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Raquel Damas Carvalho Martins



A minha própria prisão

Mais um dia de festa de luz, típica do Verão. E, ainda assim, não o consigo ver, não consigo ver o sol… Enjaulada nesta masmorra, que me impede de sentir a vida, meu corpo desfalece e rende-se. Pouco a pouco, tenho vindo a perder a esperança naquilo que poderia vir a ser uma vida feliz. Por muito grande que seja o meu desejo, jamais conseguirá transpor estas grades que me prendem aqui, a este lugar, só e rodeada de gente. Sofro, porque da minha infinita tristeza não consigo apagar as memórias de uma infância feliz, a imagem de um sorriso (passam vinte anos desde o meu último), a sensação de estar viva, porque, em plena consciência, me é impossível deixar de pensar na multidão lá de fora, que anseio por ver, nos caminhos pelos quais pretendo correr como dona de mim, no mundo perfeito que me espera… porque vivo sozinha ao som do meu coração

Era ainda uma miúda quando aqui vim parar. Enganos do destino, estou certa. Nestes dias vazios e sem sentido, interrogo-me constantemente como teriam sido estes vinte anos – e todos aqueles que ainda se adivinham – se a própria vida não me tivesse traído. Estava perto dos sete anos quando notei os primeiros sinais. Mas, como criança que era, nunca pude imaginar a crueldade

a que iria ser submetida. Para mim era apenas uma doença passageira, uma gripe, um febrão.

Era diferente da pessoa em que me tornei. Nasci numa cidade plantada à beira-mar onde passava os dias a brincar no areal imenso e branco que o mar beijava. Ficava sempre com a sensação de que, durante aquele intenso vaivém de ondas, o mar procurava algo naquele emaranhado de grãos de rocha. Tal como hoje, desesperada, procuro a mina vida. Lembro-me de ficar a olhar para aquelas águas azuis, horas a fio, como se previsse a minha própria tragédia. Como se fosse pela última vez. Mas, rapidamente, essa nostalgia se perdia nas gargalhadas dos meus irmãos. A sua alegria era perturbadora e contagiante e, sem dar sem dar por mim, logo me encontrava envolvida nas suas brincadeiras. Como se fôssemos super heróis corríamos pelas dunas, sem parar, dávamos cambalhotas e fazíamos acrobacias dignas de grandes qualificações em provas olímpicas! Incansáveis, tínhamos a nossa própria visão da vida, o nosso próprio paraíso – como agora, nas minhas viagens pela

Memória, lhe chamo. Mas, hoje, o paraíso está longe e impossível de alcançar. Estou presa neste lugar onde não há sol, não há mar, não há alegria… apenas eu e um conjunto de outros seres sem rosto.

Durante esses efémeros dez anos, em que fui livre, são vários os episódios que me marcaram e que relembro nestes dias vazios. Um dos que gosto mais aconteceu tinha eu cinco anos. Íamos passar o fim-de-semana a casa da tia Fátima, com a mãe, porque o pai estava para fora, em trabalho. A viagem até Santa Apolónia, de comboio, foi longa e um verdadeiro tormento para nós, crianças, – o Quim, um ano mais velho do que eu, e o Dário, com três anos. N

Não parámos, um só segundo, quietos, ora por saturação, ora por brincadeira. A mãe (querida mãe, que saudades…) já punha as mãos à cabeça, e a única coisa que conseguia fazer era pedir desculpa aos outros passageiros.

Quando chegámos, os tios já estavam à nossa espera, de braços abertos. Enfiámo-nos no carro e fomos para o Rossio, onde ficava a casa da tia.

Era um apartamento amplo, com vista para o Tejo. Adorava aquela vista: fazia-me recordar o meu paraíso de águas azuis…

Eu e o Quim ficámos num quarto; o pequenito e a mãe no outro do lado. Deitámo-nos cedo, cansados da viagem.

Já a madrugada se erguia, quando acordei e dei pela falta do Quim. A correr, fui acordar todos em casa.

Instalou-se o pânico! A mãe chorava de desespero, a tia andava aos gritos pelo Quim e o tio Zé saiu à rua, em pijama, para procurá-lo. Estávamos já para chamar a polícia quando o Dário o encontrou: estava enrolado dentro da banheira… a dormir!!! Era uma banheira antiga, de pés, lindíssima. A tia adorava antiguidades. O Quim era sonâmbulo e ninguém se tinha lembrado disso. Apesar do medo que senti de perder o meu irmão querido (onde estás, que não te vejo?), hoje relembro, com gosto, os sorrisos e gargalhadas que, juntos, e no fim de tudo, soltámos. Aqueles rostos, aqueles olhos transparecendo um alívio, uma felicidade que por muito que a procure aqui e agora, não consigo encontrar hoje. Não vejo rostos nem olhos… apenas a escuridão que me cerca.

