Escola Secundária José Estêvão, n.º 27, Março de 2001

 

Sob o olhar de Eça de Queirós


Episódios da vida urbana

 


Como convém a uma boa turma da nossa tão cosmopolita e moderna Pátria, a concentração, à entrada do Bar, demorou a acontecer. E como todos os bons portuguesinhos, eles partiram para a sua visita à cidade, no mínimo, uns vinte minutos atrasados.

Era uma manhã agradável de Sexta-feira e esta turma de Humanidades propunha-se deixar as interrogações e sonetos de Antero, para iniciar o dia com uma caminhada pela cidade. Tal facto tornava-se digno de registo e a ocasião não se prestava a menos! Era afinal o "Dia Europeu sem Carros”.

– Um apelo à participação activa de todos os cidadãos urbanos para deixarem a comodidade dos seus veículos particulares, com ar condicionado e, em vez disso, fazerem as suas deslocações diárias em autocarros, juntamente com uma pilha de personagens surreais e realmente fantásticas, que teimam em transportar sacos de compras e objectos malucos, insistindo em que o desodorizante é ainda um cosmético verdadeiramente dispensável.

Mas o insólito instalou-se mesmo antes de desbravarem caminho na selva urbana.

– «És o meu papá! Papá, gosto tanto de ti...»

Era a voz castiça de um miúdo vivaço, de ar reguila, cabelo curtinho e da cor do mel, olhos cativantes, dentinhos de leite desalinhados e roupa descuidada que decidira engraçar com o Ricardo que, para pai, ainda lhe falta idade, sobretudo maturidade.

A risota generalizou-se e foi a custo que esta criança, aparentemente órfã ou com jeito para a comédia, decidiu ir brincar para outro sítio. Que alívio para o já corado Ricardo! Coitado! Ainda ontem tinha ido ver o "Tarzan" ao cinema e hoje já lhe chamavam pai...

Enfim, era tempo de se porem a caminho.

Sobre a cidade pairava uma calma aparente que, ao longo das ruas, se tornava cada vez menos aparente, mais inexistente.

No meio dos pedestres, passeavam-se uma ou outra bicicleta e até o urban game decidiu sair da clandestinidade e aproveitar as ruas desertas para os skaters imporem o seu domínio entre manobras e quedas aparatosas.

Subitamente, a avenida recebia-os – e que admirável vista! – a sinfonia das buzinas tinha dado lugar à animação de rua, e o silêncio era apenas convidado a dançar pela música que ecoava num palco de cimento, onde os bailarinos habituais tinham agora ficado fora de cena.

Vislumbrava-se pouca gente, talvez porque muitos, receando o grande apocalipse que seria a civilização, sem a tecnologia francesa dos Peugeot ou nipónica dos Mitsubishi, tinham decidido / 26 / juntar o útil ao agradável, que é como quem diz, ficar em casa e auto-decretar o «Dia Europeu sem Carros» como o «Dia Nacional sem Trabalho»!

Todavia, nem todos tinham decidido simplesmente desligar o telemóvel e ir passear descansadamente para a província; aqui e acolá juntavam-se os grupos da terceira idade que, ao fazerem o seu habitual passeio matinal, se confrontavam com mais um “fenómeno" a dominar os temas de conversa. Assim seria possível ouvir o sr. Manuel comentar as coisas realmente mudarem e no tempo dele, não haver nada daquilo...

Contudo, as modernices do ambiente pareciam agradar a alguns. E que cómico era ver passar os mais distintos executivos, de fatinho engomado e gravatinha ao vento, desenferrujando as pernas numa buga para chegar a horas ao emprego! O luxo dos carros a gás não estava ao alcance de todos e, como tal, permaneciam estacionados ao lado da Biblioteca Municipal, onde também os alunos fizeram uma paragem para consultar o programa dos eventos.

As Marias e as Idalinas passeavam, ora vaidosas, sentindo-se o centro das atenções pela avenida deserta, ora muito apressadas, cumprimentando as pessoas alto, como fazem habitualmente parecendo não notar a ausência dos carros. As Marias e as Idalinas andam sempre de bata, porque são donas de mercearias, empregadas de pastelarias, peixarias, talhos ou funcionárias das lavandarias e cabeleireiros. Cruzavam-se com outro espécime da nossa sociedade: as tias. Estas andavam de fatinho Rodier cor-de-rosa, com lenços italianos que o marido trouxera quando visitara o país em negócios, falavam com a boca quase fechada e diziam coisas inteligentíssimas em frases meio histéricas, meio abestalhadas, que terminavam sempre com um "tá a ver?". Achavam o dia "chique a valer" mas não tinham o bom senso de deixar as carteiras e sapatos de pele em casa e intoxicavam o ambiente com os cosméticos caríssimos que usavam e os CFC's que libertavam todos os dias para a atmosfera a fim de manterem o cabelo devidamente armado.

Ao Rossio, que se fazia tarde!

À medida que a manhã ia avançando, a confusão nas ruas e a adesão ao dia fora de portas aumentava, gerando-se mesmo filas de pessoas e buzinadelas de velhas relíquias do ciclismo do século passado num congestionamento humano só comparado com a festa de S. Gonçalinho há vinte anos ou o concerto dos da Weasel no Enterro do ano passado.

A coisa estava internacional e englobava todas as idades. Era vê-los: os pequenitos dos Infantários e Escolas Primárias, de bibes aos quadradinhos e chapéus iguais, que, de mãos dadas e com cartazes apelativos, se manifestavam a favor do Ambiente, cantando canções alusivas. Os ilustres avôzinhos optavam por passar o dia de uma maneira mais descansada: afinal a idade já não permitia grande cantoria e sempre era mais agradável sentar-se na lancha e ir dar um passeio pela ria.

