Ao
cumprir uma década de fértil produção literária,
Cecília Sacramento traz-nos hoje “Cidade Azul”, o
seu sétimo livro, que saudamos.
E
se não cabe aqui lançar um olhar retrospectivo sobre
estes dez anos de pulsão criativa, nem tão pouco
tentar demarcar o apogeu da sua actividade literária,
nem traçar dados biográficos da escritora, convirá,
uma vez mais, e sempre, lembrar que veio capitalizando
sucessos e leitores desde o seu primeiro romance; ainda
assim, diremos que entrar por esses horizontes
retrospectivos nos ajudaria
a estabelecer algumas relações de sentido e
pontos de contacto no “corpus” das suas obras: a matéria
humana subtilmente observada, com os eternos e
universais valores
da humanidade e do humanismo, a reflexão e a indagação,
a paciente e sempre renovada busca do conhecimento de si
e do seu semelhante, enfim, um estar com a vida falando
da vida; por outro lado, essa incursão de conjunto no
universo ficcional de Cecília Sacramento salientaria,
necessariamente, a componente formal depurada, o estilo
ágil e vigoroso, maduro e jovial, musical e cristalino,
expressivo e emotivo da sua prosa poética, este,
porventura, um dos mais fortes mecanismos de adesão do
leitor.
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Partamos,
pois, numa incursão por certas linhas possíveis de
orientação de uma
primeira leitura desta “Cidade Azul”,
tentando rastrear-lhe apenas certas zonas de sentido, não
esquecendo que este é sempre um atrevido exercício de
imaginarmos sobre a imaginação do outro...
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A
primeira pista leva os nossos passos a seguir a
história contada; mais do que uma história para
contar, é uma história que fará pensar; à nossa atenção
de leitores, o romance proporá, ainda que
implicitamente, a reflexão sobre uma questão do nosso
tempo: as implicações sociais e humanas do agrupamento
e da coesão parental no crescimento dos filhos. A epígrafe
inicial, transcrita de um jornal diário, é disso
elucidativa. De resto, trata-se de uma curta história
de um amor impossível na qual se encaixa
lá para o final um outro breve episódio, também
ele curta história de amor marcante na vida da
protagonista, Micaela, uma jovem de dezoito anos, que,
no limiar da maturação, descobre o amor sonhado e logo
a angústia dolorosa da sua inviabilidade causada pelas
contingências da vida: Arnaldo é casado e pai de uma
filha bebé.
Tema
da solidão, do dilaceramento, do conflito, da perda, da
fragmentação, da interrogação de alguém que é
empurrado para, a sós, procurar corajosamente
o modo ética e moralmente mais honesto
de resolver o seu drama, superando as perdidas
certezas e ilusões, na idade em que é legítima toda a
“esperança no gotejar do Tempo”
(p. 114). Esta maturação da adolescência não se
constitui, todavia,
em vida anulada e amarga; aparentando ser, no início,
uma criatura
inerte e sonhadora, Micaela, resolutamente, supera o seu
desgosto, não se amoldando definitivamente na solidão,
mas disponibilizando-se renovadamente para os “mistérios”
da vida futura, ou melhor, para as hipóteses que o
condicional possa vir a pôr no seu caminho. Já o sabíamos
de outros livros; e aqui, a autora, nesta simplicidade
de ingredientes e de um enredo romanesco com um carácter
aberto, parece, novamente, surpreender o quotidiano da
personagem que ergue “uma construção na areia”
(p. 47), experimenta “a espera feita desânimo
dentro da esperança”
(17), descobre “como será funda a solidão
depois do desabar do sonho”
(p. 22), para terminar numa muito humana e autêntica
atitude de despojamento e coragem. À semelhança de
Dora, a ”mulher escrevedora”
do filme “Central Brasil” a que Micaela assiste, e
que se constitui como reflexo especular de si própria,
também esta história de Cecília Sacramento propõe,
afinal, uma viagem ao coração da personagem feminina
na redescoberta da capacidade de amar e de ser amada, de
ter e de exprimir afecto, após imperiosa e sofrida
separação.
Amor,
vida, procura, tempo, construção – reiteradas marcas
semânticas no imaginário literário de Cecília.
