Lá vem ela... Lá vem... Pousou... Enfim, cá está.

Cá estás mosca maldita − Enfim tu me pertences.

Não esperes comover-me; é inútil, não me vences.

Prescindo de aparato e pompas, vais morrer

aqui de morte obscura, humilde e, podes crer,

se não fosse o senti-lo ainda muito aflito

e susceptível, juro, insecto vil, maldito,

quem te havia de dar a morte mais atroz

havia de ser ele, ele a vítima, algoz.

Não me enterneces, não. Por mais que te debatas...

Cruza no focinhito as pequeninas patas,

debate-te nervosa em longa convulsão

finge um chilique até, não me enterneces, não!

O teu atroz suplício, algoz das criaturas,

servirá de lição às gerações futuras,

e enquanto a humanidade exultará feliz

saudando a liberdade, ao menos do nariz,

ao simples movimento agora deste dedo

empalideça a Europa e o mundo do mosquedo –

 

Não quer isto dizer que eu morra desta dor;

mas, francamente, é triste, é triste e é sensabor

sair para casar, ter preparado o ninho

e voltar afinal, como saí, sozinho.

Depois, quando qualquer tem feito uma tenção,

sempre custa a esquecer... pois esta é que é a questão.

Convinha-me, não nego, aquele matrimónio.

A minha noiva... sim, a noiva... que demónio,

não era uma beleza, é certo, mas enfim

eu ia-me habituando àquela cara... assim...

Ao ser tão bochechuda achava-lhe eu pilhéria...

e dá-lhe uma aparência extremamente séria...

Muito nutrida, sim... lá isso é que ela é!...

É mesmo aparatosa... enchia aquela Sé...

mas tinha um génio bom, alegre. Parecia...

talvez dissimulasse assim como eu fazia.

Só uns meses depois viria a decisão;

podia ser que sim, podia ser que não.

Mistérios do porvir que eu nem sequer perscruto.

Talvez saísse ao pai! O pai é muito bruto,

bendito seja Deus, mais quem o fez assim.

Parecia um bull-dog ali filado a mim!

Bonito sogro! hein! Que paz na intimidade

se a filha sai ao pai! Lá isso é que é verdade...

é mesmo tal e qual! Não é na cara só,

uma cara redonda e chata como um Ó;

é mesmo na figura atarracada e baixa;

nem parece mulher, parece uma borracha,

e aquilo com o tempo ainda engorda mais...

vai alastrando sempre até pesar quintais!

Uma mulher grotesca e um sogro... sim, que sogro!

Bonito casamento! Um verdadeiro logro.

Parece incrível! hein? E eu sem pensar em tal!

Por causa de um milhão!... Histórias... Afina!...

Não se paga a dinheiro a minha liberdade;

e contra-peso então daquela qualidade!

E as ceias? E o sport? e os bailes semanais?

E as praias? E o teatro? E muitas cousas mais...

E tanto e tanto bem não ia eu perdê-lo?!

Salvei-me por um triz... um fio de cabelo!...

Por um cabelo, não; perdão, nem por um triz.

Em rigor, em rigor, foi pelo meu nariz!...

 

 

E foi ela! Tu foste a minha Providência!

Que ingratidão a minha! Ó mosca, tem paciência;

eu estava meio doido; eu peço-te perdão...

Eu ia-me afogar e tu foste o patrão

do barco salvador... É graças a ti que existo...

Hás-de me dar licença, eu quero contar isto!

Vou para a redacção; eu escrevo num jornal.

Não me digas que não, nem leves isto a mal.

Injusto pude ser, mas nunca fui ingrato...

No jornal de amanhã há-de ir o teu retrato

e a tua biografia; eu mesmo vou fazê-la.

Eu sei, não digas nada. Eu sei... A boa estrela

que todos tem no céu mandou-te pela Sé

salvar-me da tolice, arquitolice é que é,

em que eu ia cair... Ó mosca mensageira,

dispõe do meu nariz, da minha cara inteira;

se tudo ainda é meu, tudo te devo a ti...

Se voltares um dia ainda por aqui,

repousa nesta cara a tua débil asa

e imagina que estás em tua própria casa.

 

E agora, ao teu destino augusto consagrado,

vai, caro insecto, adeus. Adeus; muito obrigado.

Talvez a esta hora esteja um infeliz

a ponto de ir... Adeus, espera-te um nariz,

não percas tempo, segue em teu mister fecundo...

Vai de igreja em igreja emancipar o mundo.

Fernando Caldeira

 

Aurora Redentora

A mísera Judeia o ceptro via

nas mãos dum estrangeiro armipotente;

Roma, sobre as nações, barbaramente,

lançava desumana tirania.

 

O vício negregado o colo erguia,

O templo falsos deuses tinha em frente...

Por todo o império o despotismo ingente,

por toda a parte a corrupção a orgia!

 

E não mandar o Céu fogo sagrado!

E não baixar tremenda punição

à terra onde campeia o vil pecado!

 

− Oh, prodígio da eterna direcção!

Do alto envia Deus seu filho amado,

para celeste herói da Redenção!

 

José Maria Ançã

O vento

 

Um dia assim falei ao vento alado,

que andava galopando a bramir sanhas:

− Quem és tu, que dos ares te despenhas

a praguejar, qual doido embriagado?

 

Então me diz o vento alucinado:

− Eu sinto em fortes pulsações estranhas,

cá dentro a referverem nas entranhas,

as dores do presente e do passado.

 

A voz dos oprimidos eu abrigo;

os protestos, as queixas da inocência

e os soluços dos mártires vão comigo:

 

Sou alma, sou razão, sou consciência

neste pregão revôlto: − Eu vos maldigo,

ó crime, ó tirania, ó truculência!

 

Manuel Ançã

   

 

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