Escola Secundária José Estêvão, n.º 17, Outubro de 1996

 

Uma viagem para fazer

entre manter o sossego do emprego e combater pela autonomia,

independência e responsabilidade no trabalho de cada professor

 

A gestão democrática dos estabelecimentos de ensino constitui o pilar sobre o qual repousou toda a evolução do sistema educativo após o 25 de Abril de 1974. O processo eleitoral de dois em dois anos de todos os dirigentes (membros dos Conselhos Directivo e Pedagógico) acompanhado das crónicas faltas de tradição na formação de dirigentes (sempre passageiros) e na autonomia das escolas enfraqueceu a possibilidade de concepção e execução de planos a prazo. Ninguém estranha que as escolas cumpram o seu papel dentro de uma rotina estabelecida por linhas estreitas de orientação nacional e ninguém espera que elas sejam mais do que isso. As boas intenções que alguns responsáveis debitam a respeito do que devia ser e do que seria possível não passam de boas intenções. No quadro actual, para as disponibilidades existentes – recursos humanos, físicos e financeiros – conjugadas com os serviços de educação socialmente tidos como necessários e exigíveis a cada uma das escolas, não se vê como pode a situação ser alterada fundamentalmente.

Mas todos reconhecemos que há uma grande estabilidade ao nível do corpo docente e que essa estabilidade se traduz, cada vez mais, em estabilidade dos dirigentes dos grupos disciplinares, dos directores de turma e das estruturas de coordenação. Este panorama de estabilidade pode e deve ser espelhado em práticas de liderança pedagógica. Porque a tradição já não é o que era. Ou não deve ser.

Ao estilo autocrático do anterior regime, a gestão democrática fez suceder um estilo de direcção em que as competências dos dirigentes não iam além da possibilidade de convocar reuniões (bastará ler de relance as competências distribuídas no Decreto-Lei inicial e central de todo o processo – Decreto-Lei 769-A/76, de 23 de Outubro). Vingou a ideia das competências difusas dos colectivos e aos dirigentes eleitos pouco mais restava (ou pouco mais havia como perspectiva) que a possibilidade de representar as posições e as medidas tomadas em reuniões de "pares". Para tão poucas competências dos indivíduos e tão difusas competências dos colectivos, sobrou competência e poder aos órgãos centrais e regionais do Ministério, que, à semelhança do que acontece com a relação entre as grandes potências e os pequenos países, podem sempre desculpar as suas excessivas ingerências na vida das escolas com o facto de ser excessivamente pedida a sua intervenção em todos os pormenores, pormaiores, etc., por todos os conselhos directivo, pedagógico, de turma, da noite, do dia, do meio-dia, a conselho do delegado ou de um docente qualquer, do chefe de serviços, do responsável da área de alunos, ou de um irresponsável qualquer, etc. De facto, estabeleceu-se uma situação de confusão ao nível da decisão e as escolas habituaram-se a despachos e circulares para todas as dúvidas de todos e cada um dos grupos, de todos e cada um dos professores. Nestas condições, há tantas pessoas a ter uma opinião (mesmo sem qualquer fundamento e estudo sobre qualquer assunto) quantas as que não estudam os assuntos e não tomam decisões (para além das clássicas e brilhantes decisões de reclamar esclarecimentos e decisões a quem de direito). Sim. Para cada dúvida na aplicação de um decreto, um despacho. Para cada dúvida na aplicação de um despacho, uma circular. Para cada dúvida na aplicação da circular, um ofício. Para cada dúvida na aplicação da carta, um telefonema ao técnico superior que se descobre no labirinto da coisa pública.

E criou-se uma teia conspirativa em que ninguém confia em ninguém ou ninguém aceita a decisão do outro ali ao lado. Se um delegado toma uma decisão (ou interpreta um papel), o professor vai pedir outra interpretação ao conselho directivo e caso não se concorde com uma decisão (ou leitura) de algum dos conselhos, pede-se uma consulta para cima (?) e se se mantiver a interpretação há que fazer um pedido de averiguações à inspecção, etc. Este sistema é um sistema de queixinhas de cima a baixo, porque os serviços centrais funcionam como os pais ausentes (e protegidos por lei que lhes permite bater em todos os filhos a começar pelos filhos mais velhos e responsáveis), batem em toda a gente ou, tendo medo de cada um dos lobbies e do trabalho que pode representar quem se lhes dirige em reclamação, desautorizam os decisores (frequentemente com base na lei que atribui todas as competências aos colectivos formados por dirigentes sem / 16 / competências próprias a não ser representar colectivamente inoperantes…) a quem é fácil atribuir vícios de forma na teia legislativa da dispersão da autoridade no sistema educativo. E é, por tudo isso, um sistema de tantas incompetências como irresponsabilidades como cumplicidades como vénias como compadrios como medos. Se formos comedidos e nunca levantarmos ondas, podemos começar e acabar a nossa vida profissional como professores e funcionários públicos sem problemas. Se nos mexermos, um pouco que seja, não podemos saber onde é que vamos parar. E há aqueles que pensam que é prudente atacar, de vez em quando e pela calada dos consultórios dos pequenos e grandes caciques da politica momentânea, os que se mexem.

Mas não se pode exterminá-lo? Pode. Devagarinho, não porque lhe desejemos uma morte lenta e dolorosa, mas porque é um sistema que vive nas atitudes e valores de milhares de pessoas a viver no seu alvéolo de emprego protegido e tem de ser substituído na mente de cada uma das pessoas, de cada um de nós, amamentado pelo seio deste sistema e crescido/educado pela escola deste sistema.

Com vista no bom serviço (público e ou privado) e no respeito da leis e dos direitos fundamentais dos cidadãos e das comunidades, cada professor que arrisca defender as suas ideias e decisões, cada delegado que arrisca interpretar e tomar decisões e ganhar o seu grupo para o trabalho autónomo e inovador, cada director de turma que arrisca tomar medidas e defendê-las (perante pais que podem não querer saber de outra coisa senão das notas dos filhos…), cada presidente e cada conselho que promove a movida para as decisões na sua escola, cada pai que exige mudanças para mais saber e melhores atitudes perante o saber e o mundo, está a melhorar o sistema. E o sistema vai mesmo mudando. Mesmo quando não parece.

O problema da liderança pedagógica é condição da mudança, desde o nível do ensino e da aprendizagem ou da relação pedagógica, ao nível da formação (autoformação) dos professores, até ao nível das organizações escolares, com vista à autonomia e independência para um serviço consistente e coerente com as grandes directivas nacionais, mas adequado à realidade das comunidades que servem e integram.

Nas novas leis dos novos modelos de gestão e administração das escolas, incluindo a da autonomia, há já definidas competências para os diversos dirigentes eleitos (ou nomeados e escolhidos por concurso). Se estes modelos têm fracassado, tal se fica a dever a erradas decisões de pequena política (nacional e local) e, em grande parte, às rotinas das teias organizativas de irresponsabilidade com que o anterior (e actual sistema protege o emprego de cada professor e de cada funcionário contra o trabalho autónomo e responsável que cada um deve à sua comunidade. ■

Arsélio Martins



 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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