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farol n.º 18 - mil novecentos e sessenta e cinco ♦ sessenta e seis, págs. 10 e 11.

DESPERTAR

Tammy

SENTIA-ME estranhamente aterrorizada. Sim, tinha medo. De quê? Nem eu sabia. Um medo terrível que me obrigava a fugir, espavorida como uma louca. Corria, corria sempre. Era um deserto sem fim. Sentia a presença dolorosa da solidão por toda a parte. Solidão e terror. Havia pedras, pedras grandes, enormes, que me ocultavam a visão e me faziam sentir mais medo. Pareciam-me seres gigantes, seres maus. Mas porque fugia? Estaria deveras louca? A ideia fez-me soltar uma gargalhado. Cínica? Não, não sei... Talvez nervosa. Tremia. Apercebi-me de que, na realidade, tremia muito. Tinha vontade de olhar para trás, para o caminho penosamente percorrido, mas o medo, sempre o medo. De repente... passos! Sim, os meus ouvidos não poderiam enganar-se. Uns passos pesados, enormes... O sangue gelou-se-me nas veias. Um terror intransponível paralisou-me os movimentos. Sentia uma dor na cabeça que parecia rebentar-me. Queria fugir, correr, gritar, mas não, não podia. E sempre os mesmos passos, pesados, enormes, sinistros. Eu sabia que era a morte que me estendia as suas garras. Garras terríveis, mas às quais não poderia resistir. Para quê lutar? Era o partido mais fraco, sucumbiria nesse combate desigual. Senti um arrepio percorrer-me o corpo. Durante quanto tempo, permaneci assim estática, desfeita em terror? Sempre os mesmos passos, pesados, enormes, sinistros... Virei-me subconscientemente e, de olhos esbugalhados, de unhas cravadas na carne...

Era um rapaz alto, magro, de pele queimada. O rosto era vincado por duas profundas rugas, um rosto cavado, com maxilares salientes. Tinha um aspecto aterrador. Os olhos fizeram-me tremer. Eram gelados como o sangue que me estagnara nas veias. Mas no fundo, bem no fundo daquele emaranhado verde que me fazia lembrar uma floresta virgem, palpitava uma fogueira abrasadora / 11 / como o sol do deserto. O cabelo, dum castanho descolorido, recordava-me o mar revolto. Um mar onde as vagas combatessem, umas contra as outras, numa luta diabólica.

Olhava-me, como explicar? Num misto de frieza e troça! Sim, talvez. Mas, apesar disso, sentia-me atrair, não pelo gelo, mas pelo lume daqueles olhos que queimavam. Sim, queimavam. Mas eu tinha o sangue gelado e aquele fogo fundia-mo. Hipnotizara-me. Bem o pressentira eu. Soube então porque fugia! Tinha-me nas suas garras e manejava-me como se eu fora um brinquedo sem importância. Aterrorizada, sem proferir uma palavra, deixava-me arrastar pelo calor daquele olhar esverdeado, embora permanecesse terrivelmente estática.

Ah cínico!

Mas de repente, apelei para toda a minha coragem. Rebentei ferozmente os elos de ferro que me prendiam a ela, à morte.

Contorci-me de dor, ao sentir a carne esfacelada por aquelas correntes que me amarravam à escravidão, Correntes que, embora me fizessem sangrar, os meus olhos não podiam ver. Luta encarniçada, na qual desfaleceria, se não sentisse um raio de sol
afagar-me.

De súbito, foi como se mil clarins gritassem a minha vitória. Estava livre. O seu olhar feroz já não me aterrorizava. Então soltei uma gargalhada que o fez tremer de raiva. Deu um passo em frente, ameaçador, mas eu já não tinha medo. Permaneci bem direita numa atitude de desafio. Vi-o então descer, em passos lentos, mas cadenciados, a «montanha da arrogância» de cujo cimo me olhava antes.

Senti que os meus dedos tocavam qualquer coisa frágil e macia. Olhei. Era o botão de rosa que havia colhido no início desta estranha jornada. Ainda me recordo... era um botão vermelho, as suas pétalas, ainda fechadas, faziam lembrar o cetim. Mas, que era feito do meu botão de rosa? Onde estava ele? Eu queria a flor ingénua que ainda não desabrochara. O que eu tinha na mão era uma rosa, bela sim, mas já aberta; uma rosa para a qual a luz do sol já não tinha segredos. Senti que uma lágrima de revolta me queimava a face. Iria decerto amarfanhar o veludo daquelas pétalas, para em seguida as espezinhar, quando li uma censura nos olhos verdes! Então, não sei porquê, acariciei a minha rosa e guardei-a para sempre.

 

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08-06-2018