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Bosquejo Histórico,
no Centenário

«É-me agradável saborear o espectáculo dum incêndio, sem a possibilidade duma queimadura e sem a mortificação duma ajuda para o sinistrado. Deixo o caminho desimpedido ao meu representante, o Bombeiro Voluntário». – Miguel Torga, in A Terceira Voz

 

I — A sua origem e princípios fundamentais

Bastava apenas a leitura deste texto de Miguel Torga para vergar completamente aquele que ousasse erguer a sua voz contra a nobreza de tais figuras que se movem no silêncio dos dramas humanos que todos nós, mais ou menos, conhecemos de perto. Mas o Bombeiro conhece-os sempre por dentro. Não volta as costas, não sabe dizer não quando a angústia se instala entre os homens. Está sempre pronto na primeira linha de combate, quantas vezes arriscando a vida, sem perguntar de quem se trata, qual o credo ou cor política, raça ou importância social. O seu lema é servir, voluntariamente.

E voluntários são, normalmente, gente humilde, trabalhadores por conta de outrem, operários sujeitos a horários de empresas e com dificuldades económicas, raras vezes «rapazes e raparigas de boa família que estes não se deixam mover pelos ideais do socorrismo organizado para valer ao vizinho em caso de incêndio ou desastre». (1)

Por este serviço voluntário se explica, também, a frescura da Corporação, tão jovem ao festejar cem anos, como o era nos tempos gloriosos da sua fundação, com limitação de meios, mas cheia de força e sempre presente quando se lhe pede ajuda e colaboração. Parecem longe esses tempos, mas, na verdade, eles continuam-se, em cada ritual ou cada intervenção, como geralmente se constata no convívio entre a família dos «Bombeiros Velhos». Os princípios e objectivos são fundamentalmente os mesmos, actuais, universalmente válidos na solidariedade pelo Homem, quando este se sente esmagado pela brutalidade das forças naturais ou dos acidentes momentâneos. Por tudo isto, cem anos são motivo de festa!

 

Com a declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa), que mudou por completo o comportamento do Homem na sociedade, é com a Revolução Industrial que gradualmente se foi implantando, ao longo do século XIX, a Igreja e outras forças sociais e políticas trouxeram ao mundo contemporâneo uma nova filosofia social, mais voltada para o associativismo, que as burguesias (monárquicas, republicanas, anárquicas, socialistas, reformistas...) defenderam como combate ao individualismo destruidor.

A Portugal, essas ideias chegaram, naturalmente, com os normais atrasos. Aveiro não era mais do que uma pequena Capital de Distrito. E se até então as confrarias e associações tinham por objectivo fundamental acções de cunho religioso sob a protecção de anjos e santos, na prática, perante as catástrofes e, pior ainda, quando elas se abatiam sobre a cidade e se reclamava socorro imediato, acima de tudo era imperiosa a mobilização das pessoas, não a curto prazo, mas no momento presente, sem arengas nem hesitações. E, neste campo, as velhas confrarias e associações não funcionavam.

Foram as grandes dificuldades e a consciência de incapacidade individual na luta perante o acidente ou a catástrofe que conduziram ao caminho da mais pura solidariedade.

No caso de Aveiro, terão tido papel determinante os grandes incêndios que, aqui, se verificaram pelos meados de Oitocentos (foi em 1858, sob a presidência do Dr. Bento Xavier de Magalhães, que a Câmara adquiriu as duas primeiras bombas de incêndio), nomeadamente ao longo do terceiro quartel deste século, como aconteceu, entre outros, e pelas grandes proporções atingidas e consequências graves, naquele que fora o Paço Episcopal, situado na Rua dos Tavares (antigo palacete construído a partir do século XV e pertencente a uma das mais prestigiadas famílias aveirenses), em 1864, e onde, nessa altura, funcionavam várias repartições do Governo Civil; na Estacão / 17 / [Reprodução fac-similada da página 17] dos Caminhos-de-Ferro que, inaugurada em 1864, ardeu no ano seguinte; no faustoso palácio dos Viscondes de Almeidinha (1871), que ficou totalmente destruído (vindo a dar lugar ao Palácio do Governo Civil).

Mas o rosário das desgraças não se ficava por aqui e a cidade era, com frequência, sacudida pelos sinistros toques de sino das torres das igrejas e conventos e, bem assim, pela da própria Câmara Municipal. Em todo o caso, era sempre o improviso, o voluntariado desorganizado, o material nem sempre adequado, o descontrolo das operações por falta de preparação e de comando.

