhado… Mas já dava para lhe sentir o sabor. Lá, em
Azevinhas, não havia crianças da minha idade – brincava sempre sozinho, ou
com a avó.
Eram
dez horas da manhã quando cheguei a Azevinhas. Já tinha passado uma semana
desde que tinha recebido a carta. A viagem na camioneta tinha sido cansativa.
Pelo caminho, vim a recordar-me de quando eu e a avó íamos juntos, de
camioneta, à cidade, para comprar umas roupas para mim, que estava a ficar
crescido. A avó costumava dormir durante quase toda a viagem, e eu, quando me
conseguia manter acordado, contava o número de casas e carros que passavam por
nós.
As
visitas, no centro de saúde, só começavam ao meio-dia. Afinal faltavam duas
horas. Fui dar uma volta por lá, ver se encontrava velhos conhecidos. Era incrível
como tudo se mantinha igual, apesar de tanto tempo passado. Até aquele cheiro a
flores, típico da Primavera, era o mesmo. Lembro-me bem desse cheiro. Por volta
desta altura, costumava ir para o campo com a avó apanhar flores: eram para pôr
na jarra de porcelana que ficava no centro da mesa da sala. A avó tinha-me
comprado uma foice pequenita para eu começar a aprender a lida do campo. O seu
grande sonho era que eu viesse a cultivar os terrenos que o avô lhe tinha
deixado atrás do quintal. “Um dia, há-des
encher estas terras com árvores de fruto, hortaliças, trigo…” dizia-me
ela. Achava-lhe piada: dirigia-me aquelas palavras sempre com o sorriso no
rosto, passando-me as mãos pelo cabelo ruivo, desgrenhado. Apesar de já não
ser moça, achava a minha avó uma mulher bonita. As rugas da idade davam-lhe um
ar de respeito, de altivez.
Acabei
por ir almoçar na tasca do Tó Zé. Era lá que a avó me comprava os rebuçados,
quando era pequeno. Foi o único que me reconheceu. Por um lado, fiquei
contente, aliviado: aquelas pessoas da aldeia adoravam saber a vida dos outros
– poupavam-me o esforço de lhes relatar a minha. Mas, por outro lado,
senti-me triste: afinal, aquela era a minha terra, onde nasci e fui criado.
Aqueles dez anos tinham sido realmente muito tempo longe de casa e de Azevinhas.
Pelo Tó Zé fiquei a saber que a vizinha da avó, a D. Arminda, também se
tinha mudado para a cidade, já fizera um ano. Fora para o Porto, para casa do
filho mais velho. A carpintaria também tinha fechado: o senhor tinha ficado
velho para continuar a trabalhar e não houvera ninguém que se encarregasse das
encomendas. Quase todos os moços e moças tinham deixado aquele sítio,
sonhadores como eu fora. Diziam que tinham ido para a escola da cidade
aprenderem a ser gente importante! Só restavam os velhotes como ele…
Conversa
puxa conversa e o tempo passou. Já se faziam horas de ir ter com a avó –
afinal, tinha sido por causa dela que tinha voltado lá, à terra. O centro de
saúde ficava a cinco minutos dali.
Era
uma construção com poucos anos – via-se pelo branco das paredes exteriores e
pela decoração interior. Dirigi-me à recepção. Sentia-me angustiado,
ansioso. Chamei pelo Dr. Pompeu e disseram-me para aguardar, que ele vinha.
Sentei-me. Receava o que ele me tinha para dizer. Mas não me disse nada:
entregou-me um bilhete que a avó lhe tinha pedido para escrever para mim.
