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farol n.º 4 - mil novecentos e cinquenta e nove ♦ sessenta, págs. 4 a 6.

Cartas benditas

Maria Eugénia M. Oliveira
2.° prémio (3.° ciclo)

ENQUANTO na rústica igreja da aldeia se entoavam os cânticos tradicionais daquela «noite de paz, noite de amor», e se esperava com ansiedade a vinda do Menino, a sr.ª Felisberta, tendo nos braços a filha doente, pedia ao Jesus que não quisesse descer do Céu sem trazer as melhoras à sua menina, e uma contradição ao desejo de seu marido partir para além-mar.

Havia vinte anos que o seu abençoado lar fora fundado.

A riqueza fora sempre pouca, mas muita a saúde, a felicidade e a paz. E só agora, passados esses vinte anos vividos na mais pura harmonia, ele se lembrara lançar pelo mar fora, à procura da fortuna, vagueando como um barco sem rumo, ao sabor das ondas do destino.

E a sr.ª Felisberta misturava quase sem dar por isso a prece confiante ao Deus Menino, com a lembrança triste de ver realizado o desejo de seu marido.

Todos os sonhos da sua juventude foram compartilhados, alimentados e tornados realidade em união com ele.

Dedicou-lhe toda a sua mocidade feliz, foi a sua companheira fiel em todos os momentos alegres e tristes, fáceis e difíceis da sua vida de casado, também agora, sentindo as forças diminuírem para ganhar o pão de cada dia, pensava merecer o amparo e a companhia do marido.

E só hoje, passado o vigor da juventude de ambos, quando a sua presença era mais solicitada para a educação das filhas resolvera ir abanar a árvore das patacas e encher o saco de oiro para trazer ao lar.

Absorta nestes pensamentos, a sr.ª Felisberta quase esqueceu a filha doente que tinha no regaço.

– Não te sentes melhor, pois não, meu amor? Perguntou à menina, com voz vacilante, com voz de quem encontrasse de repente a realidade do momento. Porém a criança  / 5 / como que não soubesse o que responder, mexeu-se no seu regaço abriu os olhitos e lançou um olhar meigo ao rosto da mãe perguntando:

– O paizinho?

– Foi à Igreja, ver nascer o Jesus, e pedir-lhe que te melhore. E olha, Nandinha, queres também pedir comigo ao Menino, que faça com que o paizinho não vá para o Brasil? Queres? Então vamos pedir-lhe.

E puxou cautelosamente o lenço do bolso, para limpar duas lágrimas que queriam mostrar à filha a tempestade que abanava aquele pobre coração de mãe. E depois ambas rezaram.

Por fim mais duas lágrimas que queriam ser traidoras. Talvez fossem as primeiras vertidas por ela numa noite de Natal. Outrora, nesta Santa noite, sempre um facho aceso e refulgente a alimentar esperanças, sempre esperanças. Hoje apenas um apagado e negro, a assinalar angústia, a lançar uma ponte à desilusão.

De repente estremeceu. Um foguete estala, outro, outro e mais outro. Era meia noite. O menino acabara de nascer.

Chegou o momento próprio de perguntar a Jesus pelo seu presente de Natal. Pousou vagarosamente a filha na cama e correu a pôr ao lado dos sapatos da Nandinha e da Teresa também os seus com um bilhetinho: «Querido António: Consagrei-te toda a minha juventude feliz, parte ainda da minha infância despreocupada, como sabes, e hoje peço-te um presente de Natal: Aceita a minha velhice».

Daí a pouco a sr.ª Felisberta deitada ao lado da Nandinha, ouviu passos na escada e o ranger da porta. O marido chegava. O marido ia pôr ao lado dos presentes das meninas, o sim ou o não ao maior pedido que a esposa até hoje lhe apresentara.

O galo cantara a anunciar a manhã daquele dia de Natal. Ao som desta melodia a Teresa acordou e lembra-se do Menino, dos presentes do Menino.

Escutou durante uns momentos o tic-tac do relógio no quarto da mãe, espreguiçou-se, tornou-se a espreguiçar, esfregou os olhos e por fim saltou da cama. Em bico de pés para que ninguém desse por isso, empurrou a porta da casinha e entrou.

Mas corno? E parou de repente esfregando outra vez os olhos. Que viria a ser aquilo? Uma carta num seu sapato, muitas guloseimas nos da irmã, um bilhete num sapato / 6 / da mãe... Estaria a sonhar? Não, não estava. Mas afinal o que seria aquilo? E pegando na sua carta começou a ler: «Querida Teresa: Eu quis que fosse apenas este o teu presente de Natal. Eu quis que fosse ele só qualquer coisa que te fizesse pensar mais no cumprimento dos teus deveres, acordar-te desse sono infantil em que ainda teimas dormir e alertar-te para a vida dura que te espera agora.

Já tens quinze anos. Penso que chegou a hora de enfrentares a vida de arma em punho, pronta a saíres triunfante dela. É que sabes, querida filha, na vida há vencidos e vencedores. Só é vencido quem quer, mas só será vencedor quem lutar. A vida não é só esse mar calmo e brilhante, esse céu claro de azul suave, esse horizonte avermelhado, esse cantar alegre dos pássaros na primavera que tu sempre vislumbras. Não, minha filha. Talvez que até hoje a vida para ti fosse só isso. Mas eu quero acordar-te desse sono, eu quero que penetres na realidade.

A vida vai ser por vezes para ti um mar rebelde e agitado, um céu de nuvens escuras, um horizonte apagado, um grito medonho duma coruja no Inverno. Mas também não quero que entres nela de fronte baixa, olhos no chão com medo da derrota. Sairás tão triunfante quanto da tua timidez. Subirás tão alto, serás tão grande quão fortes forem as tuas asas para alcançar o cume da montanha. Segue pelo caminho do Bem, da Verdade e da Justiça, certa de que em breve alcançarás a palma da vitória.»

Assim acabava a carta. A Teresa quase inconscientemente pronunciou um «sim» em voz alta, ao mesmo tempo que lançava a mão ao bilhete da mãe e lia: «Felisberta: Já que assim o queres, estaremos juntos até que um dia a morte nos separe.»

Gumerânia

 

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05-06-2018