Assim, para colmatar carência tão grave, terá nascido, em 1879, (2) pelo menos, uma «Companhia de Bombeiros Voluntários de Aveiro», pois datam desse ano os respectivos Estatutos, compostos de 18 artigos. Segundo a relação que nesses estatutos consta, a Companhia articulava-se em duas secções de «Bombeiros» (com 20 efectivos cada e 8 ou 9 «supranumerários») e uma «secção de machados». A ela pertenceram algumas das figuras mais distintas da vida aveirense, como, por exemplo: Artur Ravara, Joaquim de Melo Freitas, os irmãos Melo Guimarães, Manuel Homem Cristo, Jerónimo Pereira Campos... cabendo o Comando ao «inspector» Silvério Augusto Pereira da Silva.

Apesar de não conhecermos as acções por ela desenvolvidas, nem notícias do seu efectivo funcionamento, tudo leva a crer que haja tido, nesse tempo, intervenção positiva, a avaliar pelas pessoas que a integravam. No entanto, certamente por falta de apoios, essa mesma intervenção deve ter sido limitada, atendendo a que tudo faltava para a prossecução dos objectivos fundamentais. Talvez por isso, ou porque Aveiro ainda não estivesse suficientemente sensibilizado para a grande importância desta instituição, ela deve ter desaparecido precocemente.

Mas a semente estava lançada!

E quando, em 12 de Janeiro de 1882, a cidade foi sinistramente abalada pelo violentíssimo incêndio do Convento de Sá, a própria Câmara, por iniciativa de um dos mais atentos edis de todos os tempos — Manuel Firmino de Almeida Maia —, tomou a iniciativa de propor a imediata constituição de «um corpo de bombeiros voluntários que pudesse desempenhar-se satisfatoriamente do encargo que tão nobre e elevada missão impõe.» Quereria dizer que a «companhia» existente não satisfazia?

Na sessão camarária de 28 de Novembro desse ano, um punhado de «homens de boa vontade» apresentou-se na Câmara para constituir uma companhia que pudesse utilizar todo o material municipal existente, «destinado à extinção de incêndios, e dele se servirem / 18 / quando algumas destas calamidades se manifestasse no concelho.»

Um mês depois, eram aprovados os estatutos e eleitos os respectivos órgãos da Companhia.

Seguiu-se, então, um período de entusiasmo e dedicação popular pelos Bombeiros, com reconhecimentos referenciados, manifestados publicamente, em particular quando os incêndios atingiam maiores proporções. Foi assim, na noite de 15 de Novembro de 1884, no combate «ao pavoroso incêndio que devorou o prédio do Sr. José António de Resende, na Rua da Costeira» e que levou o presidente da Câmara (Firmino Maia) a reconhecer perante «pasmo e gratidão de todos nós, os rasgos de sublime heroicidade, e de assombrosa dedicação de todos os membros dessa benemérita Corporação e que por isso constituem um dos seus mais distinctissimos trophéus». E, quando eram pedidos os nomes dos «soldados da paz» que deveriam receber condecorações por este feito, a resposta dada pelo presidente da Companhia, muito acertadamente, dizia que «para prémio lhe bastara a satisfação de terem cumprido, cada um na medida das suas forças, como um dever, voluntariamente e da melhor vontade, se impuseram». (3)

Desta forma, os bombeiros cresceram, em Aveiro, com os apoios e o reconhecimento popular, cada vez mais prestigiados. Em 1887, eram 40 os elementos da Companhia. Mas sentia-se uma grande dependência em relação à Câmara, quando já outras ideias e outros eventos sopravam na mentalidade nacional. Por isso, e para melhor desenvolver a acção do espírito voluntário, entendia-se que a Companhia se deveria desligar da tutela Municipal. Foi o que veio a acontecer em 1898, ainda que, na prática, as pessoas, os apoios e os objectivos fossem os mesmos. Cessou a Companhia de Bombeiros Voluntários para dar lugar à «Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro», embora instalada em dependência da Câmara Municipal, na Rua de Santa Catarina, junto ao Teatro Aveirense. E a mudança foi acontecendo...

Entrou-se, desta forma, na viragem do século e, ao longo da sua 1ª década, num período de grandes transformações, renovando-se o seu material e remodelando-se os seus serviços internos, enquanto a Câmara lutava com dificuldades financeiras. Daqui se foi gerando uma certa agitação de que veio a resultar um fraccionamento da Associação Humanitária, surgindo a Companhia de Salvação Pública «Guilherme Gomes Fernandes» com objectivos em tudo semelhantes. A cidade e a região, no entanto, longe de perderem com um aparente enfraquecimento das instituições paralelas, muito vieram a ganhar, já que, em vez de arrefecerem os ânimos, cada elemento de cada qual das Corporações lutava da forma mais entusiasmada e abnegada para valorizar e dignificar a acção do colectivo altruísta a que pertencia.

