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farol n.º 17 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 23 e 24.

«E... a vida... é assim...»

Agostinho V. Pinho
(6.º ano)
 

A noite, teatro dos mais variados dramas sociais e políticos, é escolhida por mim, como testemunha de um acontecimento chocante. Isto passa-se numa daquelas grandes cidades, populosas e barulhentas, em que a miséria dos corpos é mais profunda que na vida calma das aldeias e cidades provincianas.

Quanto maior é o aglomerado urbano, maior é, também, a desgraça, a miséria e a corrupção. Todos este factores vivem ligados e concorrem para a ruína e morte de milhares de seres, no ambiente «tóxico» da cidade moderna.

O tráfico tinha parado e o maciço das casas condensava-se mais e mais... Era mais de meia noite... Vagueava eu nas ruas tortuosas e disformes de uma zona secundária da cidade. Encostei-me a uma esquina e quedei olhando o céu tingido de nuvens movediças e silenciosas. Não fiquei ali: o tempo chamava-me; não conseguia concentrar-me naquele lugar solitário e feio.. Assim, caminhei adiante... pensativo...

De quando em quando a boca escancarada dos esgotos, com os dentes carcomidos pela ferrugem, surgia na parte inferior dos passeios. Mais além, era um candeeiro eléctrico que emitia sua luz amarela e uma sombra muito esguia, muito comprida. Ali, era uma janela que deixava coar uns raios ténues da iluminação interior da habitação. De um lado e doutro, as casas aconchegavam-se umas às outras, como que protegendo-se contra os frios e tragédias nocturnos. Dei uns passos calmos e deparei com uma mulher sentada no rebate da porta de uma pequena casa (era mais uma choupana que uma casa), com uma criança adormecida (parecia adormecida!) ao colo. A pobre criatura chorava... Continuei o meu rumo, mas fui procurar um ponto de observação: um vão de uma porta. Aquele quadro impressionava-me. Estive ali, embrenhado em pensamentos errantes, durante uns dez minutos... Nisto, surge na esquina próxima uma figura que ia crescendo, crescendo, tornando-se mais distinta.
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Consegui ver um homem cambaleante, que cantava baixinho: «e... a vida... é assim». Passa por mim, mas não me nota; segue deixando atrás de si um vapor azedo, semelhante àquele hálito incomodativo que lançavam os esgotos...

Chega junto da mulher e atirando o chapéu ao solo, berra: «Maria, já para dentro!» A pobre levanta-se rapidamente e, agasalhando a criança, dirige-se para o seio da pequena habitação (poderá chamar-se seio?). Logo a seguir o homem entra, depois de levantar o chapéu, e bate a porta com estrondo...

Aproximei-me. Ouvi estas palavras ásperas: «Venha a ceia» e uma resposta submissa e misturada com choro: «não temos ceia».

Diante desta crise, afastei-me rapidamente, ainda mais pensativo que anteriormente e recordando a miséria do mau pai de família, que gasta na taberna aquilo com que poderia fazer feliz a mulher e os filhos.

Mas estes problemas familiares há-os a cada passo e o remédio não chega a aparecer... é o mal das grandes cidades, onde desgraças encobertas são muitas vezes postas em evidência, como o demonstra esta situação crítica daquela família...

 

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08-06-2018