Selecção de Excertos


Aspecto do centro de Aveiro - Canal Central - 2008.

“Não sou nada disso a que me referi há pouco e, contudo, sinto-me contente por haver nascido no Distrito de Aveiro. Contente porque a terra é maravilhosamente bela, duma beleza deslumbrante, variada, jamais repetida, desde as suas montanhas verde-escuras, por onde deslizam múrmuros arroios, aos vales onde o pão dos homens cresce vizinhando flores, muros floridos de lírios e malmequeres, janelas engalanadas de cravos e sardinheiras, e de aí, através de mil relevos orográficos, duma gama infinita de cores, até as suas praias douradas, em frente dum mar onde os portugueses embarcam o seu drama e o sonho duma aventura que não podem ter na Pátria.”

Aspecto do centro de Aveiro - Canal Central - 2008.

“Começam a luzir no céu e na Ria, ao mesmo tempo, miríades de estrelas. É a Ria também sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. Eu, por mim, adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é este, talvez, o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na Ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres, e até as coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia.”

Manuel da Costa e Melo (1913-2002)
Advogado, Escritor



“Mas, com vento, formam-se cavalinhos de espuma branca soltos ao vento, que quando presos às pontas do junco, fazem nascer água na boca de desejos de algodão doce, daquele que se vende nos carrinhos que palmilham a Costa Nova à procura da nossa infância.”

Salinas de Aveiro. Troncalhada.


“Mais adiante, e por debaixo da actual sede do clube dos Galitos à qual os arquitectos não souberam dar a traça que a enquadrasse com o local, ficava a livraria reis, onde os aveirenses iam beber sabedoria e ideias libertadoras.”

João Pereira de Lemos (1932-…)
Escritor, Desenhador-Projectista, Pintor de azulejos


Canal Central,Capitania e Fórum.

“Formoso é o aspecto de Aveiro que, sentada num extenso tapete de verdura, sob o azul dum céu puríssimo, vê deslizar a seus pés as plácidas águas da ria… esse lago em que se unem em fraternal abraço as águas do Oceano com as do Vouga.”

José Augusto Marques Gomes (1853-1931)
Jornalista, Historiador, Escritor


Aspecto da cidade de Aveiro junto ao Canal Central - 2008

“Aveiro
Oh! Cidade lendária, és um poema
Que outrora andou nos lábios das tricanas!
(…)

És um jardim em flor, lindo cantinho
Onde os canais se cruzam com beleza;
Onde o Vouga desliza de mansinho;
Fazendo relembrar outra Veneza!
(…)”

Silva Peixe (1902-1976)
Poeta, Pintor


 

“O Gabão de Aveiro
Eu fui o Gabão de Aveiro
Que há muito larguei a palma
Agora, já não existo
Rezem-me todos por alma

Fui alguém, prestei serviços
A todos agasalhei
Tive aqui o meu reinado
‘té que em nada me tornei.

Só estou no pensamento
Dos saudosos do passado;
Fui esquecido de todos;
Raras vezes sou lembrado.”

Estátua de José Estêvão.

“A cena representa o Largo Municipal. Ao fundo, o edifício da câmara e, em plano anterior, a estátua de José Estêvão. Bancos de Jardim.”


“É este. Vou descrevê-lo a V. Ex.ª. O largo dos pacatos é um recinto arborizado, aveirense de lei, que vê: a leste, a farmácia com os seus remédios; a D. Célia com a sua cirurgia; o Soares com a sua dentadura; o Manuel Moreira com os seus panos e vidros; a Misericórdia com os azulejos e o Colégio Português com a sua tabuleta escrita em “pretuguês”; ao Norte, o Correio com a sua inebriante água-de-colónia; ao Sul, a Câmara, a Domus Municipalis, com as suas eternas, mas encantadores ruínas e higiénicas prisões; e ao Poente, o Liceu, de gloriosa memória e académica tradição.”

“Esta estátua é do grande José Estêvão. Descobriram, não sei como, que foi sindicalista, e todos os anos aqui vêm os anarquistas oferecer-lhe um livro… de pedra! É uma biblioteca!”