Foi assim que ambas mereceram ver-se instaladas em quartel próprio, em benefício do bem público. E, ao mesmo tempo, mais exigentes se tornavam no cumprimento dos objectivos fundamentais que perseguiam.

Caberá, pois, aqui, a referência de alguns exemplos que bem demonstram que a Associação Humanitária procurou pautar-se por esses princípios gerais, no que mostrou também ser a lídima herdeira da Companhia de Bombeiros, ainda que, nem sempre com unanimidade dos seus componentes:

 

1) Intervenção em questões de ordem política

Em 1887, por «ocasião da visita de S. S. M. Majestades e Altezas a esta cidade» as autoridades constituídas solicitaram que a Companhia se associasse às manifestações públicas de homenagem aos ilustres visitantes. Apesar de ter sido decidido dar todo o apoio para o luzimento dos festejos, um dos seus elementos «exceptoou a deliberação unânime por entender que a Corporação não devia sair fora dos fins para que se creou», (4) (o que pode ser entendido como ideário republicano, já que estamos em vésperas do ultimatum e / 19 / da revolução de 31 de Janeiro). Em todo o caso, os reis não representavam propriamente secções partidárias, mas, antes, eram chefes constitucionais do País.

Já em 1908, quando o Governador Civil fez igual pedido para a Companhia «assistir à chegada de S. M. EI-Rei a esta cidade e às demais festas que se fizessem em honra do mesmo», (5) não houve objecções (ou, pelo menos, não transpareceram na escrita da Associação). O mesmo acontecendo, por exemplo com a sessão extraordinária de 3 de Maio de 1903, com o fim de honrar Almeida Garrett. Mas, quando são os valores locais que estão em causa, a Associação Humanitária jamais deixou de estar presente. Foi assim no caso da participação nas festas e cerimónias que decorreram trazendo da «Estação de Caminho de Ferro o caixão que conduzia o cadáver de José Estêvão, filho posthumo do sempre memorável tribuna» (6) ou ao «fazer-se representar no assentamento da pedra fundamental do monumento a levantar na Praça do Comércio (...) deliberando a Direcção que todos os seus membros e o respectivo Inspector assistam aquelle acta». (7)

 

2) Acções de solidariedade

A nível internacional: a solidariedade não tinha limites. Por isso participaram em diversos apelos como aquele em que, pelo presidente «foi comunicado ter entregue ao Exm.o Governador Civil do Distrito, para ser depositado nas mãos do Sr. Ministro de Itália em Lisboa o producto do bando precatório tirado por esta Companhia em favor das victimas da grande catástrophe ocorrida n'aquella nação». (8)

E referências à colaboração nacional não faltam, das quais apenas citamos duas: uma, referida na acta de 27 de Abril de 1909, diz respeito a «um bando precatório em favor das victimas sobreviventes da catastrophe produzida pelos últimos tremores de terra que assolaram algumas povoações do Ribatejo», enquanto a outra, talvez mais eivada de conteúdo político, fala de outro peditório «em favor das victimas da revolução de que resultou a implantação da República em Portugal» e tem a data de 20 de Outubro de 1910.

 

3) Intervenções na comunidade com objectivos de segurança:

As preocupações de segurança e precauções estão sobejamente presentes na vida da Corporação. Não é só acudir na desgraça, é também intervir para que se tomem os devidos cuidados, numa cidade que rapidamente crescia e se modificava com a introdução de novas técnicas, como aconteceu quando, em acta de 10 de Março de 1898, se reconhecia que só graças aos esforços e dedicação dos Bombeiros «se poude obstar a que o incêndio ocorrido na Rua José Estêvam devorasse parte da cidade» e, a partir daí, se pede que «da concessão que a Câmara fez aquella Companhia para a illuminação a gaz, manda que no exterior do edifício illuminado seja collocada uma torneira de segurança para prever o derramamento de gaz em caso de incêndio»; ou, ainda e em relação a casas de espectáculos, pedia à Direcção do Theatro Aveirense «a demolição do muro divisório dos dois páteos annexos: o da Associação e o do Teatro, a fim de tornar rápida a montagem de serviço de incêndios em noutes de espectáculo e dar um abrigo seguro a todos os espectadores». (9)

 

4) A instituição, centro formativo de «sublimes virtudes».

Não raro, acontecem referências ao comportamento dos membros da Associação. Casos houve em que uns foram admoestados publicamente, outros com diversos castigos morais, no sentido de impedir que o colectivo dos «bombeiros velhos» se tornasse mais uma qualquer agremiação. Raros, porém — mas também existem registos do facto — são os casos de expulsão desta família de voluntários.

