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Recordar, é viver!..

Mas... recordar que podia deixar de viver!...

Vinte e noves de Fevereiro, característicos dos bissextos, sucedem-se inexoravelmente, através de ciclos quadrienais, deixando boas ou más recordações, ou passando absolutamente despercebidos.

Mas... o vinte e nove de Fevereiro de 1960 é um dos dias que jamais se dissipa da retina dos que tiveram a miraculosa sina de sobreviver à hecatombe monstruosa, que feriu de morte a jovem e acolhedora cidade marroquina de Agadir, em pleno e florescente desenvolvimento.

Não quis esse satânico 29 de Fevereiro desaparecer sem testemunhar tão trágico acontecimento, que matou cerca de 30.000 pessoas, nas quais se inclui, talvez, um milhar de portugueses. Não quis esse 29 de Fevereiro extinguir-se sem presenciar a agonia daquele porto de mar, onde, em henriquinas eras, assentaram arraiais activos lusitanos, ali deixando indeléveis sinais da sua presença. Dir-se-ia que esse 29 de Fevereiro, lúgubre excrescência das calendas, na agonia do seu estertor, quis perecer juntamente com execrando rasto, acompanhado de ressonâncias infernais, medonhas, indescritíveis.

 

Por incumbência do nosso Gerente-Delegado, Ex.mo Sr. Egas da Silva Salgueiro, fomos encarregados – o Sr. Carlos Grangeon e o autor destas despretensiosas palavras – de nos deslocarmos a Marrocos, numa visita de rotina à nossa fábrica de conservas de Agadir.

/ 23 / Quando tive conhecimento da incumbência, exultei, pois se me apresentava óptima oportunidade de conhecer aquelas exóticas paragens, tão diferentes em usos e costumes do rincão que me viu nascer.

Foi, pois, com alegre satisfação, que tratei do passaporte, dei a boa-nova à minha mulher que, boquiaberta, ia escutando as minhas palavras.

Quando viu que era tempo de fechar a boca e depois de várias perguntas, a maior parte das quais, escusadas, fez-me recomendações sobre a maneira como haveria de me conduzir perante as marroquinas, como se eu fosse um galã irresistível, mas, não o sendo, como se não soubesse qual seria a minha obrigação, se me deparassem tais oportunidades, como se não soubesse portar-me bem! Oh! As mulheres... as mulheres!

De resto, o futuro que se aproximava não daria azo a apreensões desta natureza, mas a outras muito mais graves.

Aqui, no escritório, a rapaziada também me foi recomendando que levasse alguns pares de cuecas, pois, sendo a primeira vez que viajava de avião, talvez fossem necessárias para o que desse e viesse. A todos pedi que ficassem descansados, que nada disso seria preciso e que, se alguma coisa de anormal ocorresse, não seriam aquelas peças de roupa que remediariam a situação.

O certo, porém, é que à medida que se aproximava o dia da partida, ia sentindo uns vagos receios, um indizível mal-estar, que não sabia a que atribuir. Como nunca fui dado a superstições, afastava do pensamento incógnitos pressentimentos, mas ia dizendo, cá na Contabilidade, que desejaria já estar de volta.

Depois das necessárias diligências e preparativos, das observações e conselhos do nosso Gerente e das despedidas dos nossos familiares, que nos acompanharam à estação, tomámos o rápido das 3 da tarde que nos deixou em Lisboa, na tardinha de Domingo, 28 de Fevereiro.

 

 

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