Não
podia acreditar no que lia. Sem dar por ela, já as lágrimas me escorriam no
rosto. Sentia-me culpado. O envelope continha o bilhete, a chave de casa e uma
fotografia minha de quando era pequeno. Chamou-me ali para me ver mais uma vez
antes de falecer. Só vivia porque estava ligada a uma máquina…já nem sequer
falava. No bilhete pedia-me que desse autorização para a desligar da máquina
– não fazia sentido continuar viva. Ai, avó, avó…se eu soubesse!... Ela
olhava para mim com o mesmo sorriso no rosto, de sempre. Era a minha avó de há
dez anos atrás. Parecia-me dizer que já podia morrer. E morria feliz…
Não,
não, não… A culpa era minha. Se eu tivesse estado presente, se eu tivesse
dado notícias, se eu tivesse procurado por ela… Deixei-a desamparada. Jamais
me perdoarei. Fiquei ali, sentado na cadeira do lado da cama, durante horas,
segurando-lhe a mão. Queria que ela me ouvisse pedir-lhe desculpa. Será que me
ouviria?
Já
era noite quando deixei o centro. Tive de assinar uma declaração em como
autorizava a paragem da máquina que, de alguma maneira, dava vida à minha avó.
Sentia que me faltava um pedaço, um bocado do coração…
Fui
até casa. À entrada, os mesmos chorões enormes onde costumava fazer
piqueniques quando era mais novo. A avó trazia-me leite com mel, duas torradas
com manteiga e uma peça de fruta. Fazia tudo o que eu queria, tudo do que eu
gostava. E eu, eu tinha-a deixado morrer.
Dentro
de casa, parecia que os anos não tinham passado: continuava a mesma jarra em
cima da mesa da sala, a mesma cortina de renda caía sobre a janela da cozinha;
os talheres, as louças, tudo continuava como no dia em que partira para a
cidade. Nem o pote de barro, onde guardava o dinheiro para a feira, tinha
mudado! O meu quarto…parecia um museu. A avó juntara todas as minhas lembranças
sobre as prateleiras e a cama. Fotografias preenchiam o tampo da cómoda. Nem eu
já me lembrava delas… Meu Deus! Quanta coisa que tinha perdido! Mas agora era
tarde, tarde para voltar atrás. Pela primeira vez senti-me arrependido de ter
deixado Azevinhas. Fui sentar-me na cadeira de baloiço da varanda onde a avó
me fazia camisolas de malha para quando o Inverno chegasse, enquanto eu brincava
no quintal. Fiquei ali a desfolhar o meu álbum de memórias.
Só
voltei a Lisboa uma semana depois. Tinha ido buscar as minhas coisas. Voltei
para Azevinhas. Sabia que já era tarde, mas talvez ainda fosse a tempo de
realizar o sonho da avó. Aonde quer que ela estivesse, haveria de ficar feliz.
Vendi a casa e a oficina: não foram grandes negócios, mas, juntamente com o
que durante anos tinha guardado, já dava para um resto de vida sem preocupações.
Não
queria aquele dinheiro. Não para ficar guardado. Talvez se lhe desse uso
pudesse, de algum modo, atenuar o desgosto que me tinha trazido. Com ele comprei
adubos, sementes e alfaias para lavrar os campos. Perto do centro de saúde
construí uma escolita para os pequenos que não tinham dinheiro para ir para a
cidade aprender a ler e a escrever. Arranjei ainda um campito de futebol para
todos os putos que tivessem o mesmo sonho que um dia tivera: ser jogador da
bola!
Não
mais saí de Azevinhas. Via as árvores crescer, tinha uma rica horta de hortaliças
e, durante muito tempo, semeei trigo. Aquando das colheitas, dava um jantar lá
em casa para as pessoas que me iam ajudar! Guardava algumas dessas colheitas
para mim, mas o resto vendia no mercado. Todos os sábados, de manhã, continuei
a ir apanhar flores para manter a jarra como a avó gostava. Pegava na minha
foice pequenita e lá ia eu… ter com a avó. No tempo que me sobrava, ia ver
os miúdos darem pontapés na bola, pensar que um dia tinha sido assim, e
passava pela escola para ver como as coisas andavam.
Só
queria que a avó sentisse que podia contar comigo.
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