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viagem de regresso

a bordo do atuneiro «Rio Vouga» - janeiro / 1959

m. bixirão

 

Por um amanhecer calmo, largamos da Baía-Farta, pequeno centro piscatório ao sul de Benguela; meia dúzia de «pescarias», meia centena de casas, uma igrejinha a alvejar lá no ponto da «restinga», frente virada ao mar como que a mantê-lo tranquilo, uma toalha de águas calmas e plácidas...

Rumo ao Lobito! Como os nossos corações batem! É o regresso à Pátria, aos seres que nos são queridos.

Pouco mais de duas horas e eis-nos no Lobito, saltando-nos à vista a sua tão pitoresca «restinga», a que os olhos ficam presos com tal panorama. Nem parece África, a África dos terrenos calcinados, desprovidos de vegetação, que se avistam do outro lado da baía.

Escassas horas aí estamos; meter água, combustível, mais mantimentos, que a viagem de regresso é demorada.

Ainda se arranja tempo para trocarmos «dois dedos» de conversa com alguns conterrâneos, a lembrar Ílhavo e as famílias distantes e de novo largamos para o mar.

E começa a enorme viagem, ainda com uma ligeira paragem em Dakar, para abastecimento de combustível. Vinte dias a navegar... e como o mar é grande! Água, sempre água e calor, que nos persegue tenazmente, de noite e dia; na casa de máquinas, a temperatura sobe rapidamente. / 46 /

Um dia, outro e muitos mais se sucedem; é como que um encantamento, parece que o navio não mais sairá do mesmo lugar.

Mas chegamos a Dakar; três, quatro horas apenas ali estamos, mas que servem como que para criar novas forças para o prosseguimento da viagem.

E vamos atingindo outras latitudes, com ares mais frescos, agora já com terra à vista, as Canários tão verdejantes, e os nossos corações vão sossegando, a paz volta aos nossos espíritos; mais e mais a lembrança dos seres queridos e da nossa Terra se vão fixando no nosso pensamento.

Tão longe, tão longe, como ela está, a nossa Terra! Quando veremos nós, a romper pelo mar dentro, qual dedo gigantesco a apontar-nos o caminho certo e seguro, a Ponta do Infante? As Berlengas, a Roca, toda esta costa agreste, mas que é a nossa Pátria?

A nossa Pátria! Oh! como ela é linda e como nós a estremecemos do fundo do coração!

Terras boas e hospitaleiras, quantas há e quantas vezes nos seduzem, mas que sempre deixamos pela que nos viu nascer!

Costas agrestes, ventosas, batidas pela tempestade? É a nossa Pátria. Penedias, areais imensos, secos, estéreis? É a nossa Pátria.

Mas também vales lindos e pitorescos, povoações airosas e cheias de sol, criancinhas descuidadas a brincarem nas ruas, capelas branquinhas com a sua cruz protectora a adejar lá no alto e seus sinos a repicarem em ar de festa, rios generosos, terras produtivas, gentes boas e sãs? É a nossa Pátria. É, sim, a nossa Pátria!

/ 47 / Mais e mais nos aproximamos dela, e um dia, finalmente, surgiu Lagos, sua casaria branca, seu aspecto moirisco. Poucas horas aí perdemos e de novo nos encontramos no mar, ai de nós! Rumo a Itália, aonde iremos descarregar o atum, produto de tantos meses de trabalhos e canseiras.

Deixamos de avistar terra, para mais tarde nos surgir Trafalgar, por um lado e a costa de África por outro. O estreito da Gibraltar está à vista; mas por um momento, nesse entardecer, parece-nos avistar ainda as silhuetas das fragatas vitoriosas de Nelson, que aqui gloriosamente perdeu a vida. Já Gibraltar está à vista! Mas ao longe, pois que nos vamos aproximando da costa de África.

E surge-nos o Mediterrâneo; aqui, tudo muda; o ar é outro, mais quente, o céu mais azul, as águas com tonalidades berrantes.

E contra o que sucede ao longo da costa de África, no Atlântico, aqui constantemente se avista um grande número de navios, a maioria petroleiros no caminho do Próximo Oriente. Dezenas e dezenas deles se avistam sempre, de noite e dia.

Ao largo, cada vez mais longe, já mal se avista «el Peñon»; também, dentro em pouco, se deixarão de avistar terras de África.

E o navio, ponto minúsculo naquela imensidade, vai sempre e sempre avançando.

A viagem continua...

 

 

 

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