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a criação do homem diferente

joão carlos soares

Num rasgo de inspiração, Deus criou o mundo. Extasiado ante a sua obra, como qualquer artista, quis ir mais além e concebeu então o bicho-homem, dando-lhe um pouco de si mesmo. Em princípio pensou-o à sua semelhança, mas tendo de o dotar de um cérebro e temendo uma possível igualdade, resolveu insuflar-lhe no espírito a ideologia do rival Satã. Assim, o homem tornou-se um complexo mundo à parte, cabendo-lhe o papel de destrinçar o Bem do Mal.

Cada indivíduo procurou outro indivíduo e da sucessão da procura gerou-se a utópica sociedade, à frente da qual surgiram os «Manda-Chuvas».

Estes, salvo raríssimas excepções, foram «comendo as papas na cabeça» dos seus súbditos e escudados no lema «Todos devem trabalhar para o bem comum», adornaram a sua existência com uns peculiozitos, quedando-se embalados num «dolce far niente».

Os micróbios (bacteriologicamente falando, os outros!) resolveram pura e simplesmente imitá-los e assim chegámos aos nossos dias, cabendo-me honestamente confessar que «um meio anda a tramar o outro meio».

Ora esta! Afinal vim para este café tentar coordenar ideias para dar continuidade a uma novela que trago entre mãos, e encontro-me envolto em cogitações de índole genuinamente social. Ora esta!

Tento concentrar-me, aprofundando o subconsciente em busca de uma ideia.

Bolas para o eterno problema do escritor. Procurar, / 42 / procurar, procurar sempre. É preciso dar o que de válido temos para converter o negativo em positivo.

Mas haverá positivo? Haverá negativo? Ó meu Deus, já nem sei o que digo...

Ah! A novela!...

«... E a mulher de casaco verde encolheu os ombros. Não lhe interessava aquele rapaz. Ainda se ele fosse rico...»

Não, isto não pode ser. Porque se não cala esta gente? O barulho excita-me. Porque não vêem a televisão em silêncio, porquê?

Olhei o pequeno ecrã. Uma orquestra sinfónica qualquer executava um trecho de Beethoven. Os acordes, filtrados através das vozes daquela aglutinante mole humana, chegavam até mim já diluídos.

Descontraí-me na cadeira e comecei a brincar com o fumo do cigarro. Ao certo, não sei o tempo que passou. Quando me concentrei, o silêncio era senhor do ambiente.

As mesmas pessoas estavam presentes, mas agora abarcavam o televisor com o olhar. Pudera! A Amália Rodrigues cantava um fado chorado, de um sentimentalismo tão piegas que até metia faca e alguidar!

Mas...  afinal em que ponto da novela ia eu? Hum! Hum! Hum! Cá está!

«A mulher do casaco verde, obcecada pelo desejo feroz de deslizar a cem à hora no carrinho cinzento, ao Iado de Carlos...»

Não, um escritor a sério não pode escrever ridicularias.

Que tem isto de construtivo? Que sumo se pode extrair desta história «tidesca», para ser bebido pelo meu semelhante?

Numa fúria louca rasguei em mil pedaços a história da mulher que traiu o amor.

Apertei a cabeça com frenesi. Deste acto de desespero, brotou-me, límpida, a frase sublime de Lorca – Há que dar o perfume que encerram nossas almas».

/ 43 / Tens razão, ó Génio! Como tu, sou escritor e tenho o dever de irmanar num amplexo fraterno os mortais como eu!

– Quem teria apregoado que o «homem é o lobo do homem»?

Pronto, lá volvo outra vez o pensamento ao princípio. Irra, que mania. Não tem que ver, é sina minha...

Uma corrente de ar fresco fustigou-me o rosto. Fez a sua aparição na sala um sujeito pródigo em tecido adiposo, de grosso charuto entalado nos lábios.

À sua passagem, as pessoas / 44 / levantaram-se, descrevendo arcos de tal modo acentuados que quase roçavam a fronte no solo.

É o homemzinho a quem saiu o Totobola – ouvi a meu lado. Não é dos que esbanjam a «massa» com as garotas do Ritz, não!

Faz muito bem aos pobres...

Dei um pulo na cadeira. Nobel, ao descobrir a pólvora, não deve ter feito tanto estardalhaço. Aí estava a fórmula do bem estar social: FAZER BEM!

Exacto. Se todos os homens da mesma condição estivessem mentalizados nos princípios do altruísmo como aquele, o mundo seria um belo jardim, onde cada flor teria o seu perfume raro.

Que cada qual dê um exemplo – monologuei.

E sem saber como, achei-me no meio da rua, olhando como louco em todas as direcções.

O meu olhar foi cair sobre um arruinado portal, cujas sombras albergavam um maltrapilho que tiritava de frio.

Quedei-me frente ao desgraçado e ante o seu indizível pasmo, despi-me lentamente, ficando como o Pai Adão no Génesis.

Com a serenidade de quem tem a consciência tranquila, acerquei-me um pouco mais e coloquei as roupas a seu Iado.

Depois, recuando, abri os braços e clamei:

– Este é o primeiro passo para a construção de um novo mundo onde cada homem completará o outro homem.

De seguida, tudo se tornou confuso para mim.

De concreto, apenas sei que estou num manicómio.

Ainda ressoam nos meus ouvidos as palavras cruas do psiquiatra-mor:

– É um louco perigoso. Tinha a mania de endireitar o Mundo!

 

 

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