José Pereira Tavares (1887-1983)
Professor, Pedagogo, Reitor do liceu de Aveiro entre 1916 e 1957

Entrada no Parque Infante D. Pedro a partir do estádio Mário Duarte - 2008
 


 
Feira de Março - 2008.

“A feira de Março, quando abre as suas portas, aparece-nos sempre, sem sombra de dúvida, como um espelho da comunidade onde se insere a comunidade, rica, multifacetada, aberta as concepções da vida moderna, que transporta para dentro do certame toda a sua pujança comercial e industrial desta laboriosa região.”

Girão Pereira
Presidente da Câmara de Aveiro durante vários mandatos, Eurodeputado

 


 

“A paisagem aveirense tem as transparências cristalinas do céu Mediterrâneo e conjuntamente a suavidade e a velada languidez duma Primavera da Holanda ou dos recessos abrigados dos mares escandinavos; tem a vastidão da estepe e os mimos e a frescura dos vales protegidos das montanhas.”

Aspecto do Rossio - 2008

Jaime Magalhães Lima (1859-1936)
Escritor, Contista, Ensaísta, Romancista, Conferencista, Jornalista, Publicista


Moliceiro desenhado com o empedrado em calçada portuguesa - Aveiro, 2008.


“Quem souber andar a pé pela cidade e passear em torno de alguns lugares inscritos no centro urbano, vai de certo encontrar painéis cerâmicos vidrados e coloridos, mexidos pelas texturas irregulares pelos reflexos cruzados. São painéis de Zé Augusto. São os que revestem faixas da cidade e que nos conduzem o olhar. São alçados de fontanários que tornam ainda mais fresca a água que brota das bicas (...) as mãos que ele modela têm os dedos aos sulcos como montinhos de sal e as palmas da mão são longas, planas e recortadas como os esteiros na ria.
Estas mãos que o ceramista modela no barro agreste da região têm a mesma cor destas nossas terras feitas de lama e de mar. Feitas de areia e de junco.”

Maria da Luz Nolasco
Professora, Ex-Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Aveiro,
Ex-Directora do Museu de Aveiro,
Actual Directora do Teatro Aveirense


“Nós, os de Aveiro, mesmo no céu, havemos de ter alguma saudade do fresco panorama do sal, da alva sementeira das praias, da faina dos marnotos tisnados, da graça ligeira das salineiras.”

Salinas de Aveiro - 2008

“Assim plasmado de Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas da ria por todo o corpo, por toda a alma, (...) eu sou uma nesga, embora minúscula, desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um pedaço da nossa terra (...)”
 

Novo Estádio Mário Duarte - 2008

“Os nossos clubes
Eu aplaudo (…) aos clubes da minha terra (…) o «Beira-Mar», o «Mário Duarte», os «Galitos», os outros todos cuja lista sairia com certeza incompleta da minha pena; e, se nada mais lhes posso dar, dou-lhes ao menos, com mãos ardentes, as minhas palmas de espectadores. (…) Viva o Beira-Mar! Vivam os Clubes de Aveiro, (…)”
 

 
Aspecto do Canal Central - 2008

“A Ria de Aveiro
Olha-se para um lado: água, muita água, brisas, espumas, velas, barcos, moinhos, areia e sol!
Olha-se para outro lado: tabuleiros de cristal, montinhos brancos expostos ao tempo, marinhas, marnotos e salineiras, a planície, a imensidade, e, no fundo, no extremo horizonte, a sombra quase imperceptível, a divina moldura dos pinheirais!
Olha-se para trás: a cidade (…) é a cidade, é Aveiro!”

