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farol n.º 14 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 16 e 17.

Cinema e Teatro

Carla Maria Campos e Sá
(7.°ano de Letras)

FALAR de cinema e teatro? É um tema aliciante, mas que se me apresenta ao espírito como um plurifacetado corpo, de forma irregular, que, na profusão dos ângulos, encerra a virtualidade de mil formas diferentes.

A escolha do ângulo, o aspecto a encarar, eis a minha primeira dificuldade. De que me ocuparei eu? Da minha preferência por um ou por outro, e das razões dessa preferência? Mas como, se ela não existe? Aprecio igualmente o cinema e o teatro, por razões bem diferentes, sensível que sou às variadas formas que a beleza possa assumir, pronta a receber a sua mensagem a captar a potencialidade da emoção estética que qualquer dessas formas de arte, quando superiormente manifestada, possa conter. Compará-las? É tão difícil! São tão diferentes! O campo de acção do cinema é imensamente mais vasto que o do teatro, e nisso está a sua grande vantagem. Sim o teatro não é o cinema, mas está, de certo modo, contido nele. No entanto ouso dizer que, perante o teatro filmado, a reacção do espectador não é exactamente a mesma que perante um palco, em que se movimentam, falam, riem, choram, amam, odeiam, numa palavra, vivem figuras de carne e osso, que o calor da plateia aquece.

Representar perante um público que se faz vibrar, estabelecendo como que uma corrente magnética entre a cena e a plateia, / 17 / é muito diferente de actuar perante frias máquinas, por muito calor que possam gerar os potentes reflectores. No cinema, a interposição das câmaras, da película e do ecrã entre actor e espectador, atenuam bastante a impressão de vida autêntica que se quer produzir. É que a essência, a natureza especifica do teatro é muito outra que a do cinema. O teatro está muito preso à literatura, que a precede e sem a qual não existe. Antes de ser acção, é verbo. A essência, o miolo do teatro, é o diálogo que o gesto e o jogo fisionómico completam. O resto é «décor», como se diz em linguagem teatral. Por isso no teatro não há apenas espectadores, mas também, e antes de tudo, auditores. O cinema é essencialmente a linguagem das imagens. São estas que devem falar, e o diálogo deve ser, tanto quanto possível, suprimido. O cinema é uma arte plástica, e, por isso, no cinema, há apenas espectadores.

Não resta dúvida, porém, que os limites do teatro são muito mais estreitos que os do cinema, que, como acima dissemos, contém, de certo modo, o teatro, quando nos conta uma história. Mas o cinema pode passar sem o teatro, abolir totalmente a história, como acontece nos documentários cinematográficos. Todavia, aqui, já não se trata de uma arte, mas de uma técnica. Realizadores há, porém, segundo li algures, realizadores artistas, como Visconti, Antonioni e Ingmar Bergman, que se esforçam por abolir a história, por depurar o cinema do que lhe é acessório, e, quanto a eles, um obstáculo, até, pretendendo que se opere no domínio cinematográfico algo de semelhante ao que se verificou na pintura, em que, ao evoluir para pintura abstracta, o quadro deixou de «contar», e indo mais longe, deixou mesmo de «representar», para dar apenas impressões de cor. Talvez esteja aqui o futuro e a salvação do cinema, seriamente ameaçado pela concorrência da televisão. Mas isto vai dar outro caminho em que não quero aventurar-me, desviando-me do meu. Aludi às vantagens do cinema sobre o teatro, e ainda não falei do principal: a grande mobilidade que pode permitir-se em contraposição ao carácter estático do teatro, para o qual as barreiras do espaço e do tempo são intransponíveis; a acção do teatro decorre sempre num palco onde, mesmo as mudanças de cenário não são fáceis nem rápidas. O cinema pode levar-nos tão longe quanto queira, utilizando os mais diversos meios de transporte. Assim, só ele me permitiu, até agora, visitar países com que muito tenho sonhado, só ele me proporcionou viajar num submarino, num avião a jacto, ao mesmo tempo que me permite acompanhar até certa altura, claro, um foguetão que a curiosidade e a insatisfação do homem dispara contra os céus, para devassar o que até agora tem sido um segredo ciosamente guardado.

 

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08-06-2018