Em geral, no entanto, valorizam-se as acções positivas, enaltecendo as qualidades morais dos membros, dando conhecimento público, registando por escrito em actas, premiando com medalhas. E se, porventura, esteve presente a dificuldade económica e social / 20 / de alguns bombeiros — e esteve, sem dúvida, conforme se comprova de muitas actas — é sobretudo a acção formativa que preside ao conjunto dos componentes, com dirigentes que se cotavam entre os melhores exemplos de conduta moral da cidade.

A audácia perante o perigo, o espírito de sacrifício, a coragem, a doação altruísta, a abnegação, o heroísmo são virtudes bem presentes, como os mais puros sentimentos dos bombeiros. E aqui, a instituição carrega uma boa parte da formação moral dos seus quadros.

De entre tantos relatos que poderiam ser evocados, aqui deixamos um, — e, por certo, basta — que consta da acta de 4 de Agosto de 1926:

«A Direcção tomou conhecimento dos factos ocorridos no lamentável incêndio que, na madrugada de 1 do corrente, se manifestou num prédio sito na rua de S. Roque, n.º 20, pertença dos herdeiros de José Maria dos Santos Freire, e que custou a vida a 3 pessoas. O inquilino deste prédio exercendo a profissão de pirotécnico tinha, clandestinamente, armazenado grande quantidade de fogo de artifício, entre ele algum fabricado com dinamite, no pavimento inferior do edifício. Em consequência duma sucessão de violentas explosões daquele terrível explosivo, o incêndio tomou proporções as mais assustadoras, e a breve trecho seguiu-se a derrocada, tremenda, catastrófica, trágica.» Pelo que, de imediato se comprovavam a morte de Carlos Simões Freire e de sua mãe, Ana Batista Freire, horrorosamente carbonizados e que, no rescaldo, foram conduzidos, logo que possível, para a casa mortuária do cemitério. Mas, entretanto, uma terceira pessoa, «Flávia dos Santos Freire, desvairada, louca, entre chamas que ameaçavam devorá-la pedia, debaixo dos escombros, após a derrocada, em lancinantes gritos de alma torturada que a salvassem. Um denodado bombeiro desta Associação, Mário de Sousa Marques, num grande gesto de heroísmo e abnegação, sem respeito algum pelo perigo, corre a salvar a desventurada mulher que se debatia com a morte. Conduzida ainda com vida ao hospital, agonizara pelas 8 horas da manhã, em resultado das queimaduras que havia recebido.»

Por este gesto, que impressiona e arrepia e é do mais sublime na doação ao homem como irmão, a Direcção resolveu lançar em acta um voto de louvor «pela decisão, sangue frio e espírito de sacrifício que (o citado bombeiro) demonstrou no referido incêndio, trepando à fronteira já derrocada, donde partiam gritos de mulher, e arrancou das chamas a infeliz Flávia dos Santos Freire, com iminente risco da sua própria vida, pois que em seguida a este arrojado feito se deram consecutivas explosões, dando assim um belo exemplo das mais sublimes virtudes da Humanidade».

(Registe-se, por curiosidade, que neste incêndio, para além da acção de relevo da Companhia, muito ajudou uma nova «moto-bomba» marca DELAYER, que trabalhou sem interrupção quatro horas e meia, facto que constitui grande satisfação para a Companhia. Esta bomba era puxada por bombeiros e populares, numa carreta).

 

5) ...Até à cedência do seu quartel:

E este é um aspecto a relevar, quando as próprias instalações, face ao perigo público, se colocam, primeiramente, ao serviço dos outros, desprotegidos e atingidos na doença e na desgraça. Uma só referência, a título exemplificativo. Em 20 de Novembro de 1918, perante uma situação de epidemia que trouxe o pânico à cidade e à região, e quando muitos queriam estar o mais possível defendidos dos contágios, a Corporação foi convidada, pelo Governador Civil, para uma reunião em que era urgente tomar «medidas profiláticas contra a epidemia actual», face à sobrecarga de outras instituições mais vocacionadas para este tipo de assistência e por ser imperioso encontrar lugar seguro para albergar os contagiados (e foi grande o número de mortos na nossa região), foi feito «em nome desta Associação o oferecimento do seu edifício para alojamento de doentes atacados da mesma, sendo este oferecimento aceite».

/ 21 / Em suma: os objectivos fundamentais da Associação Humanitária estavam bem enraizados e cada vez mais alargados no espírito dos aveirenses que se habituavam a ver nos «Bombeiros Velhos» uma generosidade sem limites, no apoio dos infortúnios, sempre prontos a acorrer ao sinal de perigo, quando outros meios se apresentavam incapazes de os enfrentar.