Flores, rosas, música, ecos, casa, caminho, mar, luz -
algumas das imagens arquétipas
que os seus textos têm vindo a retomar
poeticamente de livro em livro, como se estes se
tivessem vindo a construir com coesão e coerência em mútua referencialidade.
À
semelhança de antecedentes trabalhos, “Cidade Azul”
apresenta dois tipos de discurso entrelaçados: um mais
narrativo, como já vimos, e outro mais reflexivo.
Assente no rebuscar da memória – “recordar
também é procurar” -
anuncia-se nas páginas de abertura – a intriga começa
a ser narrada pela
própria protagonista, que, quando cansada, dará voz ao
seu “fidelíssimo Narrador”
(p. 46) de terceira pessoa, por finais do
primeiro capítulo, em que se encena um curioso diálogo
entre os dois. Assim, o escritor, entidade física,
digamos, desnuda-se também ele, na rota das palavras,
que é como quem diz da vida, nessa viagem
perscrutadora, de aprendizagem e construção que a
personagem empreende ao longo da obra.
Deste
modo, a vida, tal como a escrita, é a leitura das “folhas
do livro em que tudo se lê e nada está escrito”,
imagem várias vezes acentuada, nas páginas 43 e 51,
por exemplo. Igualmente a este nível,
a autora conduz um interessante jogo que
descortina o universo do labor da escrita “fatigada”
“sofrida”, “pesada”
(p. 43-44-46), configurada como um “diáfano véu”
que se vai levantando”, erigindo-se em cansativa travessia “no limbo
desse deserto interior” (p. 40-41), cumprindo-se em realização, para terminar na imagem
final em que se esvai “a diluir-se, a ser
escrita de fumo” (p.
150).
Caminham,
pois, paralelamente, a história que está a ser narrada e o livro-a-haver,
cuja construção se vai tecendo, “um livro que
/Micaela, como cada
um de nós, traz/ escondido com páginas
em branco para nele traçar a escrita”
(p. 34 e p. 37... ). Eis a razão por que também a
narradora autodiegética se interroga acerca do título
do ainda
inconcreto, vago “livro-anúncio”
(p. 43) : “E se eu chamasse ao meu livro
“Restolho”? Realmente o que ficou depois de... Ainda
enraizado, preso ao terreno. A ser. Ainda”
(p.19).
A
esse propósito, algumas metáforas pertinentes poderiam
corroborar esta ideia do labor da escrita/reflexão/pesquisa/criação.
Como a da sábia rendeira de bilros
que encontra na sua arte o escape, a harmonia e a
placidez da “música” do seu trabalho que a ajuda
a resolver problemas, a adormecer, que fala
consigo “até
dentro da manhã”,
ou canta
suavemente para ela “até
que a paz desce e /lhe/
traz o
sono” (p. 17-18) .
Por
outras vertentes se espraia a nossa curiosidade e o
nosso encantamento
quando lemos “Cidade Azul”.
Seria agora excessiva
uma análise detalhada da “arte poética” de
Cecília Sacramento. Permitam apenas uma brevíssima
incursão referencial a dois traços de modernidade e
maturidade no manejo do seu potencial linguístico e
cultural: o saboroso prazer com que nos surpreendemos
com ajustados neologismos – exemplos como “a grande acontecência” (p.
93), “ a
pensar em coisinhiquices”, “a
vida dadivosa”, “a
fraternura” atestam a renovada riqueza lexical da escrita da autora. E não
passam despercebidos os encaixes
intertextualizantes com que caldeia harmoniosamente o
seu próprio texto. Julgamos que estes traços estilísticos
se têm vindo a consolidar na escrita literária de Cecília
, não como ostentação de saber e erudição, mas com
a humilde atitude de reconhecimento e gratidão para com
“a voz
dos /seus/ poetas, a
/sua/ gente”
e dialogante companhia (p. 17, por exemplo). Assim, num
mosaico de citações, nos títulos dos capítulos ou no
corpo do próprio texto, a teia deste livro pede fios
emprestados a Sophia de Mello Breyner Andresen e Pablo
Neruda (cinco vezes), Manuel Alegre (quatro vezes),
Albano Martins e Eugénio de Andrade (três vezes), Vergílio
Ferreira, Fernando Assis Pacheco, Pedro Zargo, Reyner
Maria Rilke, Manuel Bandeira, Natália Correia, Camões,
Marguerite Yourcenar, André Gide, Alberti, Clarice
Lispector, Cecília Meirelles, Herberto Hélder, Miguel
Torga, Natália Correia, Clara Sacramento, ao
cancioneiro popular de Aveiro e dos Açores – esta
alusão não é exaustiva nem ordenada, frisamos – e
Guimarães Rosa, segundo
a autora, “o
mais presente”,
e seu “mentor”
consoante anuncia logo no início.