A minha família já só existe no conjunto destas lembranças. Não a vejo há anos, tantos quantos os sóis que não vi pôr ou as luas que não vi nascer. A última vez que os vi tinha dez anos. Foi antes de tudo se apagar. Hoje, passados vinte, serão outras pessoas. Será que, se os pudesse ver, os reconheceria? E eu? Como estarei? Como será o meu rosto de mulher e um corpo de trinta anos?... Lembro-me dos meus caracóis escuros caídos sobre os ombros, das minhas perninhas esfoladas, sujas de terra, e de pouco mais.

Meu pai… o homem mais bonito de quem tenho lembrança. Soube que tinha falecido havia uns seis anos, vítima de uma doença que se arrastara: cancro no pulmão. Nunca veio ver-me. Não que tivesse vergonha, julgo, mas para me poupar, para evitar que sofresse (se fosse possível). Sempre fora extremamente sensato e um pai dedicado. Mais do que a minha mãe, preocupava-se em estar ao nosso lado, em acompanhar-nos nas nossas loucuras de crianças. Guardo comigo uma imagem sua muito especial – quando entrei na escola primária, o meu primeiro dia assumia-se-me como um pesadelo. Chorava com medo que me deixassem ali sozinha (como estou hoje), no meio de outras crianças que choravam também. Meu pai, ao saber da minha tristeza, não hesitou em alegrar-me. No intervalo, houve um recado expresso da directora da escola para que não saíssemos da sala. Assustados e ansiosos, ficámos à espera, calados. De repente, um palhaço enfiado num fato de macaco às bolas e ostentando um grande laço ao pescoço, de máscara e uma peruca verde e amarela, irrompeu pela sala, balbuciando palavras que não conseguíamos entender. Apenas nos ríamos: demos gargalhadas até nos doerem as barriguitas. Foi um espectáculo e tanto! Perdi o medo à escola e aos meus novos amigos, o medo de encontrar um novo paraíso onde os meus irmãos já não estavam. E o dia acabou sem eu dar conta e, alegre, retornei a casa, entusiasmada e senti-me na obrigação de contar a todos o episódio. Meu pai sorria, apenas, perante os meus olhos que, certamente, brilhavam qual uma estrela no céu. E fez questão em ir deitar-me: “ Tenho um presente para ti, Rosa” – disse. Já aconchegada nos cobertores, abri o pacote: era um fato de palhaço, uma máscara e a peruca, igualzinha àquela que tinha visto na minha escola! O palhaço era o meu pai! Nem queria acreditar… Passou-me a mão quente pelos cabelos e beijou-me a testa, como um anjo da guarda que olhasse por mim e não me quisesse ver entristecida. Obrigada, pai, por me teres feito tão feliz, nesse dia!

O Dário, agora com vinte e oito anos, e a mãe vêm cá frequentemente. Mas, muitas das vezes, peço para dizerem que estou a descansar. Não tenho coragem de os enfrentar, de enfrentar o seu carinho por mim, confesso. Talvez porque o sentimento que nutro por eles seja diferente. Amo-os?... Muito. Mas, fundamentalmente, invejo a sua perfeita condição, a oportunidade que tiveram todos de viverem e serem felizes, de sonharem. Não é possível sonhar engaiolada!

Sinto um carinho especial pelo Dário. Talvez porque seja o único que já não se lembre das nossas loucuras no paraíso. Segundo diz todas as lembranças que tem de mim estão marcadas pelas minhas crises. Foram uma constante desde os meus sete anos, altura em que já usava óculos. Desde então nunca mais fui a mesma… Nem sei se chore, ou me sinta aliviada, por ele não ter guardado melhores recordações. Gostava que se lembrasse do meu sorriso (meu pai dizia que era o mais bonito do mundo), da vida que eu transbordava. Por outro lado, não lhe noto na voz um tom piedoso, ou, nos gestos, a atitude de quem está a fazer caridade. Encara-me com naturalidade, como se o meu mal fosse de nascença.

Uma das minhas últimas e piores crises foi na festa do seu sétimo aniversário. A casa da praia estava repleta de crianças, de vida, de alegria. Havia balões e serpentinas por todos os cantos da casa. Parecia Carnaval! O pai tinha providenciado um teatro de fantoches e a mãe um banquete autêntico. O sonho perfeito de uma criança!... Mas não para mim que, na altura, já sentia as consequências do meu mal. O Dário tinha um sorriso do tamanho do mundo! Se, ao menos, todas as crianças do mundo tivessem, uma vez que fosse, sorrir assim…

Eu já sorri. É isso que me dói: não poder sorrir mais. A tristeza veio com o apagar das velas. Desatei a gritar por minha mãe que se encontrava junto de Dário. Com as mãos no rosto, caí no escuro. Dário corria para mim e não, não vi o seu rosto assustado, nem o de nenhuma daquelas crianças que presenciaram a minha desgraça. Apenas ouvia gritos, choros, a angústia. Meu pai pegou-me ao colo e levou-me dali.