João Evangelista de Lima Vidal (1874-1958)
Bispo de Aveiro


Passeando no Canal Central - 2008

“Aveiro é uma cidadezinha linda, cantante, arejada, que desabrocha como uma fresca flor aquática, como um enorme nenúfar banco, de entre as águas que por todos os lados a cingem, a atravessam em canais, a banham, a reflectem, a espelham, lhe erguem um hino claro, tremente, entusiástico, apaixonado. É a Flor das Águas, a Flor do Mar – e a água é a alma suprema, activa da paisagem. Cercam-na vastas campinas verdes, cortadas de canais minúsculos, por onde deslizam esbeltos saveiros; salinas que relampejam ao sol como cristais rútilos; moinhos que gesticulam e batem asas sobre o vasto poder, todo ensopado de água; rebanhos de vacas que pastam nos frescos lameiros; águas onde palpitam, em maravilhosos jorros de luz, todos os reflexos, todas as imagens, ora ondeantes como sombras, ora flamejantes como brasas, e, segundo a hora e a altura do sol, umas vezes cor de turquesa, outras cor de safira, outras cor de nácar, outras cor de coral – e tudo isto dando-lhe um aspecto de leveza, de frescura, de graça, de intimidade repousante e doce.

Domingos Guimarães
 


 

“Mas a minha cidade mudou. As casas subiram até às alturas impensadas. As ruas são de asfalto, mas proibitivas. O perigo espreita a cada esquina o momento da nossa distracção. O som lúgubre da sereia das ambulâncias não deixa perceber já a proximidade do mar. Afastou as aves dos beirais. O próprio sol detém-se lá muito em cima, acenando-nos com mágoa, como que desejando explicar o impedimento da apetecida aproximação.

Pormenor da Avenida Dr. Lourenço Peixinho - 2008

 Hoje, apertam-nos em faixas riscadas de branco e, como rebanho de dóceis ovelhas, conduzem-nos com o chicote da luz de cores. (…) Foi preciso viver todos estes anos para aprender a percorrer as ruas aos soluços. Aquelas em que se consertavam redes, se empilhava o peixe, se franjavam os xailes, se enxugava a roupa, se conversava, se discutia, se tocava vida e se arriscava a cantiga brejeira, volveram pistas de máquinas desenfreadas. Irreconhecíveis. (…)”

“A iluminação das ruas reflecte-se no asfalto molhado (…). Não vale a pena escrever. Lugares comuns que só o suor pode transformar em arte.”


“Variações quase sentimentais sobre uma cidade
Que posso eu fazer? Como falar dela? Repetir-lhe os lugares-comuns tão ao jeito de certas camarilhas?, de certos sectores imobilistas, e que há tanto nos magoam os ouvidos? Chamar-lhe a Veneza do país ou enfeitá-la com roupagem de igual quilate e de tão pronunciado ridículo? Uma cidade não se descreve, caros amigos, vive-se. Uma cidade não se retrata, respira-se. (…) E a luz desta cidade, amigos?! (…) A luz inunda-nos, simplesmente. (…) É que nunca nos habituámos a considerar essa ria, esses barcos, esses desenhos, uma coisa autónoma!; é que nunca conseguimos isolá-los do conjunto a que chamamos cidade, e essa… essa é para nós tão grande, que lhe não encontramos qualificativo capaz de a conter. (…) Defeitos?! (…) No cheiro da sua ria à hora da vazante, na agressividade do seu clima, um clima que nos enche de reumatismo e nos ensalitra as casas. (…) A minha cidade é o que é; nada mais.”

Aspecto da avenida Dr. Lourenço Peixinho - 2008


“A Avenida de Outrora
A Avenida é hoje, talvez, a artéria mais popular da cidade. O comércio tem ali a sua posição ideal e a gente de haveres os seus prédios de rendimentos.”

Vasco Branco (1919-…)
Áreas de trabalho: Literatura, Cinema, Pintura, Cerâmica
 



“Iria penetrar nas ruínas vivas de Aveiro, no sangue que animava aquelas gentes, conhecer-lhes a vida, obra e essência. Desvendar as marcas que as mãos houveram imprimido e moldado no tempo, em sonhos, glórias, fraquezas, tradições…”

João de Mancelos (1968-…)
Professor e Escritor



 

“A Cidade
Árvores infinitas
Povoando
O nosso espaço
E gritos
E sóis
E hinos matinais
Silêncios coloridos
Rios e mares
Alguma fome
E sempre a esperança
Na manga do dia seguinte

A cidade era agora
Um fogo sofrido do tempo
E a memória dos pássaros
Presente.”

