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farol n.º 30 - mil novecentos e sessenta e oito ♦ sessenta e nove, págs. 7 e 25.

Lampadário de Cristal

Notas breves de comentário a um poema seiscentista

pelo aluno MÁRIO BASTOS RODRIGUES

UMA primeira leitura do «lampadário de Cristal» denuncia imediatamente o seu autor, não pelo nome, mas pela época histórico-literária: sem dúvida que só poderá ser localizado no âmbito seiscentista – é tipicamente barroco. No entanto, sem atender exclusivamente às características de estilo, podíamos formular a mesma asserção pelo que o poema apresenta de pormenores linguísticos distintivos: embora de um modo geral a linguagem se encontre já estabilizada, na sua forma definitiva de português moderno, temos de considerar que há palavras que não desmentem a localização do poema – por exemplo, «sutil»; «por» em vez de «para» («só por ser borboleta»; «laberinto»; «fermosa»; etc.. Além disso, as referências mitológicas mostram-nos que a composição não excede o campo da influência clássica.

Mas o elemento determinante é indiscutivelmente o estilo – retintamente barroco, preciosista, rebuscado.

Uma das constantes mais distintas do estilo barroco é o prosaísmo dos temas fúteis, sem significado superior. A pirueta de um cavalo, as insignificativas raízes de um tronco, um pé pequeno – e uma infinidade de ridicularias semelhantes – aí temos a pseudo-substancialidade de uma poesia cultista.

Aqui trata-se de um resplendente candelabro que se encontrava suspenso numa sala régia da corte e cuja luminosidade e requisito artístico seduziu, até quase ao exagero delirante, o autor deste panegírico. A sua dádiva é sublimada com todos os recursos de um bom artista rebuscado, que selecciona os vocábulos, para melhor os adaptar ao seu fim de encarecimento, antitetiza, metaforiza, rebusca e rebusca até tocar as raias da irrealidade.

Conceitualmente o poema é bastante reduzido, embora o seu alongamento estrófico o pareça desmentir. A sua zona objectiva é uma só: um lampadário, que é luminoso e sublime. De modo que o paralelismo ideológico da composição, a uniformidade do processo lírico (lírico?), o constante bater na mesma tecla da elevação exagerada do valor real do objecto – tudo isso acaba por enfadar e por nos retrair, ao avaliar o valor estético de um produto seiscentista. A forma / 25 / profundamente rebuscada, sobrepõe-se de tal modo ao conteúdo, ao tema, que acaba por o abafar – e nós pairamos no vazio, no oco de uma expressão que rompe delirantemente os grilhões, antes os débeis fios, que nos podem ligar à realidade.

E a poesia destitui-se de efabulação válida, social ou moral, para abraçar a «arte pela arte», a arte amoral, a arte associal: Isto não significa de modo algum que o trabalho do seu autor fique totalmente invalidado. De modo nenhum. O perfeito domínio da linguagem, a sua maleabilidade e plasticidade, a subtileza dos conceitos e pormenores – são valores que não podemos descurar, sendo apenas de lamentar que esses mesmos valores, meramente externos, não se apliquem a realidades mais profundas, físicas ou morais.

A profusão de hipérboles, a redundância de metáforas brilhantes e exóticas, o hermetismo das antíteses, dos paradoxos, etc. só terão válida aceitação no caso de se apoiarem numa forte realidade concreta, basicamente «razoável» e só assim a arte realizará o seu papel de síntese entre a tese da realidade «arrazoável» e a antítese do mundo da imaginação.

Este poema peca, pois, pela ausência total de substância lírica, emotiva; no entanto, atendendo a determinado critério de valorização estética, vale pela perfeição da sua forma (subtileza, profusão, contorcionismo, musicalidade até, domínio e plasticidade da linguagem).

 

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11-06-2018