A luz chegou dois dias depois. Nunca a escuridão se tinha prolongado tanto. Sabíamos que nada podia ser feito. A minha hora estava para chegar…o Dário não ficou magoado comigo: apesar da idade teve maturidade para perceber. Eu, eu é que nunca perdoei à vida o ter-lhe roubado aquele momento de conto de fadas.

Meu irmão Quim faz anos que não vem cá. Outrora, sempre que podia, dava cá um salto, mas já lá vão dez anos que não aparece. Está em Roma. Foi para lá estudar com uma bolsa e acabou por lá ficar e constituir família. Manda-me postais, fotografias, cartas… mas esquece-se da minha própria fatalidade. Guardam-me tudo na minha caixinha na esperança de, um dia, tudo poder ver.

Esta caixa é-me muito especial. Foi uma prenda de despedida quando tive de vir para este asilo. Nunca a vi. Sei que foi lá em casa que todos a fizeram: a cada um coube uma parte. Nela puseram um bocadinho de tudo aquilo que eu adorava e tinha de deixar para trás. Nos momentos mais difíceis agarro-me a ela. Como pode uma vida caber dentro de uma caixinha!... Será vida?...

A mãe fala-me sobre as coisas lindas que o Quim faz. É um artista: pinta paraísos. Iguais àquele que um dia tive? Acho que sim… Leu-me uma vez uma carta em que vinha escrito: “Rosa querida: continuo a pensar em ti e na vida que te retiraram. Pergunto a Deus o que é feito do seu bom senso!!! Dos três, eras a mais viva, a mais alegre, quem fazia das nossas tardes, das nossas loucuras, um paraíso, uma história encantada. Sei que não te habituas a esse teu novo mundo. Meu amor, também não aceito. Hoje estou longe, longe de ti. Perdoa-me, mas vim por ti, pelos teus sonhos, pela tua vocação. Quando, uns anos mais tarde, já depois de teres ido para aí, descobri os teus desenhos e a mãe me contou os teus sonhos de pintar paraísos como aquele em que vivias e que desejavas, tomei a maior e a melhor decisão da minha vida. Não podia deixar, Rosa, que tudo te fosse roubado. Embora o talento fosse teu, mudei-me para cá, esta cidade cheia de essências propícias à criação e ao surgir da imaginação. Tenho a certeza de que ias adorar, de que te sentirias em casa. Hoje, pinto: crio os teus paraísos. Não posso dizer que seja talentoso, mas até tenho tido algum reconhecimento. Ainda assim, pouco me interessa – não vim por isso. Sei que não é a mesma coisa, minha querida… mas não podia deixar que os teus tão belos sonhos ficassem aí, presos contigo. Assino sempre: Rosa. Espero que não te importes e me desculpes por não fazer mais. Espero que, um dia, possa vir a entender o que dizem os teus olhos e saber que poderás vir a assumir o teu sonho aqui, junto de mim, no paraíso em que sempre desejaste viver. Ah! Rosa, Rosa. Quem sabe, um dia… encontrarás, de novo, uma razão de viver. Beijos do mano. Quim.”

Irmão: agradeço-te a dedicação. Sempre foste assim: tiveste o maior cuidado comigo como se fosse frágil e me pudesse quebrar. Hoje, penso que, de algum modo, já sabias a escuridão que me esperava!

Mas foi engraçado como o Dário reagiu melhor do que ele: das poucas vezes que veio sempre o senti hesitante e com medo de fazer, ou dizer, algo menos adequado a uma pessoa como eu. Entendo-o e não o censuro. Também ele tem presente a dimensão da diferença entre aquilo que fui e o que agora sou. Pelo Dário fiquei a saber que o Quim já tem duas princesinhas e que a mais nova é muito parecida comigo. Costumo pedir à mãe que me conte coisas sobre eles. Saber que são felizes e vivem bem já diminui o meu sofrimento. E a mãe atura-me nestes meus momentos de solidão. É a única pessoa com quem falo sobre o meu estado, sobre a tristeza que me consome.