Não surpreende, pois, que tanto os diversos órgãos do poder local tenham sabido reconhecer de muitas formas esta dedicação altruísta, como também o próprio poder Central, quando, em 1929, foi comunicado que o Governo da República tinha condecorado esta Associação com a Comenda da Ordem de Benemerência, «pelos relevantes serviços que esta tem prestado à causa da Humanidade». (10)

E ao atingir-se a festa dos seus cinquenta anos de vida — AS BODAS DE OURO — mais uma vez se testemunhou essa gratidão. Não só pelas festas, pelas sessões públicas, com ilustres oradores, «deslumbrantes iluminações eléctricas e veneziana», bandas de música, etc., etc., para terminar o arraial com «grandioso bouquet de fogo» oferecido por um categorizado industrial aveirense, mas sobretudo, porque foi «a Medalha da Cidade oferecida por subscrição pública» e ainda — e mais uma vez — o Governo reconheceu, a 10 de Agosto, a Associação «sob proposta do Ministro das Finanças e da Instrução Pública (...) como instituição de utilidade pública». (11)

Era o coroar de uma grande jornada de alegria da família dos Voluntários «Bombeiros Velhos», ao celebrarem com entusiasmo meio século de vida!

 

II - DAS BODAS DE OURO ÀS BODAS DE DIAMANTE

A partir de 1932 e até às celebrações dos 75 anos de vida da Corporação (1957), dir-se-ia que tudo foi decorrendo naturalmente, dentro dos princípios gerais que deram forma à Associação Humanitária.

Dificuldades, porém, sempre as houve. Elas, no entanto, podiam resumir-se essencialmente em exigências de material que pudesse tornar a acção dos «Bombeiros Velhos» mais rápida e mais eficiente, em cada caso, para o que se esperava, dia a dia, pelas grandes ofertas, generosas, minimamente correspondentes à generosidade tantas vezes demonstrada pelos «soldados da paz» desta Corporação.

Todos sabiam, pela experiência acumulada, que as celebrações festivas eram motivo mais propício para lembrar carências e, certamente, para concretizar sonhos.

Assim, ainda em Outubro de 1932, foi adquirida uma nova viatura pronto-socorro e, em 1938, a Associação recebeu uma auto-ambulância para transportes de feridos. Mas havia muito outro material que urgia substituir...

E quando, em 16 de Outubro de 1942, eclodiu o violentíssimo incêndio no palácio do Governo Civil que movimentou todos os esforços do Voluntariado Aveirense e outros que acorreram, constatou-se melhor ainda quantas as limitações dos Bombeiros, face aos grandes incêndios, não obstante a exemplar dedicação posta no combate ao sinistro.

Talvez por isto, talvez por muitas outras razões que se podem interligar com solidariedade pregada nos últimos anos da segunda Guerra Mundial e no pós-guerra, os anos que se seguiram a 1945 e, em particular, até 1952, foram um período de notável esforço em duas frentes:

 

1) Segurança para todos os elementos do Corpo Activo

Contra acidentes (o que aliás, ficou garantido pela Câmara Municipal) e reorganização da velha «Caixa de Seguros», no sentido de auxiliar pecuniariamente os bombeiros e, bem assim, garantir a assistência médica e medicamentosa deles na doença, mesmo quando fora de serviço.

 

2) Apetrechamento da Corporação:

Neste sentido, se adquiriu «uma agulheta de espuma e respectiva carga, para incêndios de gasolina, óleos e aguarrás; modernizou os pronto-socorros, / 22 / blindando um deles; comprou uma moderníssima e potente moto-bomba Escol; renovou todos os fardamentos; criou uma escola de aspirantes», (12) etc.

A fechar o ano de 1952, uma extraordinária festa de Natal para as crianças pobres, que deu brado na época e teve a adesão de todas as forças vivas de Aveiro.

Mas, entretanto, novas viaturas foram gentilmente oferecidas, bem como material diverso, ora por iniciativa do Governo Civil e Câmara Municipal, ora pela dedicação particular e anónima dos aveirenses. Umas vezes por doações directas, como em muitas actas consta, através de testamentos e de ofertas pessoais; outras como subsídios para se comprometerem no abrilhantar de festejos que a Câmara organizava, como por exemplo, quando, na acta de 16 de Abril de 1954, se refere que «a Câmara Municipal de Aveiro concorria com a importância de oito mil escudos para os cofres desta Associação, importância que se destinava a pagar o custo do carro alegórico que esta Associação pretendia apresentar no Cortejo das Festas da Cidade».

Em outros casos, são os próprios elementos da Corporação que organizam festejos, bailes, quermesses, peditórios... para concretizar necessidades. Neste período recorre-se muito à animação do Parque, «cuja autorização nos foi concedida pela Excelentíssima Câmara desde que sejam montados stands compatíveis com o local (...) ficou resolvido que os festejos sejam efectuados aos Domingos, quintas e sábados», (13) com bandas de música e participação das principais senhoras da sociedade aveirense.