– "Yeah, Portugal is nice" – dizia uma senhora cuja pele esbranquiçada, a fugir para o avermelhado, cabelo louro a fugir / 27 / para o branco, cavas em pleno final de Setembro e sandálias abertas com meias por dentro, não enganavam: era, com toda a certeza, ainda uma estrangeira a aproveitar os últimos raios de sol do nosso país e fugindo dos primeiros ventos nórdicos. E, diga-se de passagem, não tinha sido a única a ter essa ideia. Como tal, Aveiro transformara-se numa autêntica República das Bananas, onde não faltavam inclusivamente as/os "bananas"!

E para a salada de fruta ficar completa: os condutores dos autocarros pediram à patroa a gravata do Domingo e trouxeram o pente no bolso de trás, só para o caso de a TV aparecer com alguma jornalista esganiçada a querer saber o orgulho que era ser condutor de autocarros, preparando-se estes para tirar da carteira, de pele genuína made in Taiwan, as fotos de quando tiraram a carta e já agora, os retratinhos da Cátia Rute e Vanessa Micaela na 1.ª comunhão. Afinal, não se tinham enganado. Eles tinham também chegado finalmente. Flashes e cliques, por entre câmaras e objectivas, com mais ou menos impacto, lá estavam ao longo da ria, tentando guardar para a posteridade o modo como Aveiro se estava a dar com os ténis e o fato de treino. O menu era diversificado: desde os repórteres regionais de papel e caneta, aos senhores da rádio com os seus gravadores, passando pela elite dos média, consigo só trazem um microfone e um camaraman e normalmente até têm bom aspecto.

O senhor condutor dos autocarros pára mesmo ao lado da louraça da televisão e esboça o seu melhor sorriso (aquele em que só se notam três cáries em estado avançado e uma falta de dentes) mas: "Faxavori, vai para Eixo?" tinha de abalar que já se fazia tarde. À medida que os autocarros apanhavam o seu rumo, os helicópteros faziam voos meios floreados no céu, procurando planos aéreos favoráveis da nossa pequena Veneza em pleno Carnaval de Setembro.

Mas o espírito aventureiro e curioso, próprio dos jovens estudantes – a geração do "desenrasca" – levava-os a querer viver novas experiências. Rodeada de acção por todos os lados, a própria ria queria também fazer parte desta história.

Ainda antes da rodagem do filme "Portugueses à conquista da ria", a turma, calma e ordeiramente, na companhia da professora de História – a anfitriã – foi visitar as instalações da Rota da Luz, talvez para apanhar o rumo certo no passeio de moliceiro que se aproximava.

"Luzes, câmara, acção", que é como quem diz: embora lá dar uma voltinha de barco. Contudo, a rodagem deste suposto documentário tranquilo começou logo por uma disputa aguerrida pelo papel de protagonista: por um lado, a professora Amélia na porta da Rota da Luz a gritar "Boa Viagem" e a acenar de maneira efusiva; por outro, o senhor do moliceiro que andava ali de graça, que isto um dia não são dias, etc., etc., e para ajudar à festa...

– "Eu não entro nessa droga! Não tem jeito!" – era a Manu, que, como vê demasiados filmes, ainda estava com a paranóia do Titanic e, sem Leo di Caprio por perto, não estava com intenções de naufrágio. Mas, depressa se lembrou da grande cruzada dos portugueses rumo ao / 28 / Brasil e, por isso, como já começava a dar demasiado escândalo, lá entrou, contrariada, para aquela que se adivinhava como a grande saga contra a tormenta e monstro marinho dos nossos dias: a poluição da ria.

"O pior são as comportas: não estão a funcionar em condições e assim o nível das águas não se mantém... É uma tristeza…" –reclamava o senhor do barco com um casal que acompanhava a turma neste passeio.

"Eu queria era que isto fizesse um pouco de ondulação... Embora lá agitar isto..." "Quer parar, Ricardo? Você vai apanhar quando chegar na escola!"

Entre uma e outra conversa, depois de terem passado o Fórum sem poderem parar no Mc Donald's para comer um sun-day e de terem ido à margem buscar uma senhora e respectivo rebento para uma boleia até ao Rossio, a turma parecia estar a gostar da aventura. Nesta altura, a Manu já tinha uma companhia para tremelicar dos pés à cabeça. Claro que não fica bem dizer que era um miúdo de quatro anos. Maldade era já acrescentar o pormenor da cor de cabelo da brasileira mais famosa e desejada da Escola Secundária José Estêvão.

Terminada que estava a visita, foram então para o largo da Câmara Municipal, cruzando-se já pelo caminho com diversas turmas das escolas da cidade, que tinham trocado as paredes gélidas e rabiscadas da instituição de ensino por uma cidade invadida de pessoas e sol.

Lá encontraram muita acção: escalada, xadrez vivo, escolas de música a actuar e o excelentíssimo Presidente da Câmara.

Deixaram-se envolver tanto pelo ambiente que uma hora pareceu-lhes pouco para desfrutarem de tudo o que a cidade tinha para oferecer e, como o caminho para a escola ainda era um pouco longo e não podiam pedir boleia...

– «Ó malta, e se não fôssemos ao resto das aulas? Isto um dia não são dias...»

 

TRABALHO DE GRUPO 12.º I

Ana Rita Sá, Diana Reis, Elisa Silveira, Hugo Ribeiro,

Manuela Escobar, Maria Manuel Azevedo, Ricardo Dias, Sónia Santos

 

 

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