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farol n.º 20 - mil novecentos e sessenta e cinco ♦ sessenta e seis, págs. 23 e 24.

O Presidente da Comissão das Comemorações do Bicentenário do Nascimento de Bocage, Prof. Doutor Hernâni Cidade, esteve em Aveiro, onde fez uma conferência de que aqui damos um resumo

No dia 17 do mês corrente, a convite do Rotary Club local, discursou no Grémio do Comércio o conhecido crítico Prof. Dr. Hernâni Cidade.

O tema versado foi Bocage.

Seguindo uma linha paralela à vida do poeta, o insigne orador tentou restituir Bocage à realidade libertando-o do mito de que o povo o rodeou.

Inicia a conferência analisando a época em que Manuel Maria viu a luz. Era um período de graves convulsões internas, o desabar do mundo clássico e o nascimento dum outro das ruínas daquele. Em suma, duma vida essencialmente social passa-se para um egocentrismo e individualismo totalmente opostos.

Hernâni Cidade justifica em seguida a primeira deserção do poeta: só no mundo, (a mãe morrera quando ele tinha dez anos; o pai pouco tempo passava em casa), sonhando com a fama, viu-se atraído para o sucesso fácil que os aplausos do Agulheiro dos Sábios, do Nicola e do Botequim das Parras proporcionavam à sua veia repentista.

Mas podemos dizer que ele verdadeiramente não desertou, pois que conseguiu o grau de guarda-marinha, que vai exercer na Índia.

Razões desta sua súbita partida: a atracção para um mundo fantástico, como era a Índia, representada na mente dos jovens da época, o desejo de heroísmo, para se valorizar perante a mulher amada, Gertrúria.

O orador referiu-se então à página imortal que W. Beckford escreveu sobre ele, salientando pela característica indiferença inglesa que ali se mutou numa arrebatadora homenagem.
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A longa viagem provocou-lhe uma reacção melancólica, que transparece nos seus poemas, ao mesmo tempo que começa a descrer da sua amada.

A Índia decepcionou-o. Já com o posto de tenente deserta de novo. A justificação, segundo o Dr. Hernâni Cidade, pode encontrar-se no seu irrequietismo, a ânsia do inesperado, acrescida do desencanto pela Índia e de dor pungente de desconfiança na sua Gertrúria.

Assim tudo o que o levara à Índia ruíra: o amor e a heroicidade.

De novo em Portugal é convidado para a Nova Arcádia. Aceita, mas o ambiente desta jamais o satisfez. Sente-se atrofiado perante liliputianos colegas.

E foge para o café, para a boémia, deixando atrás de si os longos discursos, tecendo elogios mútuos, a mediocridade poética, a hipocrisia.

Livros proibidos, gazetas proibidas, tudo transite pela sua mão, proveniente de França. O seu ardor atraiçoa-o e os «moscas» de Pino Manique encerram-no no Limoeiro. Aqui, devido aos horríveis tratos que lhe são infligidos, permuta o erro político pelo religioso. É assim que o vamos encontrar nos cárceres da Inquisição e mais tarde com os Oratorianos, tentando redimir-se. Aqui trabalha como nunca o tinha feito: revê o seu francês, o seu inglês e o seu italiano e faz traduções sobre traduções.

Ao sair está outro Bocage. Forma um lar onde sustenta uma irmã viúva com o seu trabalho. A prova de que era um novo Bocage é esta: José Agostinho de Macedo, há muito seu rival, ataca-o em versos provocadores e achincalhantes; pois Bocage responde com um soneto excepcional, pleno de dignidade.

O trabalho em excesso mina-o lentamente. Cai à cama e aí processa-se a sua reabilitação, que há muito se adivinhava. Reconcilia-se com inimigos e até com o próprio Deus: «Já Bocage não sou». Mas deveria ter dito: «Já Bocage torno a ser!»

Em Bocage reúnem-se dois aspectos opostos; por um Iodo ele é um clássico, como se nota na estrutura da sua obra, mas por outro representa de maneira elevada as novas ideias, a efervescência sentimental comunicada sem pejo ao papel. E não só isso. Surge também o anseio sádico pela dor, o anseio pela perturbação.

Assim, o valor de Bocage é acrescido, pois que consegue ser ao mesmo tempo romântico e clássico.

E isto é a perfeição, que só no fim da vida conseguiu tornar completa com a contrição da sua vida pessoal.

Jorge Abreu

 

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08-06-2018