Amadeu Teixeira de Sousa,
nascido em S. Gonçalinho, mesmo junto à capela, no Outono, estação
maravilhosa e de poentes extraordinários, que o levaram a aguçar a sua
sensibilidade e a produzir poesia. Foi técnico de contas. Fez a escola
primária no Museu, uma escola admirável. Frequentou o ensino secundário
de Contabilidade na Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira. Foi
convidado a escrever em jornais, primeiro no "Correio do Vouga", depois
no "Litoral"; ultimamente, tem colaborado com crónicas e produções
poéticas em dezenas de jornais, revistas e ilustrações. Desde novo,
concorreu a jogos florais, ganhou prémios, em Lisboa, e integrou o júri
das canções para a Eurovisão. É oficial da Confraria de S. Gonçalo.
S. A. – Sr. Amadeu de Sousa, conhecemo-lo sobretudo através das suas
redondilhas, mas gostaríamos de saber mais acerca da sua formação e
interesses, uma vez que é uma personalidade muito culta e querida das
pessoas, quer da Beira-Mar quer de toda a cidade. Desde quando começou a gostar de escrever?
A. S. – Ora bem, surgiu na escola secundária, com as quadrazinhas,
passadas por baixo das carteiras, para as colegas e, a partir daí,
desenvolveu-se e comecei a concorrer a festivais poéticos, a ganhar diplomas, fui-me entusiasmando
cada vez mais e a produção não tem parado.
S. A – Recorda algum facto que o tivesse levado a escolher esse caminho?
A. S. – Não, eu acho que a poesia estava comigo e há um momento em que
desabrochei e toda aquela sensibilidade, que possuo e que
estava em mim interiormente, abriu-se e comecei a escrever naturalmente. Sai-me de repente um
poema... claro, passo muitos dias, meses e meses, que não escrevo nada.
É preciso a inspiração surgir mas, quando às vezes aparece, aquilo é
como quem está a dar à torneira.
S. A. – Tem filhos? Desejaria que eles continuassem a sua arte?
A. S. – Tenho um casal e três netas. Desejaria, mas para já só as netas é
que poderão vir a ser poetisas.
S. A. – Já obteve apoio de outras pessoas ou entidades para ver
concretizados os seus anseios?
A. S. – Tenho tido, realmente, apoios, muitos convites, enfim,
tenho escrito muito sobre a nossa cidade e daí ter sido galardoado, no
ano passado, com a medalha de prata da Cidade, no dia de Santa Joana e,
portanto, estou sempre
aberto a tudo que seja falar de Aveiro, a qualquer tipo de divulgação, de iniciativa. Estou sempre
pronto a colaborar, por exemplo em recitais de poesia.
S. A. – Na sua actividade de poeta, o que é que mais o incentivou?
A. S. – Ora bem, primeiro foi para estudar os poemas amorosos e, só mais
tarde, é que surgiu o encantamento pela cidade. Depois, e à mistura, uns
poemas um pouco mais filosóficos. Tenho um livro de pensamentos
inéditos, mais dois livros de poemas também inéditos. Estriei-me em 59
com Dois Mundos Diferentes, na altura do Milenário da cidade; em 63,
Conflito, depois
surgiram As Redondilhas de S.
Gonçalinho, que se esgotou rapidamente e a Câmara fez uma segunda
edição; também este livro, de gastronomia, tudo poemas sobre Aveiro,
Aveirismos Salpicados com Poesia, da Confraria de S. Gonçalo.
S. A. – Qual é o local de inspiração?
A. S. – Quando era estudante, fiz muitos versos no parque. Estou a
ver-me, lá dentro, debaixo de uma árvore – esse sítio já não existe – e, do outro lado, em frente ao
célebre Homem Christo. Fiz muita versalhada aí, depois, empreguei-me e
comecei a escrever em casa, de dia ou de noite, dentro do carro,
na Barra, na Costa Nova, em qualquer lugar.
