É o passeio mais longo que se pode fazer na ria, partindo
de Aveiro. Dá para um dia difícil de esquecer.
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A viagem, como dizem os barqueiros, pode fazer-se «por fora» ou «por
dentro». Chama-se viagem «por fora» ao trajecto Cale da Vila
(1)
– Canal de S. Jacinto – Costa da Torreira e «por dentro» à passagem em
que se utiliza o trajecto mais breve da Cale da Veia – Esteiro da
Gramata – Braço da Murtosa. Esta última via, na vazante, não é
praticável senão para embarcações que exijam diminuta profundidade.
Convém sair de Aveiro depois da meia maré vazante, de
modo. a aproveitar-se a enchente por alturas da Torreira, à entrada da
ria de Ovar, da qual o braço do Carregal é o prolongamento mais
profundo. e extenso. (pág. 501). Os ventos de feição, para a ida são os
de Noroeste, Nordeste, Este e Sudeste. Os restantes não convêm, ou
porque são contrários ou prenunciadores de mau tempo. Para a volta
interessam os ventos de Norte, Noroeste e Nordeste. Desde que o vento
seja fresco, mas moderado, a viagem pode reduzir-se, em tempo, a 60% do
previsto.
A ria, em certas manhãs, é de indizível beleza.
Em regra, nas primeiras horas está tranquila, sendo a
ocasião mais propícia para os passeios. De tarde levanta-se por vezes
uma vibração forte que faz ondulação e carneirada. Quando se
alcança a costa de S. Jacinto, a superfície das águas da ria adquire
encantadoras perspectivas de amplidão. Não há alguém que, ao
observá-las, não se sinta pintor. Se a névoa não oculta os montes do
oriente, descobre-se, como um friso azulado, o perfil contínuo das
serras de Arestal, Talhadas e Caramulo. À entrada do braço de Ovar, do
lado de terra, avistam-se as fiadas de casario de Pardelhas e Murtosa e,
da banda do oceano, acompanha-nos a costa da Torreira, com a branca
ermida votada a S. Paio. Romaria muito pitoresca e concorrida, a
8 de Setembro. Nesse dia a ria cobre-se de centenas de embarcações,
todas engalanadas, de velas pandas, cheias de tocatas e ranchos.
A
praia
da Torreira
é muito frequentada na quadra estival por famílias da burguesia da
região. (Posto telefónico, casas e palheiros de aluguer). Carreira
regular de passagem para a costa fronteira da Béstida (concelho da
Murtosa), a 13 Km. da Linha do Norte (estação do caminho de ferro de
Estarreja). São dois quilómetros de travessia, de barco, que custam, em
transporte colectivo, dois tostões.
O braço setentrional da ria estreita-se insensivelmente.
Os barcos à vela encontram daqui para o Norte certos embaraços se o
vento está nitidamente do Norte, sendo necessário bolinar em
consecutivos ziguezagues, ou, como dizem os práticos, aos bordos. À
direita,
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avistam-se os campos fecundos de Bunheiro. Um ou outro moinho de vento
faz acudir ainda mais à ideia o lápis de Rembrandt que esta paisagem bem
merecia. Há um momento em que o canal parece ir outra vez ampliar-se. É
quando se ramifica em diversos canais e esteiros que se entranham nos
campos de Avanca, Pardilhó e Ovar Mas logo retoma a aparência fluvial.
Os terrenos da margem ocidental do braço do Carregal,
actualmente muito produtivos, como campos de milho e feijão, são antigos
areais fertilizados com moliço. Nestes campos faz-se boa caça de
codornizes, narcejas, patos bravos, douradas, viúvas e galispos.
Passado o sítio da Cale, relativamente profundo e
apertado, entra-se no troço terminal e remansoso do canal.
Quase no extremo Norte do canal do Carregal, vê-se a
fábrica de galaIite de Colares Pinto, com um ancoradouro. Relativamente
perto, (300 metros ao Norte), passa a estrada que estabelece a ligação
entre a vila de Ovar e a praia do Furadouro (pág. 512).
Para a viagem de regresso a Aveiro, em barco à vela,
convém sair do Carregal a meio da vazante, de modo a atingir-se a altura
da barra no princípio da enchente.
3.
À
Ponte da Fareja,
na foz do Boco (pelo canal de Ílhavo-Vagos, 18 km. em 1,30 a 2 horas
de viagem na ida e outro tanto para a volta. Em lancha a gasolina,
metade do tempo).
No fim da Cale da Vila passa-se sob a ponte da Gafanha,
dobrando para o Sul, tendo dum lado, à direita, a costa baixa e arenosa
no mesmo monte e, do lado oposto, sucessivos trechos de marinhas de sal.
A uma hora de viagem, avista-se Ílhavo, onde poderíamos desembarcar para
fazer uma visita ao seu museu municipal, particularmente interessante
pela secção de etnografia marítima (pág. 532). Pouco além da ponte
(construída em 1862), de pedra e grés vermelho, que dá passagem de
Ílhavo para a Gafanha, desvenda-se à esquerda o grande estabelecimento
industrial de porcelana da Vista Alegre, servido por um pequeno cais. A
100 m. do cais há, além da fábrica, uma capela setecentista (monumento
nacional), com um grandioso túmulo do bispo de Miranda, rico em
escultura (pág. 539).
O passeio redobra de encanto ao prosseguir-se para o Sul.
