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Manuel J. G. Carvalho - Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima - 1999

Em jeito de prefácio

Muitas podem ser as funções da instituição literária chamada prefácio. Com ela exorciza-se a timidez de autor e texto que procuram público, prepara-se o leitor para que se deixe surpreender pelo tema, justificam-se ousadias de análise, invenções e novidades de escrita, desculpabilizam-se mediocridades, ajustam-se contas velhas ou recentes, cozinham-se reputações. Para este arraial e muito mais servem prefácios.

Assim sendo, sirva-nos este de pretexto para vincar a oportunidade e excelência do contributo trazido agora à magra bibliografia passiva de Jaime de Magalhães Lima. Estamos em presença de um exercício criterioso, denso, solidamente informado, misto de ensaio e monografia breve, em que sai retratado um ilustre aveirense, bem digno de figurar na galeria dos cidadãos exemplares.

Com Jaime de Magalhães Lima, percorremos, desde 1870 até meados dos anos trinta deste século, o Portugal político, literário, artístico e social, com a sua dinâmica e estagnação, as suas lutas e complacências, as suas tradições e apelos de modernidade. De tudo foi testemunha, frequentemente tomou partido, e algumas vezes interveio como actor.

Do seu perfil de cidadão fazem parte os qualificativos de liberal e democrata, modelados pela atribulada experiência portuguesa oitocentista, feita de ideais generosos e interesses / 12 / mesquinhos, de contradições e impossibilidades. Como filho do seu tempo, assimilou, no mais fundo e secreto da alma, as energias criadoras da vocação liberal e democrática das sociedades modernas, sabendo, no entanto, imprimir-lhes uma feição declaradamente crítica. Se adere ao liberalismo é porque o entende como espaço de liberdade necessário à respiração natural da pessoa humana, mas divorcia-se dele quando concebido como realidade fechada nas formulações e práticas políticas do individualismo de Oitocentos. Se partilha da ideia democrática é porque vê no povo o genuíno depositário da identidade colectiva e o agente natural da sua configuração cultural, opondo-se, por isso, a que ele seja pervertido ou usado por interesses oportunistas de alguns.

A atitude de inconformidade, que cultivou, presta-se a interpretações que, ou passam ao lado da sua visão do mundo e da vida, ou a deturpam irremediavelmente. É indiscutível que Jaime de Magalhães Lima valorizou as tradições populares e lá no íntimo viveu a nostalgia romântica de uma mítica Idade Média. É igualmente inegável que o seu amor da natureza selvagem se fez acompanhar de proclamadas reservas perante os progressos do industrialismo. Mas o que não devemos esquecer também é a feição crítica e reformadora que o anima, com o fim de refrear aventureirismos primários que, em nome da revolução, se dispunham a cortar as raízes da estabilidade e equilíbrio do viver tradicional. / 13 /

O conhecimento verdadeiramente interessante das ideias e das épocas obtém-se tanto pela identificação dos valores e doutrinas que os homens professam, quanto pelas realidades ou ficções contra as quais eles reagem, ao procurarem vias diferentes ou opostas de ser e de pensar. E não se diga que, uma vez estabelecidos os valores e as correntes de pensamento a que se adere, ficam, por isso mesmo, definidas as correspondentes oposições e antagonismos. Os valores liberais e a concepção cristã da vida individual e colectiva, que Jaime de Magalhães Lima professa, não nos esclarecem suficientemente acerca dos combates que travou. É preciso mergulhar na sua extensa obra para vermos como emergem com nitidez os alvos contra os quais disparou o fogo da crítica: o individualismo, a revolução ávida de mutações rápidas, o liberalismo corrupto ou inimigo das tradições nacionais que se desenvolveu com a Regeneração, o laicismo que gradualmente invadia as instituições e o quotidiano viver. Contra o desprezo das tradições populares, contra os políticos servidores de interesses egoístas, contra divisionismos que deitam a perder a necessária unidade de acção, contra a descaracterização da língua, das artes e dos costumes, contra o desrespeito pelo diálogo harmonioso do homem com a Natureza, eis alguns temas de repúdio que dominam a escrita militante do aveirense e contra os quais se bateu também na colaboração dispersa por variadíssimas revistas, não obstante as divergências ideológicas que as podiam inspirar. / 14 /

O autor deste estudo fixou a sua investigação e análise crítica nos conceitos de nação, nacionalismo e democracia. Fê-lo com rigor, ponderação, criatividade e inovação, ao mostrar que o nacionalismo professado por Jaime de Magalhães Lima cultiva as capacidades de realização cultural próprias de cada povo ao longo da história, elegendo-as como princípio regulador do relacionamento construtivo e fraterno das formações nacionais entre si. Não havendo aqui qualquer negação ou recusa do estrangeiro, mas tão só a afirmação da identidade própria, também não se alimentam formas de nacionalismo estreito e agressivo geradoras de «patriotismo de avareza e disputa»". Esta é uma apenas das pertinentes interpretações que abundam neste texto, tão breve de páginas como rico e estimulador de novas perspectivas de análise.

Luís Machado de Abreu

 

 

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