Rossio de Aveiro - 2008

Clara Sacramento (1948-…)
Professora, Escritora


 
Ovos moles de Aveiro - 2008

“São seis barrilinhos d’ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro tem ‘chic’… Pergunte V. Ex.ª ao Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que é uma delícia, até conhecida lá fora?”

Eça de Queirós (1845-1900)
Escritor
 


“A Ria de Aveiro

A Paisagem
21 de Julho de 1920

A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. (…)

O homem nestes sítios é quase anfíbio: a água é-lhe essencial à vida e a população filha da ria e condenada a desaparecer com ela. Se a ria adoece, a população adoece. (…) A ria, como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e produz. (…)

Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e, noutro país, esta região seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos. (…) Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se no areal. (…) É a ria também é sítio para os que amam a luz acima de todas as coisas. (…) Na ria, o ar tem nervos. (…) A luz aqui estremece antes de pousar (…) A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto.”

Raul Brandão (1867-1930)
Militar, Jornalista, Escritor

Canal das Pirâmides - 2008


“Na cidade é diferente. Na cidade... Essoutro Aveiro onde não há maresia, esse Aveiro da velha avenida de pavimento obsoleto, da Ria negra de maus-tratos, de estátua de um tal José Estêvão do qual todos sabem ter sido um grande homem mas poucos sabem ao certo porquê. Na cidade há poucos espaços para nostalgias, no entanto, a vontade de regressar as origens é constante.”

Nuno Miguel Pereira Reis
Aluno do Liceu de Aveiro entre 1985 e 1991
 


 

“Os seus pés descem a escadaria para a rua. Agora pisavam o chão da sua fresca cidade, onde o azul descia a deixar uma luz do céu, por ali espalhada. Seguia pelo passeio, rente ao casario, enfeitado de lindos desenhos feitos com pedras esbranquiçadas, de mistura com outras de cor escura, quase pretas. Calcava, assim, flores estendidas, algas e conchas, a proa de um barco, uma âncora, um peixe, até um barco moliceiro com a respectiva vela. Aqui e ali, um barco estilizado, com os remos nele atravessados, a navegar sobre as ondas, desenhadas em traços curvos. Era o grande Oceano a vir até à sua cidade. A ficar nela.”

Pavimento em calçada portuguesa da Rua Direita. - Aveiro, 2008

Cecília Sacramento   (1918-2005)
Professora, Escritora
 


“… Quem viu uma procissão em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma. (…) Os andores, a maior parte das vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!”

Homem Cristo (1860-1943)
Professor, Jornalista, Militar
 


 

“Alavário
Alavário.
Palavra que diz a terra e a água,
O ovo e a asa que foram,
O passado e a história antiga,
A luz e o sal, o suor, o azul.



Terra de peixe e de barcos.
A voz que vem de longe
A cantar a espuma e a areia.
Proa que avança no vento.
À flor do sol e da maré-cheia.
Alavário”

“São Gonçalinho
Um pescador
Acenderá na capela
O pavio
Da tua devoção.

E, com fragor,
Cairão
No chão
As cavacas
Da promessa.

Tu,
São Gonçalinho,
Sorris,
Na tua imagem,
Ao olhar risonho
Da miudagem.”

 
Canal das Pirâmides e Rossio - 2008 “Palmeiras do Rossio
Há palmeiras no Rossio,
Erguem-se verdes no azul;
Beijam-nas o sol e o vento,
Olham p’ra norte e p’ra sul.

Dão sombra a quem na quiser,
Parca, de boa vontade;
São sentinelas erguidas
P’ra defender a cidade.

No jardim há raras flores
Mas abunda a relva verde. (…)”

 

“Aguarela”

Um moliceiro
Vogando
As águas da ria.


Eugénio Beirão (João Gamboa, 1939-…)
Professor, Escritor, Compositor



“Lá verás Aveiro chamada Veneza de Portugal, comparação que deveria honrar a cidade mas que, na realidade, a envergonha e desilude os visitantes, pelos seus fétidos e mal cuidados canais. E o novo grito me acode: ‘é urgente salvar a ria, os canais, as espécies marinhas!...’ e aqui, recordo a acção importante e valiosa que a Universidade de Aveiro poderá desenvolver na defesa do meio ambiente.”

