4ª Série - Número 1 - Dezembro de 1996 - p. 27

Evocando...

 

Chamava-se nesse tempo "o Liceu". A escola primária ficara para trás de uns dez anos tímidos e deslumbrados. Numa cidade luminosa, numa praça aberta, uma fachada imponente. Lá dentro, no desejado espaço do saber, a esperança do novo, do diferente, a promessa de outras coisas, de outras pessoas, da grande experiência. Em breve tempo, o conhecimento dos lugares, o hábito dos gestos, o à-vontade das atitudes.

No recreio, por sobre o banco de todas as conversas, de todas as risadas, a glicínia vestia-se de lilás em cada Primavera e perfumava tudo à sua volta. E ao longo dos corredores passavam os Mestres e, entre todos, em passo ágil, o porte esguio, a fisionomia grave do Senhor Reitor. Inconfundível, vendo tudo, compreendendo tudo, solucionando qualquer desarmonia com os meios infalíveis da bondade, da justiça, da imparcialidade. Sempre o educador, nunca o juiz frio e distante.

Muitas gerações de crianças e adolescentes cruzaram o seu percurso de pedagogo atento, com ele aprenderam a descobrir a beleza da língua que falavam. Pela vida fora, provavelmente esqueceram uma ou outra designação gramatical; mas de certeza lhes foi impossível perderem o amor à língua-mãe, para sempre presente lhes ficou na memória a voz que transmitiu, a alma que imprimiu tal amor no seu entendimento e no coração.

A possibilidade de monotonia e automatismo na aprendizagem do Latim transformava-se numa aventura viva: era a descoberta do rigor e simultaneamente do encanto duma língua morta. E a aula de declinações escritas no quadro negro podia mesmo ser entremeada de momentos de ironia face a uma celta heterodoxia caligráfica («há duas coisas célebres na tua terra: as galinhas e os teus tês»).

E para além da bonomia, o sentido de humanidade, de carinhosa aproximação dos alunos. Uma ternura aliada ao permanente cuidado de querer o melhor para o seu Liceu; o desejo de nele ver desabrochar ao longo do tempo a curiosidade de uma criança em início de vida escolar («daqui a sete anos, quando terminares o 7.º ano, virás aqui à Reitoria para, tal como agora, receberes de novo um beijo de parabéns.»)

Era assim, o Senhor Reitor, tal como me surge a sua figura nestes farrapos soltos da recordação, tal como o verá para sempre o olhar da minha saudade.

Era assim, o Doutor José Pereira Tavares, o "meu Reitor" de sempre.

Maria Marques Chaves de Almeida

16.05.96