Mas, à medida que se aproximava a festa das Bodas de Diamante, um novo ânimo transborda da documentação da Associação, como uma meta importante a atingir e que, por isso mesmo, devia ser condignamente celebrada. Muitos se prontificaram a dar o seu melhor, contribuindo de formas diferentes. Era grande o entusiasmo. Novos e velhos, sem reservas, quiseram estar na primeira linha, renovando os juramentos que outros membros da mesma «família» haviam feito, em 1882. Quando foi pedida a participação ao Dr. Alberto Souto, que a esta causa havia dado uma boa parte do seu saber e dedicação, a resposta foi pronta e galvanizante: «Dar-lhes-ei aquilo que os meus cabelos brancos e os anos já me dão: a experiência, a calma e a boa vontade». (14)

Ao celebrar os 75 anos de benemerência, de bravura e de altruísmo, não se distinguiram pessoas individualmente, ainda que algumas tenham sido agraciadas. Foi mais a colectiva acção da Companhia do que os actos pessoais que estiveram nessa homenagem. E foram, efectivamente, festejos de qualidade aqueles que a cidade viveu. Os jornais da época, mais do que as actas da Corporação, (estas são normalmente simples e quase só referindo questões de administração) teceram-lhes os elogios mais rasgados, exaltando sempre as virtudes humanitárias e o voluntariado que caracteriza a Associação. Mas, se grandes festejos houve, ficaram a dever-se a um numeroso grupo de dedicadíssimos aveirenses que, constituídos em comissão, não quiseram que o 75.º aniversário da Obra dos homens bons de 1882 passasse apagado e que não se pouparam a esforços para que os festejos se revestissem de inusitado brilhantismo». (15)

Enquanto isto, os Bombeiros Velhos, em acta de 2 de Março de 1957, apreciavam a maneira como as celebrações das Bodas de Diamante decorreram, «verificando-se que não houve a mínima dissidência, tendo corrido tudo com a melhor ordem, correcção e compostura em todos os números que foram levados a efeito. Por esta razão, ficou resolvido manifestar a todas as comissões constituídas, os nossos mais sinceros agradecimentos, pois as festas tiveram um grande brilhantismo que dignificou esta Associação».

Então, era a Corporação constituída por 36 Bombeiros, extraordinariamente dedicados membros desta família altruísta e voluntária. O material, esse era escasso para as exigências e, em geral, em condições que pouco dignificavam a «velha» associação.

 

/ 23 / III – O SONHO DO CENTENÁRIO

Ao entrar no seu quarto quartel de vida, dir-se-ia que um sopro anímico agitou a Corporação.

Eleito presidente da Direcção o Sr. Capitão Firmino da Silva, homem de grande experiência no Comando de forças para-militarizadas, dada a sua categoria de antigo comandante da P. S. P. em Aveiro, e que, a esta, junta outras qualidades pessoais, chamou a si uma equipa, de acção renovadora e, a pouco e pouco, os resultados eram visíveis.

Diversas viaturas vieram enriquecer o património da Companhia, enquanto outras condições de atracção eram oferecidas dentro e fora do quartel, para além do recrutamento que, gradualmente, se vai alargando aos subúrbios de Aveiro.

Ao festejar os 82 anos de existência da Corporação, Firmino da Silva pedia, ainda, conforme o semanário aveirense “Litoral”, de 1 de Dezembro de 1964, «um moderno pronto-socorro-nevoeiro (...) destinado a substituir uma velha viatura, que conta já 32 anos de serviço», pedido este que viu concretizado, no ano seguinte.

Quando abandonou a Direcção, por entender ter cumprido o programa que se propunha, a obra continuou com o Eng.º Branco Lopes, que se manteve por quase dezena e meia de anos (até 1981) na presidência da Direcção.

Facto relevante do meado deste período foi o XIX Congresso dos Bombeiros Portugueses, com um vasto programa, bem gizado e melhor cumprido, que colocou Aveiro no Centro do Voluntariado Nacional e de que saíram importantes conclusões para as dezenas de corporações representadas e outras que dele vieram a beneficiar. Esse sucesso que foi uma «jornada magnífica de convivência, camaradagem e de boa e construtiva discussão de teses», (16) desenvolveu-se de 9 a 13 de Setembro de 1970, e nele foram apresentadas dezassete teses, com a participação de diversas centenas de congressistas.

A Associação agigantou-se no meio aveirense, com reconhecimento Nacional. A sua acção era cada vez mais solicitada para diversas ocorrências, pelas congéneres concelhias, quando estas constatavam as suas carências de meios humanos e técnicos. Mas, para isso, foi necessário um grande esforço de operacionalidade, com máquinas e viaturas especificamente adequadas à particularidade da situação. A todo o momento, as provas surgiam....