Cláudia Maria Cruz Santos
Aluna do Liceu de Aveiro entre 85 e 91


Canal do Paraíso - Aveiro, 2008
 



Salvemos o moinho de Aveiro

Ali para os lados onde o casario da cidade acaba e a rasa paisagem lagunar se estende, ergue-se ainda o esqueleto estrutural, decepado e reduzido à absoluta apatia funcional, redondo de planta e ainda sólido nas paredes de pedra rolada de importação quiçá insular, um derradeiro espécime dos moinhos que polvilhavam outrora, ao rés de água, esta zona que se diferencia sem se subtrair no conjunto nacional.

De moinhos estiveram inçados a Ria e Aveiro. Desde os que conferiram esse topónimo a um ponto da estrada marginal da Cale de Vila e que a energia hidráulica das marés impelia para uma laboração precária, aos que disseminavam pelos chãos aluvionares de baixíssima cota, com propulsões eólicas, baralhadas com os palheiros das salinas.

Até ao mesmo Esteiro das Azenhas que, por via delas dava o nome, ao que hoje, não sei por que bulas nem pias baptismais que o legitimem, crismamos teimosamente de Canal do Cojo. E que terão, acaso, inspirado J. Ferreira Pinto Basto a construir, frustrantemente, a «Casa dos Moinhos»”, no termo do velho «llhote do Cojo» — onde está instalada a Capitania do Porto de Aveiro.

Aveiro perdeu, pois, uma velha e caracterizadora tradição de “moinhos”. Redobrada razão para conservar, reconstruir e aproveitar, funcional e culturalmente, aquele que nos resta à mão e autêntico.

Eduardo Cerqueira (1909-1983)
Jornalista
 


“Espaço-festa
Aveiro é uma menina.
Usa vestido de água muito azul debruado a branca renda, de espuma.
Tem um bibe de Sol e usa brancos laçarotes de sal.
Passeia descalça e leve como se voasse
Desnuda-se, aqui e ali, e flutua como se nadasse.
Agita-se no vento e evapora-se como se dançasse.
Aveiro é uma menina e, como as de Degas, bailarina.”

Idália Sá-Chaves (1940-…)
Actual Professora na Universidade de Aveiro
 



 
 

“Aguarela
Campos de Aveiro.
Manchas verdes de arroz,
E a vela dum barco moliceiro
Que um pirata ali pôs.

A servir de moldura,
O velho mar cansado;
E um céu alto a descer e a ter fundura
Na quilha reluzente de um arado.”

 

Miguel Torga (Adolfo Correia Rocha 1907-1995)
Escritor, Médico
 


Aspecto do Canal do Cojo - 2008

“Mareante na proa do navio
Fita o mastro a picar o céu
Envolto de neblina;
Cansado do sargaço nauseante
Rumo à terra em ritmo de prece.

Mareante na proa do navio
Dá à costa exausto
Mas do mar não desiste.”

Rosa Maria Oliveira (1959-…)
Professora, Escritora, Jornalista
 


Ave, Aveiro

(…) Já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes – descubro a beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes, colaboro no crime nefando de mantear (sob a pêra do José Estêvão!) o anãozito das sentinas. Aprendo a respeitar as professoras, […] guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar “O Diabo”, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da “Internacional” – conspiro adolescentemente…

(…) Só me lembro de ter nos braços nos bailes dos Bombeiros (…), de falar em lobos de Alsácia aos bigodes e à barretina de Homem Cristo, de colher nas palmas das mãos o frio e aço de uma das tuas tão singelas (mas tão típicas!) pontezinhas, de ouvir dizer que um médico te receitara carros de areia e de ler as eruditas notas que um dos teus vates pusera na epopeia em que cantava a descoberta do Brasil…

(…) E redescubro, olhando-o melhor, eu eras uma vilazinha apenas, perdida nas brumas do passado… Como eu, cresces desajeitada e errabunda. (…) Pouco tempo tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. (…) E acontece a tragédia: descubro que envelheço mais depressa do que tu – e sem que tenha podido conhecer-te!