Noto que ela chora quando conversamos – só não sei se é pela minha situação, se pelas palavras que me saem, ora impregnadas de amargura, ora com a fúria de um temporal. Mãe, querida mãe… Há vinte anos que a tua vida tem sido uma sinfonia amarga, azeda, cheia de dissabores. A minha desgraça, a doença do pai, a partida do Quim. Resta, a teu lado, só o Dário que não tardará em abrir as asas e construir o seu próprio ninho. Mas, tu, continuas firme, forte. Admiro-te. De nós os cinco sempre foste a mais forte.

Lembro-me de quando tivemos aquele acidente de carro no caminho para casa da avó Ceição: partiste a perna. Nós, pequenos, chorávamos, desafinados, dentro do carro. O pai parecia ter visto um fantasma!!! E foste tu, apesar das dores agudas que sentias, que nos acalmaste, que puseste a ordem.

Lembro-me, também, de quando o Dário fugiu. Estávamos todos de férias, na Quarteira. Como de costume, dormimos uma soneca depois do almoço e, ao fim da tarde, fomos para a praia. Quando chegámos à barraquita que alugáramos, demos pela falta do Dário. Tinha ficado pelo caminho!...O pai já só pensava em chamar os nadadores-salvadores e a polícia; eu e o Quim corríamos dum lado para o outro feitos baratas tontas, a levantar areia para cima dos outros banhistas (como já era habitual!), e que começavam a desesperar, e tu, mãe, foste a única que mantiveste a calma e conseguiste pensar direito. Serenamente, dirigiste-te ao pai e disseste que o Dário só podia ter ficado em frente a alguma daquelas lojas que vendem brinquedos de praia pelos quais andava fascinado. Todos os dias chorava porque queria um brinquedo novo. Adorava ficar a ver as cores das bolas, as velas dos barcos, as variedades de pás e baldes de areia! E a mãe tinha razão – fomos dar com ele, sentado em frente de uma vitrina, todo deliciado com um chupa-chupa que a dona da loja lhe tinha oferecido!

Queria, mãe, ter coisas alegres para te contar. Queria, mãe, sentir-te sorrir enquanto estás comigo. Lamento: esta saudade que me bate, abate e maltrata o meu coração. Sinto falta do tempo em que me pegavas no colo e me fazias rir; do tempo em que te deliciavas com as minhas baboseiras. Mas esse espírito alegre, essa alma viva não mais habita em mim. Sou apenas um corpo vazio, distante, cansado de viver, o que dá pena a quem me conheceu.

Mas não posso culpá-los pela distância que hoje nos separa. Por muito tempo, fi-lo – tentava, de algum modo, atenuar a raiva que me consumia, a revolta que sentia. Que sinto…por me ter tornado num ser diferente, por não ter podido crescer como o Quim e o Dário, por ter tido de abandonar o meu paraíso, por não ter podido continuar a ter o direito de ser feliz… Se me esforço?...Se tento continuar?... Não faz sentido. Durante anos, preocupei-me em tentar adaptar-me a este novo mundo. Anos a fio, tentei esquecer a minha realidade – foi inútil e impossível. Podia ser indiferente, ou já me ter habituado, mas cada dia que passa, cada sol que nasce me traz um novo tormento: aumenta a minha dor, a minha infelicidade, a altura da muralha que me separa do mundo.

Não posso ter uma vida normal. O próprio local onde vivo é especial, para pessoas como eu. É estranho não conhecer nenhum daqueles que também aqui se encontram presos, não saber como são. Pergunto-me, tantas vezes, o que posso mais fazer para me sentir menos miserável…mas não encontro a resposta. Confesso que qualquer pensamento me encaminha para aquilo que um dia fui, para estas memórias que me acompanham há vinte anos. Tento trazê-las, de novo, para esta penosa realidade: em cada toque que sinto procuro encontrar as carícias da mãe, os abraços do Quim e do Dário; em cada aroma que me chega procuro o cheiro do meu paraíso; por cada barulho que ouço, tenho esperança que seja alguém a dizer-me: estás livre! Tenho a consciência de que é por me ligar tanto a estas lembranças que me sinto um pouco mais infeliz a cada minuto que passa… por, no silêncio da noite, ficar a imaginar o que a minha vida poderia ter sido. Será que as pessoas que me cobram esta tristeza sabem o que é viver na solidão, ao mesmo tempo que me encontro rodeada de gente, barulho, vida? Será que imaginam o que é não poder ver as flores florescerem na Primavera, as folhas caírem no Outono? Não poder presenciar o envelhecer da minha mãe e o florescer das minhas sobrinhas? Não poder brincar na areia, ou tomar banho no mar? Ver tudo sempre escuro? Será que têm a noção do que é crescer, passar os melhores anos da vida como deficiente visual?...

Sim. Sou cega.

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