E na altura em que a menina teve de
decidir se depois da quarta classe continuava a
estudar ou não, a mãe dessa menina fez tudo para ela
ir para um Colégio interna porque não havia Liceus
por ali... Os únicos Liceus que havia eram os de
Aveiro e do Porto, de maneira que as meninas daquela
altura iam para os Colégios aprender línguas,
aprender francês, aprender pintura e tal... e essa
menina, teve uma maturidade que eu nem entendo. Queria
era ir estudar e tirar um curso que lhe desse uma
profissão.
E, então, vinha todos os dias num
comboio que saía de Ovar às sete menos dez da manhã,
e da minha casa a Estação era quase meia hora de
caminho; por isso levantava-me por volta das cinco e
meia. Vinha para cá, tinha as minhas aulas e chegava
a casa à volta das sete. Portanto não tinha tempo
nenhum para estudar. Então estudava no comboio para lá
e para cá e quando um professor faltava nos
intervalos das aulas e no intervalo do almoço. Não
havia sequer Cantina, de maneira que trazíamos um
lanche...
Mais tarde, nos dois últimos anos,
já havia Cantina, já era melhor, já havia
oportunidade de comer uma refeição quente. De forma
que foi assim um sacrifício grande vir estudar para o
Liceu. Mas tive a sorte muito grande de ter belíssimos
professores e então em Português... Sempre gostei
muito, muito, muito de Português. De forma que fui
muito afortunada, com o nosso José Pereira Tavares,
que foi um professor que me marcou imenso, que me
ensinou muito, e que ficou muito meu amigo. Na
primeira aula, ele pegou na caderneta, começou a
folheá-la enquanto perguntava aos alunos donde eram,
onde é que moravam... depois chegou ao meu nome
“Cecília, donde é que tu és?” “Venho de
Ovar.” “Ah, de Ovar?! Então como é que tu vens
de Ovar? E estás cá logo de manhã...” “Venho de
comboio.” Ele ficou cheio de pena de mim e depois,
como sempre um grande pedagogo, desviou a conversa.
“Olha, tu sabes o que é que o teu nome me faz
lembrar?” E contou-me, a mim e à turma toda, a história
de Santa Cecília, padroeira da Música, que é uma
história muito linda e muito triste passada nas
catacumbas onde os cristãos se escondiam para escapar
às perseguições.
Depois seguiu-se o curso... E tive o
nosso Dr. José Pereira Tavares a Português e depois
a Latim. Gostei muito de Latim, certamente por ser
dado por ele, porque ele era realmente um óptimo
professor. E tenho dele uma recordação muito, muito
afectuosa e ele foi também um grande, grande amigo. Não
só meu amigo como, depois, também do Mário. Do Mário
por razões especiais. O Mário era um aluno
excepcional em Português. Ele até guardou o caderno
diário do Mário.
Equipa Moliceiro
– Conheceu o Dr. Mário Sacramento quando?
Cecília Sacramento
– Conheci-o no Liceu. Foi meu colega. E eu até vou
falar do Jornal da Escola porque ele está ligado à
minha vida. O Mário Sacramento era o Presidente da
Academia e era o Director do Jornal “A Voz Académica”.
Bem, e é preciso dizer que nessa altura o Jornal era
só dos alunos rapazes... E, um dia, o Reitor mandou
um aviso para as alunas dos últimos anos se reunirem
no dia seguinte em determinada sala. E nós lá fomos
a essa reunião. O Reitor era, nessa altura, penso eu,
o Dr. João Pires. E quem é que aparece nesse
encontro? O Reitor, acompanhado do Presidente da
Academia e Director do Jornal, Mário Sacramento. Então,
disseram ao que vinham: que era uma injustiça que se
cometia não haver representação de alunas no Jornal
da Escola. Então vinham ali para dizer às alunas
mais adiantadas que pensassem e escolhessem uma aluna
para as representar na Redacção do Jornal. E o que
é que aconteceu? Olhem escolheram-me a mim e eu fui,
portanto, a primeira aluna a fazer parte da Redacção
do Jornal da Escola, o que me honra muito. Vejam lá
como os tempos eram, não é? Hoje, felizmente, já não
há diferença entre alunos e alunas. A primeira coisa
que eu escrevi para o jornal foi um artigo de
incitamento para que todas fizessem o que pudessem
para, enfim, o Jornal também ser nosso. E depois fiz
outras coisas, por exemplo, fiz uma série de artigos
com a história de Camilo Castelo Branco e de Ana Plácido.
E as alunas e os alunos gostaram... De maneira que
esta história é o começo de um romance... Aconteceu
assim...
Equipa Moliceiro
– Então e depois?...
Cecília Sacramento
– Então, foi uma vida normal como outra qualquer...
Normal é como quem diz. Nunca mais nos perdemos um do
outro e depois aconteceu o casamento, não é?... E
depois...