(…) Passaram os tempos em que davas ovos-moles e políticos. (Os ovos eram bons, hoje menos. Os políticos óptimos, mas deu neles a pílula). (…) E, todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixado nas marinhas – e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros… Serás cidade, ó vila de outrora! (…) Tens dilúvios aguazados, minha Querida, e arcas de Noé que trazem da Terra Nova os hirsutos precursores dos “hippies” de hoje… Com eles dormes e com eles refloresces, minha Incógnita! O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos séculos!

Ámen.”

Mário Sacramento (1929-1969)
Médico, Escritor
 


Ida e Volta

Franqueava-se um grande portão de ferro e, antes de entrar no grande edifício, percorria-se uma estrada rodeada por bancos vermelhos, plantados nas margens de um grande jardim, mais ou menos selvagem, em que cresciam palmeiras de grandes macieiras e outras arvores de grande porte. Do meio da relva, destacavam-se duas esculturas de ferro. Uma delas estava muito corroída pela chuva. Adivinhava-se que devia ter sido uma mão rasgando a terra e que nessa luta teria perdido quatro dos cinco dedos de tubo metálico.

De ambos os lados do edifício, dentro dos muros, adivinhavam-se grandes superfícies pavimentadas, de onde voava uma vozearia juvenil.

Ao edifício tinha-se acesso por um outro grande portão de ferro. Desembocava-se, então, num grande átrio de pé muito alto. Em grandes placards, podiam ler-se instruções e informações de actividades.”
 

Árvores do Rossio - Aveiro, 2008


“Um dia não são dias. Não?
(…) Saio assim pelas ruas de Aveiro. Saio de casa e sossego o olhar na relva em frente cercada por uma moldura de árvores que ensinam o caminho às estradas velozes. Olho a praceta Afonso Gomes. É uma praceta cuidada pela cooperativa Chave, a relva está verde e as plantas estão a crescer em todo o seu esplendor. No campo de jogos, dois jovens atacam-se com bolas de brincar.

Atravesso o meu bairro de Santiago e procuro e encontro o sossego das praças públicas entre as bandas de casas. (…) Atravesso o meu bairro de Santiago pelos jardins públicos (…) Quando o vento é forte (e é muitas vezes forte) caminho apressado. Quando é brisa de Santiago ou quando está muito calor, vagueio pelas arcadas dos comboios amarelos numa viagem de sombra fresca e não me canso desta companhia das cores vegetais em que quero tropeçar. Tudo depende do olhar.
Passo pelo quiosque e o jornal devolve-me uma tristeza fria. Mas persisto no caminho da gente comum da cidade, esta que nos habitua a andar. Passo pela praça do Marquês. Ainda o pó (agora amarelo avermelhado da cama da calçada) nos acompanha na passagem de uma praça em obras com cheiro a pedras e cimento para outra praça com pessoas e cores vegetais. Na rua dos Combatentes, as cores estão penduradas à altura dos olhos voadores e lá em baixo a água para a esquerda acrescenta-nos a serenidade dos espelhos naturais. Quando subo para a Sé, descanso na relva do museu. A Natália C. pergunta-me pela família. As árvores da rua Passos Manuel encheram-me de folhas contra a agressão da poda. Entro no cercado da escola José Estêvão pelo lado das árvores de majestade sem nome. Dentro do edifício, os corredores estão frescos e os jovens atropelam gargalhadas. (…)”

Arsélio Martins (1947-…)
Professor, Presidente do Conselho Directivo da
Escola Secundária José Estêvão durante quase 20 anos
 


“Aveiro – 2
Céu terreno de ria semeado
De vagas libertadas pelo mar,
Que um dia a entronizou no seu altar
De rendas de brancura, sal bordado.

Qual trono de sol enluarado
No vão da noite, e dia a pespontar,
De proas e de rés vogando a par
No lago reluzente, prateado.

Bendita terra esta, onde a chama
Em tardes de poentes faz a cama,
No berço embalador do oceano.

Bendita terra, meu ancoradouro,
Maravilhoso Aveiro, meu tesouro,
Que por mercê de Deus, se sente ufano”

Amadeu de Sousa (1887-1918)
Pintor e poeta

Aspecto do porto comercial de Aveiro - 2008
 

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