Já conheço alguns países, mas à Grécia nunca fui e, na antiga Grécia,
como se sabe, no Olimpo,
quem bebesse a água da fonte Hipocrene transformava-se em
poeta. Ora, eu à Grécia nunca fui, mas bebi a água da fonte da Praça do
Peixe, de 1876, e da Fonte dos Arcos, e enchi centenas de canecos em
ambas as fontes quando havia
aqueles períodos de seca. Eu era miúdo e estava ali a ver por piada.
Portanto, a minha fonte não foi a
grega, foram as aveirenses.
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S. A. – O seu gosto pela pesquisa
irá conduzi-lo a novos projectos?
A. S. – Sim, eu neste momento,
estou de volta de um livro que
intitulo Velas Belas, são pinceladas, poemazinhos muito pequeninos sobre as velas da nossa Ria.
S. A. – Uma vez que se aposentou, não tem
saudades da sua profissão?
A. S. – Tenho... Tenho, porque foram muitos anos de convivência. Convivi com muitas pessoas, com belíssimos colegas na profissão
mas, por outro lado, foi um trabalho insano, pois trabalhar
com números tem o seu aliciante
mas é cansativo e eu estive à beira de um esgotamento cerebral na
altura, tive necessidade de ir para a invalidez três anos antes do
limite
de idade.
S. A. – Se hoje pudesse voltar
atrás no tempo, seguira o mesmo trajecto na vida?
A. S. – Eu acho que sim, seguiria.
É claro, atenção, os meus voos, o
que eu pretendia, eram mais elevados mas, por determinadas
circunstâncias, não consegui chegar lá. Foi por diversas contrariedades
num certo período de vida dos meus pais, e aquilo que eu tinha em mente
alcançar, não consegui. Tenho pena, claro, não passei do
ensino secundário. Eu gostaria de ir muito mais além, vontade não
me faltava, trabalhei de dia, estudava à noite com afinco, com belíssimos professores que me
apoiavam. Naquela vontade tremenda de saber mais, aprender mais, às vezes entrava com meia
hora de atraso e eles reconheciam
que eu tinha uma vontade de tal ordem que não marcavam falta nem nada.
Só pedia licença e entrava. Mostravam-me reconhecimento pelo
esforço e
trabalho que eu desenvolvia. Entre eles, um
grande professor,
Dr. Amadeu Cachim, que foi meu professor de Português
e de Francês e que observava "este rapaz está rico, tem uma força de
vontade e um entusiasmo! ..." E eu desdobrava-me. Era imparável.
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É necessário que a
juventude seja incentivada
para a cultura. |
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S. A. – Que mensagem quer transmitir à juventude, através do nosso
jornal "SAL DE AVEIRO"?
A. S. – É necessário que a juventude seja
incentivada para a cultura.
Anos atrás, tivemos aí Tertúlias no Trianon, no tempo
de
Mário
Sacramento e no Arcada.
Passaram por lá grandes vultos como
Egas Moniz,
Ferreira de Castro.
De certa maneira, hoje, a Confraria de S. Gonçalo tem divulgado as
tradições aveirenses no país e no estrangeiro e somos sempre
muito solicitados.
S. A. – Sobre o Salgado, tem alguma opinião?
A. S. – Ora bem, eu nesta altura, não sei se temos uma dúzia de marinhas
em actividade, as tais "janelas do céu" do Almada, mas é pena...
É pena!
Talvez haja outros valores a preservar. A piscicultura não sei se
resulta. Andam aí os estrangeiros... Mas eu não estou muito dentro desse
esquema como
está, por exemplo, o
Manuel Regala. Realmente é triste, é muitíssimo
triste! Só aquela panorâmica
de centenas de cones a brilhar!...
S. A. – O senhor e outros
aveirenses, que defendem tanto o
nosso património, não achava que, com os jovens alertados, poderíamos
criar um grupo de defesa da manutenção, pelo menos culturalmente, de um grupo de salinas?