Entre outras, na cidade, em 1965, a 10 de Junho, a cidade assustou-se quando deflagrou um incêndio na sede do Beira-Mar. Os bombeiros acorreram, imediatamente como sempre, e, com a ajuda de outros, salvou-se o mais importante. A sede sobreviveu (era no edifício da Capitania do Porto de Aveiro), pois conseguiu-se impedir que o fogo se propagasse às casas vizinhas, sobretudo à Garagem Trindade.

E, a 18 de Outubro de 1972, nova e dura prova no incêndio da Firma «Tonelux», com material eléctrico e afim, como discos e plásticos. Pelas suas características, até então, nunca os Bombeiros Velhos tinham entrado no combate a sinistro do género. Mas a experiência ficou e os apetrechamentos foram sendo exigidos.

No ano seguinte, a 9 de Dezembro, foi o grande incêndio do Quartel de Infantaria n.º 10, constatando-se mais uma vez, a urgência de material adequado.

Nos arredores de Aveiro, o incêndio de maiores proporções, neste período, foi já ao aproximarem-se as festas do Centenário. Ocorreu a 23 de Janeiro de 1982, na Cerâmica de Quintãs. O fogo via-se a léguas de distância e lavrou durante algumas horas (de cerca das 19,30 até quase à meia-noite), num edifício amplo, levantado originariamente, cerca de 1910-12. Era um autêntico braseiro, em que os pisos de madeira muito contribuíram para impedir um combate mais eficaz. Lá estiveram, com outros, os Bombeiros Velhos.

Mas a tragédia não tem lugar nem hora. Fora da cidade e do concelho, referem-se, apenas o incêndio grave, que aconteceu num autotanque de transporte de combustível, à entrada de / 24 / Salreu, com sacrifício de vidas e que podia ter sido uma catástrofe, tanto mais que a força de fogo atingiu casas do local; e o desastre que ocorreu à entrada de Oliveira de Azeméis, na ponte de Silvares, caindo um autocarro de 15 metros de altura, carregado de emigrantes, de que resultaram várias mortes.

Não têm conta os apelos e as participações dos Bombeiros, a cada hora aptos para acudirem aos aflitos, onde quer que estejam. É, todavia, no verão que maiores cuidados e desgastes se vivem na Companhia. As imprevidências e o calor próprio da estação ajudam. Aveiro vê-se sobrecarregado de tráfego, tanto de naturais como de estrangeiros. Os problemas avolumam-se e, entre eles, são os incêndios das matas os que trazem os maiores problemas, em regra, pois não se adivinha a amplitude nem é fácil encontrar rapidamente os meios eficazes para o combate.

Assim, por exemplo, foi o que aconteceu em 18 de Agosto de 1969, quando a Serra do Caramulo se tornou num autêntico inferno, com vários focos de um incêndio pavoroso que pôs em pânico várias aldeias da serra e a própria vila de Águeda, conforme relatam os jornais da época. E, a 19 de Agosto de 1972, era a vez (mais uma...) do Vale do Vouga, cuja beleza se tornou, em poucos dias, em espectáculo de desolação e pobreza. Durante dias a fio se viveram angústias que jamais se esquecerão, com evacuações e haveres perdidos, em localidades diferentes.

Nestes, como noutros grandes fogos, a atitude dos Bombeiros Velhos foi o sempre presente, até ao limite das forças e dos meios técnicos. E, quando estas gentes optaram pelo regresso e reconstrução da sua vida, a Associação continuou a sua obra. Houve campanhas de angariação de fundos para as vítimas (17) e até, dada a violência do sinistro e danos causados, vários clubes desportivos se ofereceram para, generosamente, contribuírem nessa angariação de fundos.

Quantos fogos, porém, se não verificaram nas matas da região de Aveiro, particularmente nos últimos dez anos..., dos quais, em muitos dos casos, nem registos ficaram nos livros oficiais da Corporação, mesmo que a intervenção tenha sido de total empenhamento? É que os soldados da paz não esperam que a «História» fale deles, não «actuam» para ela. Agem, por vontade de servir.

Precisam, no entanto, de material, cada vez mais moderno, sempre pronto a entrar em acção, para o bem de todos. Como angariar fundos necessários?

Normalmente, pelas formas tradicionais dos peditórios na via pública ou porta-a-porta, nos bailes e festas organizados com esse objectivo, nas cunhagens comemorativas... nos testamentos e doações, tais como: «o total de cento e trinta e oito mil seiscentos e setenta e cinco escudos e trinta centavos, a que esta Associação tem direito por deixa testamentária do senhor António Rocha» (18), etc.