Empoleirada numa árvore, junto do seu ninho enorme, uma cegonha olha,
estática, a bela paisagem que lhe é familiar: o canal da ria, os barcos
que passam, os pinhais e a estrada que segue lá adiante pela pequena
ponte da Água Fria. Passada a ponte, divisa-se ao alto a vilazita
rural de Vagos (pág. 540). Barcos
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carregados de moliço dirigem-se para o Sul, para o Boco; outros, vazios,
partem para o centro da ria para a apanha do adubo. A ponte de Fareja,
junto da qual o ribeiro desemboca no canal da ria, é o desembarcadouro
onde os lavradores da Palhaça, de Sosa, e até de Mogofores, vêm
comprá-lo. A água que abastece Vagos e passa, entubada, sobre a ponte,
vem de cima, da encosta de Salgueiro: daí, de qualquer ponto mais alto,
fronteiro a Vagos, poderá colher-se outros aspectos panorâmicos do braço
lagunar que nesta formosa baixa cercada de manchas de arvoredo, se
suspende, entre juncais (pág. 541).
4.
À
Murtosa e Estarreja
(20 e 25 km. respectivamente, na viagem «por fora», em 3 a 4 horas.
Fazendo-se o percurso "por dentro» – Cale da Veia – Esteiro do Gramato –
Laranjo – o trajecto leva menos tempo. Para a Murtosa, há carreira de
barca todos os dias, às 15 horas, do Canal da Cidade).
Se se faz esta digressão pela Cale da Veia e
Rio Doce (ou seja, pela proximidade da embocadura artificial e
moderna do Vouga) ter-se-á uma singular visão da vegetação
característica das ínsuas aluvionares que preenchem grandemente a
cavidade líquida da ria. De um lado e outro, nas bordas das ilhas e
marinhas, crescem com pujança, tufos contínuos de estrume (bajunça,
canízia e junco), que atingem um metro de altura e à passagem da brisa
ondeiam como trigais.
Foi perante um destes movimentos das ervagens altas da
ria que o geólogo da região, Dr. Alberro Souto, julgou encontrar a
decifração da narrativa poética de Avienus (por este parece que colhida
dum périplo fenício do séc. VI a. C.), segundo a qual na costa ocidental
da Ibéria existia uma ilha formada de vegetação marinha, tão sensível e
instável na sua base que a simples aproximação duma embarcação se
repercutia nos movimentos do seu revestimento.
No entender do autor das Origens da Ria de Aveiro,
a ilha à qual Avienus se refere seria precisamente alguma destas da Ria.
Passante a foz do Rio Velho, está-se em frente da
costa extremamente populosa de Pardelhas e Murtosa, duas terras de
pescadores. Mais para o interior, para Nordeste, abrem-se os extensos
campos, cortados de mil esteiros, de Salreu e Estarreja, no Verão
cobertos de ricos arrozais.
Os barcos à vela, aproveitando a enchente, vão pela
campina fora, até junto da linha do caminho de ferro, aproando ao cais
de Estarreja.
5.
Ao
extremo sul do braço de Mira
(35 km.)
Deve partir-se de Aveiro (depois da meia maré vazante.
Tempo necessário, provável, de ida, 4 horas. A volta deve fazer-se no
colo da preia-mar e esperar na Costa Nova o começo da enchente. À ida,
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depois da Cale da Vila, contorna-se a Gafanha, penetrando nas águas da
Costa Nova pelo esteiro rectilíneo e artificial de Oudinot ou pelo
corredor do Forte da Barra. Para esta última passagem convém levar
barqueiro experimentado, porque as águas da vazante atingem bastante
velocidade na Ponte do Paredão e podem arrastar um inexperiente para o
Canal da Barra. Por mais forte motivo, de modo algum deve utilizar-se,
no trânsito do canal de S. Jacinto para o braço da ria de Mira, ou
vice-versa, a passagem pela ponta dos diques de concentração das
correntes da Barra, durante a vazante. Essa passagem só em
determinadas fases, bastante fugazes, de marés, pode fazer-se sem risco
para quem não for prático.
Ao entrar-se no braço da ria de Mira, pelo esteiro de
Oudinot, tem-se em frente, a pequena distância, o friso das casas e
palheiros, garridos, da Costa Nova, praia e povoação de pescadores (pág.
529), e à direita, mais perto, o fuste esbelto e listrado do Farol da
Barra.
Foi nesta praia da Costa Nova que o pescador António
dos Santos da Benta cometeu em 18 de Setembro de 1876 um grande acto
de bravura, lançando-se ao mar revolto para levar a um barco de pesca de
arrasto desgovernado e já quase perdido, um cabo que permitiu salvá-lo
com 35 homens da tripulação.
Na faixa arenosa que vai desde o farol da Barra ao Areão
encontram-se algumas quintas, como a do Farol, que pertenceu a
José Estêvão e que hoje se acha fraccionada. Toda a extensão do areal
que cobria esta faixa formava, na parte que cabe ao concelho de Vagos, a
antiga Quinta do Inglês, hoje também dividida por vários
possuidores. Entre a Costa Nova e a Vagueira, elevam-se alguns
montículos arenosos, cobertos duma vegetação espontânea: cordeirinhos
(Diotis candidissima, Desf.), a Sarophularia frutescens,
L., e sobretudo a Scilla maritima, L.
O
canal
ou ria de Mira
é o de formação mais recente. Foi a deslocação lenta da barra, do Norte
para o Sul, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que lhe deu origem. Ao Sul.
da Vagueira o cordão de areia que separa a ria do mar vai-se estreitando
até rematar na Costa de Mira, passando pela frente do cais do
Areão (próximo do qual, a Nordeste, existiu, no séc. XVII, o chamado
Forte Velho), mais ao Sul, pelo Poço da Cruz, que é hoje a
extremidade Sul da ria (pág. 125).
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(1)
– Na planta de Aveiro, onde (5-A), por lapso, está escrito Cale do
Vouga, deveria ler-se Cale da Vila ou da Cidade.
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