Mas falando ainda do Jornal, olhem
que era um Jornal de muita categoria. E lembro-me de
muitos jornais pedirem autorização para publicar
artigos que eu escrevia e sobretudo artigos do Mário
Sacramento. Mas a determinada altura o Jornal foi
suspenso pela Censura, pelos Poderes Políticos. Estávamos
muito longe do 25 de Abril, de maneira que os alunos
agora nem podem entender isso. E a perseguição ao Mário
Sacramento começou já aí. O Mário sofreu a
primeira prisão com dezassete anos e depois foi
sempre perseguido e sendo ele perseguido a minha vida
tornou-se muito difícil.
Equipa Moliceiro
– E a perseguição reflectia-se em termos de
trabalho?
Cecília Sacramento
– Ah, sim. E de que maneira... Por alguma coisa é
que eu, que gosto tanto de escrever, eu só comecei a
escrever depois de me reformar. Com o Mário tantas
vezes preso, meses e meses preso, anos preso, o que é
que originou? Ele estando preso não ganhava dinheiro,
não é verdade? E pior que isso, como era medico,
tinha um consultório, tinha que pagar a renda do
consultório e as duas empregadas que tinha. E donde
vinha esse dinheiro? Era do meu ordenado de funcionária
pública que era um ordenado tremendamente baixo. Pois
não! Então o que é que eu tive que fazer? Tive de
dar as minhas aulas oficiais, ao mesmo tempo dava
aulas no Colégio de Fátima, que era o Colégio
Feminino de Aveiro e no Colégio D. Pedro V, que era o
Colégio Masculino. Portanto, eu dava duas vezes mais
aulas do que aquelas que daria numa vida normal. E
isso fez com que eu não tivesse nem um minuto para
mim, porque, às vezes, até dava aulas particulares
em casa, ainda. Tive uma vida muito, muito difícil
nesse aspecto. Mesmo muito difícil. De forma que o
tempo passou, acabaram as prisões e ele morreu, com
quarenta e oito anos. E eu ainda estava longe de
chegar à minha reforma. Mas a vida continuou a ser
complicada, porque eu fiquei com os meus filhos para
criar. E tive que continuar a trabalhar o triplo do
que devia. Foi assim, a minha vida. Mas tive sempre
muita sorte porque tive saúde suficiente para
aguentar isso, o que eu considero uma grande sorte.
Uma grande, grande, grande sorte.
Equipa Moliceiro
– E teve com certeza experiências muito ricas...
Conheceu gente muito interessante... Quer falar-nos de
pessoas que mais a tenham marcado ao longo da vida...
Cecília Sacramento
– pessoa que mais me marcou foi a minha mãe. Mas
claro que os meus professores de Português me marcaram
muito. Já falei no Dr. José Pereira Tavares, quero
referir também o Dr. Salgado Júnior e, depois, na
Faculdade, o Hernâni Cidade, que era um Mestre
extraordinário e o Vitorino Nemésio. Contactei também
bastante com o Agostinho da Silva por intermédio do Mário,
porque o Mário era um dos colaboradores do Agostinho
da Silva. 0 Agostinho da Silva dentro do Liceu não
ensinava só, era um professor extraordinário.
Organizava campanhas de solidariedade dentro da Escola
e fazia muitas outras coisas interessantes dentro da
Escola, e o Mário era o braço direito dele. Tanto
que o Agostinho da Silva diz num dos seus livros isto
que vou ler:
“Creio também que entre os alunos
houve sempre o costume de discutir sem barreiras e
que, para além dos caminhos diversos e até
divergentes que cada um pudesse ter tomado, ficou
sempre a ideia de que pertenciam a um grupo e que não
quebrar a irmandade com o grupo era mais importante do
que assegurar o triunfo da sua própria invenção
neste ou naquele sector especial; gostaria, neste
momento, de lembrar o nome daquele que porventura mais
ilustrou este princípio ou norma, o de Mário
Sacramento, filósofo no gosto da sabedoria a
encontrar, religioso na inteira fidelidade ao seu amor
e piedade dos homens, republicano na ideia etimológica
de que as coisas são públicas e não do domínio de
uns tantos que têm fortuna, favor ou força, aquele Mário
Sacramento que levou para a sua vida inteira a modéstia
operosa com que vendendo lápis e papel ajudava no
reerguer da Caixa Escolar do Liceu de Aveiro o grande
erudito Salgado Júnior”.
Mas a minha mãe, sim, a minha mãe
marcou-me muito. Sabem, porque nós não éramos
ricos nem éramos pobres... éramos pessoas vulgares
em questão de proventos económicos. Era difícil,
muito difícil dar a cinco filhos um curso superior, e
a minha mãe conseguiu fazê-lo. Eu era a mais velha e
tinha medo que os meus irmãos ficassem prejudicados
se também não estudassem. Mas tive o gosto de ver
que os meus irmãos tiraram todos o seu curso
superior, porque a minha mãe lutou a par connosco
para vencer todas as dificuldades económicas que
foram aparecendo.
O meu pai tinha ido para África na
altura da Grande Guerra e veio muito doente. Ficou
doente para sempre, de maneira que tinha uma reforma,
mas era uma reforma pequeníssima. Quando a minha mãe
resolveu que eu fosse para a Faculdade, ela é que me
deu o ânimo todo. Foi para Coimbra, alugou uma casa
grande e dispunha, portanto de quartos que alugava.