Entretanto, também o Governo Civil e a Câmara de Aveiro, o Serviço Nacional de Bombeiros e o próprio Ministério da Administração Interna vão dando a sua preciosa colaboração. Não para tudo o que se precisava, mas para o absolutamente indispensável, reconhecendo tratar-se, de facto, de um serviço da maior valia para a comunidade.

Em todo o caso, quantas vezes, também, se não ficam pelas palavras elogiosas, pelas promessas adiadas, pela simples garantia de que para o ano que vem há-de ser melhor... como se lê na acta de 14 de Julho de 1978: — «O Senhor Ministro da Administração Interna deu a entender que em mil novecentos e setenta e nove a vida das Associações de Bombeiros será mais desafogada e livre das preocupações que até hoje têm tido»!?...

Por esta altura, já os grandes projectos com vista à celebração das festas do Centenário andavam na mente dos responsáveis pelos destinos da Corporação. As actas vão dando conta dessa grande meta a atingir. E a festa trazia em si um velho sonho: um novo quartel. Os contactos decorriam, as promessas também e a esperança era cada vez maior.

Por isso, todas as compras, necessidades e obras se iam / 25 / limitando «ao essencial e sempre com olhos postos na construção do novo quartel, que muito desejaríamos ver inaugurado nas celebrações do nosso Centenário» (19). O local fora escolhido entre as hipóteses possíveis e tudo apontava, então, para que se erguesse junto à Igreja das Carmelitas.

Cedo, porém, houve que pensar noutro local, pesando no facto, para além de outras razões, a operacionalidade e os espaços disponíveis. Tudo parecia correr bem para a grande festa. Em 1979, quando foi dado «conhecer o desenho do novo Quartel, o qual impressionou todos os presentes», (20) ainda se acreditava no milagre.

Em cada ano que passava, em cada mês, com pedidos para o «seu» Quartel, o programa do Centenário, se foi gizando, com mais reuniões (mais actas), mais empenhamento.

E 1982 estava à porta, finalmente. A acta de 22 de Janeiro deste ano traduz o sentir geral da Corporação, em relação ao que se esperava: «um ano de trabalho, ano de alegria, mas não tantas quantas as que se esperavam e isso porque foi sonho de todos a inauguração do novo Quartel».

Era a constatação da realidade. A batalha perdida... mas não a guerra. Assinaram essa acta Joaquim Arnaldo da Silva Mendonça e Augusto Correia Charneira.

As festas do Centenário foram incorporadas nas «Festas da Cidade», mas o dia de maior relevo ficou para 16 de Maio, dia dos antigos padroeiros de Aveiro. Para evocar a efeméride, para além de discursos e festejos múltiplos e de garantida a visita do Ministro da Administração Interna, (como refere a acta), pensou-se na «confecção de pratos e azulejos comemorativos, confeccionados pelas Fábricas da Vista Alegre. Igualmente se confirmou a confecção de Medalhas, Emblemas e autocolantes».

A festa não foi ruidosa, mas foi condigna. Os órgãos de informação renderam à Associação Humanitária as mais justas homenagens, os poderes públicos renovaram o reconhecimento de todos, ao longo da sua existência, a população, em geral, irmanada com seus filhos, pais, irmãos, maridos, demonstrou quanto apreço tem pela obra dos Bombeiros Velhos...

E a bola de neve, que era o sonho do Quartel, continua a rolar até que os Bombeiros Velhos ganhem a sua «guerra».

Aos cem anos, os Bombeiros Velhos contavam, no activo, com 83 bombeiros, 6 ambulâncias, 1 auto-sapador ligeiro, 3 viaturas de apoio com extintor rebocável, de pó químico, 1 lancha para salvamentos, 1 viatura para transporte do pessoal, 3 prontos-socorros ligeiros, 3 auto-tanques e 1 auto-escada.

Aos cem anos, os Bombeiros Velhos são, acima de tudo, uma grande família que granjeou prestígio entre a família do Voluntariado, anonimamente, pelo seu desejo de servir, e tem merecido, de todos, uma confiança sem limites.

Os princípios são os mesmos e continuarão eternamente válidos. A obra desenvolvida mostra, sem reservas, o quanto tem sido dado em troca do quão pouco recebido. Ficará para sempre a dívida da nossa gratidão!

E a certeza de que a Associação Humanitária dos Bombeiros Velhos é, ao fazer o seu Centenário, tão jovem e entusiasmada como quando nasceu.

Cem anos depois, em espírito, 1982 como em 1882!

 

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Observação — As notas, disseminadas ao longo do artigo, não se encontram no original impresso.

Amaro Neves

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