Acesso à hierarquia superior.

 

O nosso novo companheiro de viagem explicou tratar-se de mouros, para quem, uma chávena de chá e algum açúcar, basta para se alimentarem, passando a maior parte do tempo naquele sórnico torpor.

Entretanto, o Sr. Carlos Grangeon telefonava para Agadir, avisando o gerente da fábrica, Sr. José Oliveira da Silva, de que seguiríamos para ali, devendo chegar à noitinha. Na resposta, o gerente informou que nos esperaria para jantarmos juntos e que, perto do meio dia, se tinha sentido ali um forte abalo de terra que fez que tanto ele como o pessoal se apressassem a «dar o fora» do escritório. Mas que, a não ser o susto, nada houvera de anormal a registar.

Enquanto devorávamos com bastante apetite o bem ementado almoço do Marhaba, ouvíamos o Sr. Grangeon a contar as apreensões do Sr. Silva e ríamos a bom rir do susto que tinha apanhado. Mais umas larachas e esquecemos completamente o acontecimento sísmico e a fuga apressado do Sr. Silva do escritório.

Depois do almoço abalámos os três no «Renault-Dauphine», guiado pelo Sr. Pires, atravessando algumas artérias daquela cidade escolhida pelos políticos para a realização de conferências internacionais.

Agora, fora de portas, em plena estrada, noventa à hora, a caminho de Agadir. Àquela hora, com a estrada quase deserta, pudemos apreciar até ao limite do horizonte a extensa planície, cortada somente pela larga via que utilizámos, orlada de exóticos eucaliptos. Ao longo da estrada e a nível um pouco mais baixo, existe uma espécie de caminho de cabras, com acesso à propriedade rústica. Nesse caminho, aparecem, de quando em vez, grupos muito originais.

Ao lado dum árabe, enfarpelado em indumentária de cor suspeita e esburacada, encabeçado por repelente turbante que não vê água nem sabão há um bom par de anos, com o rosto amarelo-negro, enfeitado de sórdida «pera-de-chibo» ou de ripas de pendentes melenas, quais pincéis descabelados, seguem um dromedário e um macho escanzelado. A estas alimárias serão postas as cangas de arados ou charruas, instrumentos estes do tempo do arroz de quinze. O engraçado da coisa é que os camelos parecem aparelharem bem com as pilecas, porque é raro vê-los ao lado doutros camelos.

Planície e mais planície. De súbito, um jumento salta à estrada, dá umas piruetas e o «Dauphine» ziguezagueia para não atropelar a cavalgadura ou para não prejudicar a nossa integridade física.

/ 27 / Aparte o nosso primeiro susto e consequentes comentários trágico-cómicos e a planície em perspectiva. É nesta planura onde o nosso alcance visual se espraia indefinidamente, na contemplação de um entardecer róseo-alaranjado, qual pintura oriental, demonstrando toda uma tela gigantesca, como que executada num contra-luz fulgente, donde se destacam as silhuetas das palmeiras, das capelas mouriscas com cúpula à laia de forno, chamadas «marabus», dos agricultores e animais de trabalho, dos utensílios agrícolas... silhuetas que vão decrescendo, decrescendo à medida que as objectivas humanas vão perdendo as suas faculdades de fixação, ante amplidão tão grandiosa.

Depois de termos passado por Azamor, com as traseiras do casaria a marginar o rio Oum-er-Rbio, parámos em Mazagão para expedir notícias para Aveiro da nossa chegada e prosseguimos na longa viagem, que é de 525 quilómetros de Casabranca a Agadir.

Nessas localidades, de denominação portuguesa, há bastantes indícios da presença dos nossos antepassados, como em Mazagão, cujas ruas conservam ainda os seus títulos portugueses. Foi pena não podermos perder mais tempo nesta cidade, para admirarmos as edificações lusitanas ali espalhadas, bem como a «cisterna» da mesma origem e que tão falada é.

Parámos ainda mais uma vez numa pequena povoação para refrescarmos a garganta e agora, com o Sol a declinar, retomámos o «Dauphine» para a última etapa. Até às proximidades de Mogador, a viagem fez-se sempre à vontade, pois a estrada, quase sem curvas, é muito larga e bem sinalizada.

Daqui para diante, já noite, tivemos que fazer um desvio para tomarmos a estrada que nos conduz a Agadir, já não tão larga nem tão rectilínea, antes pelo contrário, muito serpenteada e cheia de movimento. Camiões vindos de Agadir cruzavam-se com o nosso «Renault» que tinha, por vezes, de se aninhar à beira de precipícios para dar passagem àquelas avantesmas. Numa das curvas, frente duma destas bisarmas, não fosse a perícia do Sr. Pires e seríamos vítimas duma violenta colisão ou duma brusca e forçada queda barranco abaixo. Desta vez, o susto foi maior do que o que tínhamos apanhado, quando do burro ter subido à estrada.

Mais uma centena de quilómetros rodados em pleno rabo do Atlas, com as luzes dos camiões a impedir-nos a visão. E o panorama manteve-se assim, mais algum tempo, até que avistámos os sinais do Farol do Cabo Ghir, anunciando as proximidades do mar e bafejos de maresia.

Até que, por fim, chegámos intactos a Agadir, às 10 horas da noite.

(continua)

 
 

 

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