Dava-lhe muito trabalho, mas ela aguentou esse
trabalho todo e com isso conseguiu aguentar a vida.
Por exemplo, uma das pessoas que lá
esteve foi o Agostinho Neto, o primeiro Presidente da
República de Angola que era como se fosse da família.
Ia connosco para férias e tudo. E, olhe, o Zeca
Afonso era nosso vizinho da frente e era como se fosse
mais um filho da minha mãe e um irmão nosso. Depois
eu formei-me e já pude também auxiliar
economicamente a vida e os estudos dos meus irmãos.
De maneira que tenho por ela uma
grande admiração. A minha mãe foi um exemplo de força
que eu tive na vida inteira. Eu não tinha o direito
de desanimar perante coisas que me aconteciam, porque
ela me deu um exemplo extraordinário.
Equipa Moliceiro
– Não quer falar de mais ninguém que a tenha
marcado? Conheceu tanta gente... Conviveu com tanta
gente... Com políticos e intelectuais…
Cecília Sacramento
– Sim, é verdade... Mas também posso falar de
pessoas que me marcaram pela negativa... Olhe, vou-lhe
contar uma relação humana muito interessante. Toda a
gente sabe que quando uma senhora aparece numa sala e
estão lá cavalheiros, eles levantam-se, não é? Mas
o contrário não era de acontecer. Chegar um cavalheiro
e uma senhora levantar-se... Então, uma vez eu fui
tratar de uma visita para o meu marido que estava
preso e aconteceu aquilo que acontecia muitas vezes...
tinha a visita marcada previamente, mas depois chegava
e já não havia visita porque o preso não sei quê,
o preso estava noutro sítio, não era naquele,
enfim... trapalhadas para complicar, para dar cabo de
nós. E nesse dia cheguei e disse ao funcionário que
lá estava a atender “Eu tenho visita marcada aqui
para o Aljube, às tantas horas...”. Respondeu-me
que não tinha lá nenhuma visita marcada. Mas eu
disse-lhe para fazer o favor de se informar porque
isso tinha sido feito. “Ah, então a senhora entre
para ali que eu vou saber disso.” E entrei lá para
uma sala que tinha uns sofás, e eu sentei-me numa
cadeira. E o homem lá tratou do que tinha a tratar e
depois veio dar-me o recado. Entrou e disse assim:
“Levante-se.” E eu levantei-me. E só depois é
que ele me deu o recado. Isto é bom que se saiba; é
um episódio que marca uma época. E de uma
indelicadeza, não é?
Mas conheci um médico, e conheço, que felizmente
ainda é vivo, quando estive doente no IPO. Fiz umas
análises, uns exames, umas coisas, e fui tendo
consultas com ele, e na terceira ou quarta consulta,
depois desses exames todos prontos ele deu-me o
resultado a que tinha chegado e o resultado não era
nada animador. Era um resultado que me levava a uma
operação. E eu fiquei muito, muito angustiada e
pedi-lhe “O Sr. Dr. dê-me licença, por favor, para
eu fazer um telefonema para a minha irmã.” O médico,
então, perguntou-me o que é que se passava. “É
que eu quero-lhe pedir para ela me vir buscar que eu não
estou assim, realmente, com muita força para ir
sozinha assim por aí adiante” expliquei. E ele
disse “Não é preciso chamar a sua irmã, eu vou
levála. E sem nunca me ter conhecido, conhecia-me
apenas como doente, atravessou Coimbra inteira e
foi-me levar a casa da minha irmã. Isto é uma coisa
extraordinária, não é? Eu fiquei com
uma admiração extraordinária por este homem.
E depois confirmei que ele, de facto, é fora de série.
Acontecia, por exemplo, o seguinte: Eu estava numa
enfermaria com cinco camas e, claro que as doentes
precisam de levar injecções de tantas em tantas
horas, conforme os casos, e lá havia casos desses. De
maneira que o que se passava era que as enfermeiras
vinham sempre a conversar em voz alta e acordavam logo
toda a gente que estava na enfermaria. E, mais ainda,
abriam a
luz de cima, não a luz da cama da doente a quem iam
dar a injecção, e de quatro em quatro horas
repetia-se esta história... E, sabem como é que esse
médico fazia? Vinha sempre fazer-me a visita diária
depois do trabalho dele, aí pelas nove e meia, dez
horas da noite. Chegava e não abria luz nenhuma, nem
sequer a da minha cama. Vinha com um foco, entrava com
o foco só direito à minha cama... Agora tire as suas
conclusões... Há realmente pessoas extraordinárias,
não é preciso contar mais nada dessa pessoa para se
ver como ele é, pois não?!...
Equipa Moliceiro
– Também sabemos que tem livros publicados. Quando
e como começou a escrever?
Cecília Sacramento –
Não pude escrever nunca enquanto trabalhei, só
depois de me reformar. Mas... era difícil, claro,
começar tão tarde...