DESEJANDO inserir neste Número versos dalguns dos mais representativos poetas do distrito de Aveiro, publicamos, a seguir, um famoso monólogo de Fernando Caldeira, poeta e dramaturgo de fina inspiração, natural de Águeda.

Trata-se dum monólogo que teve nomeada, de norte ao sul do país, e que hoje é raridade bibliográfica. Publicando-o, fazemos um valioso brinde ao leitor.

Também publicamos sonetos de José Maria Ançã e Manuel Ançã, poetas já falecidos, naturais de Ílhavo, que eram irmãos no sangue e no talento.

 

Fernando Caldeira, natural de Águeda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Posso dizer-lhe adeus! Lá vai o casamento

Precisamente então na hora, no momento

de ser feliz! Foi hoje... Eu ia ser feliz...

Eu ia-me casar. A minha estrela quis,

que eu mesmo! já na igreja! aos pés do sacerdote!

de um piparote, um triste, um simples piparote

escangalhasse tudo, e tudo escangalhei!...

Entrei para casar e saí como entrei!

 

Os padrinhos à porta ainda me diziam,

que levasse isto a rir e com efeito riam,

mas eu queria ver ,algum no meu lugar...

 

Seis meses! Foram seis, que a andei a namorar!

E então com que trabalho e então com que cuidado

de nunca me amostrar, senão pelo bom lado,

fazendo-me julgar por ela e pelo pai

por aparências só. É sempre o que as atrai...

Insinuei-me enfim. Conquisto um paraíso...

a ventura do lar − Um sonho, que eu realizo...

Uma mulher completa, uma mulher ideal...

Nutridinha talvez, mas não lhe estava mal;

e depois, antes mais que menos, ou postiço.

Uma mulher perfeita e simples, se é que há disso.

Adorava-a! O papá dotava-a num milhão...

Casamento de amor, de pura inclinação...

 

Pois bem; todo este céu desaba num momento,

como tomba no plaina aos encontrões do vento

uma pobre cabana esfrangalhada e tosca:

e o autor do desastre? − o autor? Uma mosca!

Com mil demónios, é ridículo, não é?

 

Visto a minha casaca e parto. Entro na Sé.

Estava lá uma mosca e dá-lhe na mania

cumprimentar o noivo, e ela aí vem! Sentia-a

pousar-me no pescoço e eu, sem desconfiar

que fosse um plano hostil, julgando-a a passear,

uma mosca ociosa, uma mosca turista,

que ia ver no nariz do cura ou do sacrista,

na bochecha dum santo, em qualquer parte enfim,

e de passagem pôs um pied à terre em mim,

fiz este movimento erguendo um pouco um ombro

ela aproveita e vai; mas qual é o meu assombro!

A infame, executando os planos seus hostis,

instala-se-me aqui na ponta do nariz!

Cuidei que ela atacasse algum dos convidados,

mas debalde esperei; por mal dos meus pecados,

a vítima era eu. Vinte vezes voou.

Mas gostou do nariz, não sei o que lhe achou...

voltava logo ali... Fiquei até cismático!
 

Que diabo é que ela achou, no meu nariz, simpático?

pensava eu comigo, ou também podia ser,

que a mosca ali viesse unicamente − ver –

Quis ver a cerimónia até que alguém a enxote

e faz do meu nariz tribuna ou camarote...

 

Nada disso. Era um laço, era um plano infernal!

Parecia fugir em me eu movendo... Qual?

Era um ardil de mosca apenas! Pura táctica...

Voltava logo, logo... E então durante a prática,

que o padre nos fazia antes de dar o nó,

apesar de eu saber que a mosca andava só,

passeou-me a cara toda a passo e de maneira

que parecia andar com a família inteira,

as tias, mãe, irmãs, as primas... Eu sei lá!

a parentela toda! Oh! Juro que não há

martírio igual àquele. Eu já nem via nada

senão confusamente o padre e a igreja armada.

Suave de aflição, sentia-me febril,

queria-me vingar daquele insecto vil,

trucidá-lo também numa agonia lenta...

Nisto debruça-se ela a espreitar-me uma venta!

Senti fugir-me então a luz da vida e − zás –

arremesso a mão, mas não como se faz

para as colher no ar; foi uma bofetada

e boa, que foi dar em cheio e bem puxada,

céus! na cara da noiva!... O pai lança-se a mim...

«Foi mosca, bradei eu, foi mosca... Foi, pois sim...

Quanto mais lhe gritava, o maldito do velho,

da cor de um rabanete, ainda mais vermelho,

mais custava a conter engalfinhado em mim!

Desatou-me a gravata! Um escândalo, enfim...

«Bateu na minha filha, exclama o desalmado

esbracejando, fulo e de olho esbugalhado,

apoplético, rubro, envolto no albornó,

como um jambon de York debaixo de um chinó;

um animal feroz, o diabo do velhote!

Um verdadeiro sogro, um desses que dão dote,

os mais terríveis, sempre. O caso é que me vi

fatalmente perdido e então, sem mais, fugi...

O demónio do velho! Estúpido! Está claro,

se eu quisesse bater no seu pimpolho caro,

não tinha precisão de antecipar-me assim...

Podia-lho fazer depois, mais tarde... Sim,

eu ia-me casar, se eu fosse um desses brutos,

não tinha de esperar senão alguns minutos.

O que me custa mais, o desespero meu

é o naufragar no porto, e então em que escarcéu!

É ver a causa vil de tão espantoso efeito...

É a mosca, a mosca só. Tanto mais que eu suspeito

que há política nisto. Aqui andou má fé...

Uma mosca a flanar tão cedo pela Sé!...

Uma mosca beata! E agora! Em pleno inverno!

É política... Aquilo é mosca do governo,

que lhe ordenou de vir fazer-me o que me fez,

porque o círculo aqui, se eu caso, é duma vez.

 

Hein?! Quê?! Ouvi zumbir! Ó Deus, Ó Providência!

É ela! É a minha mosca! É ela... Aqui!... Prudência.

Fechemos a Janela... Agora... a porta... Assim...

Lá anda! Agora, nós... És minha... Até que enfim...

Então? desce daí... Vem fazer do meu rosto

praça pública, vem. Tenho até muito gosto.

Desce; vem descansar as asas juvenis,

pousar comodamente aqui no meu nariz...

Inda agora, na Sé, tu foste muito amável

achando o meu nariz bem feito, confortável,

bonita vista... Então, então, vem cá...

 

 

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