A. S. – Apoio isso perfeitamente.
Acho que é de pensar que esse movimento tem que ser criado, para que uma
parte de nós próprios
ião morra connosco
quando o salgado desaparecer...
Nem que amanhã tenhamos aí apenas meia dúzia de marinhas, a trabalhar
com voluntários, pois é uma coisa ancestral que vem da
Mumadona.
S. A. – Esperemos, então, que esse grupo se forme. Quer recitar algum
poema mais do seu agrado?
A. S. – Eu começaria por
este:
O SER DE AVEIRO
Que ser especial o ser de Aveiro!
Nascido junto à proa ou mesmo à ré
De uma bateira ou barco moliceiro,
Baptizado com a água da maré
Num amplo respirar de corpo inteiro,
De mística invulgar, altar de Fé,
Em cada veia o sangue de um esteiro,
De amarras de nortada feito até,
Mescla de sol e sal e maresia,
De alma a transbordar de mar e ria
Num céu ímpar de azul, alacridade,
Candelabros de mastros e de velas
De mágicos poentes, aguarelas
Num berço a baloiçar de eternidade.
O ser filho de Aveiro é ser-se dono,
Ouvir bem alto a voz do seu
patrono
Num grito triunfal de liberdade!
A. S. – Já agora, se me dão licença, gostava de dizer este poema, um dos
tais feito dentro do carro nas Pirâmides, a contemplar a nossa
maravilhosa cidade:
TORRES DA CIDADE
A Câmara, a Misericórdia, S. Domingos...
S. Gonçalinho e S. Gonçalo,
O Carmo e as Barrocas...
Torres da minha infância
E ainda torres de agora,
Enquanto a vida não finda,
Enquanto a vida cá mora.
A Câmara, a Misericórdia,
Mil vezes vos contemplei
Com o olhar vos recortei,
No pano de fundo azul,
Ou por vezes de cinzento,
Se o vento sopra, se o vento
Sopra com força do sul.
S. Domingos...
S. Gonçalinho e S. Gonçalo...
Sempre no mesmo lugar,
A ria é que sobe e desce
Porque as torres, que são prece,
Estão sempre na preia-mar,
Talvez um
pouco mais longe,
Talvez sim ou talvez não,
São o Carmo e as Barrocas
E eu aqui feito monge,
Em profunda adoração.
A Câmara, a Misericórdia,
S. Domingos. S. Gonçalinho e S. Gonçalo,
O Carmo e as Barrocas...
Torres da minha cidade
Que adoro desde menino,
Torres de ontem e de agora,
Quando, em jeito de saudade,
Dobrardes um
dia um sino,
Torres da minha cidade,
É porque me fui embora.
A. S. – Vou dizer mais um poema, um soneto, porque estamos em vésperas
(11 de Maio) de
Stª Joana:
De Afonso V filha idolatrada,
Do Príncipe Perfeito irmã dilecta,
Joana, do Senhor serva discreta,
Por Deus a entender predestinada.
Infanta por Infantes desejada,
Princesa singular, alma de asceta,
Em
molde de humildade se projecta
No céu e nesta terra abençoada.
Não quis fausto, riqueza, ostentação,
Mas o recolhimento, em oração,
Buscando a luz na sombra do Mosteiro.
Da nossa diocese soberana,
Louvemos em amor Stª Joana
Num cântico divino, enchendo Aveiro!
A. S. – Podia estar aqui eternamente a recitar, porque tenho muitos poemas.
S. A. – Em nome da Escola, muito obrigado por nos ter acolhido tão prontamente na sua própria casa, felicitamo-lo pela sua obra e prometemos tomá-lo como exemplo.
A. S. – Estou sempre à disposição, se necessário irei um dia às vossas aulas.
S. A. – Tínhamos muito gosto, até
para o resto da turma o conhecer, tal como outros alunos.
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Fonte da Praça do Peixe. Clica na imagem, se a quiseres ver nos
começos do séc. XX. |
Entrevista de Ana Sara,
Ana Sofia
Cátia e
Rui
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