É
isso: a escrita é também ela
novelo em incessante volteio, desdobramento e
renovação, como ”A
onda /... / termina
num murmúrio – e vem do mar. Grande. Imensa. /Sempre a/ desdobrar-se
sobre areia, esta permanentemente disponível, aquela
incessantemente renovada”
(p. 63).
Tocar
os vários espaços do texto implica ainda olhar para o
título “Cidade
Azul”. Vimos já como o percurso de Micaela se faz
por caminhos nocturnos ou de errância solar. A
omnipresente cor azul fixada no título equaciona
uma relação de sentido com esse trajecto da
protagonista, sobretudo no episódio final, rebuscado na
memória da infância, ligado ao apaziguamento
espiritual, à amizade, à dádiva generosa, e à redenção
conotada nas “lindas rosas azuis, da cor do céu “
(p.142) que cobrem o presépio-crucifixo.
A
“cidade
azul de permanente encanto”,
“com o mar verde dos campos”,
“onde
o rio não /é/
um limite mas um caminho”
(p. 67) é cenário da localização espacial da acção.
A cidade, a sua “cintura
líquida”, “as
terras
vestidas de água”,
orlas limites, “a
presença do vizinho Oceano”,
o imenso mar revolto ou em mansas toadas, dunas,
céu, “gaivotas desenhando flores
de pétalas abertas, a voltear, serenas, na beleza do
viver”, “o
espelho da laguna”,
“pequenos
montes de brancura no
regaço
das salinas”
(p. 97-98), brisas, brumas, sol radioso, luar debilmente
enevoado, longes, frescuras,
“a planície azul” (p. 92, p.
150, ... ), o casario, as gentes da Beira-Mar e a sua
milenar sabedoria são projecções frequentes ao longo
do livro como comparsas de uma personagem em trânsito,
fragmentada, que refaz o sentido da vida, como dissemos.
Muitos dos nossos momentos de maior fruição do texto
residem nas passagens melodiosas de ritmo e significação
que aludem a esta “Cidade Azul”. Diremos, por isso,
que este livro dedicado
Vasco é também – e se calhar, sobretudo - Cecília
Sacramento o poderá confirmar, um tributo à
“linda e leve” cidade de Aveiro.
Apenas um excerto ilustrativo:
Os
seus pés “agora pisavam o chão da sua fresca cidade, onde o azul descia
a deixar uma luz do céu, por ali espalhada.
Seguia pelo passeio, rente ao casario, enfeitado de
lindos desenhos feitos com pedras esbranquiçadas, de
mistura com outras de cor escura, quase pretas. Calcava,
assim, flores estendidas, algas e conchas, a proa de um
barco, uma âncora, um peixe, até um barco moliceiro
com a respectiva vela. Aqui e ali, um barco estilizado,
com os remos nele atravessados, a navegar sobre as
ondas, desenhadas em traços curvos.
Era
o grande Oceano a vir até à sua cidade. A ficar nela”.
(p. 94)
Paramos,
por ora. O novelo guarda mais fios por desvendar... Aqui
fica o desafio aos leitores.
Saudemos
com o aplauso, que justamente merece, este livro, válido
e generoso, de
Cecília Sacramento. Fecharemos circularmente o nosso
texto como começámos: citando algumas expressões que
fomos recolhendo. E sob este “céu azul a cobri/r-nos/
de luz, que cai, azulinha”,
ofereço a Cecília Sacramento, com um fraterno abraço,
estas singelíssimas flores; não serão “rosas
de luz”, mas são “azuis-azuis”...
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