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farol n.º 3 - mil novecentos e cinquenta e oito ♦ cinquenta e nove, págs. 9 a 12.

Noite na madrugada...

Benjamim Adelino Costa de Pinho
(7.º Ano)

QUE frágil atleta era Mário para suportar a dureza de uma guerra pesada, essa guerra horrível que não poupa fortes nem fracos, ricos nem pobres, arrojados nem tímidos.

Era de noite, em Janeiro; e a Ana do Cabeço, lá ia triste, cabisbaixa, tremendo ao som de uma chuva gelada, pressentindo além, muito além, por entre as oliveiras esguias e despidas, o abismo terrível de um fim.

Mas o Mário, sangue frio, todo a expressão da vitalidade e do génio de uma raça, não inspirava qualquer sopro de descrença. Mergulhado em sonhos de glória, consentia uma serenidade aparente, plena de relances turvos pela dúvida.

– Anita, não chores; não temas um bem que esconde, mas se esconde com o teu coração. Parto com Pátria, envolvido por ela e nela sentindo o despertar da aurora que há-de ser o orgulho do nosso filho, o espelho brilhante da tua lealdade.

– Sim...; não, não choro... não quero chorar... mas eu, sem ti... um sopro mais leve que vento do beco!

– Ora... ora! Afasta de ti tal pensamento. Supõe-me um ausente transbordando de vitória talhando o dia de regresso.

E, como que cedendo a amplidão incerta que corrompe a esperança:
– Não nos rodeemos de estéreis tristezas, já que nelas andamos abraçados.

– Que Deus te veja através de minha fé que minha alma há-de / 10 / exceder quantas em desmedidos corpos se agasalham – dizia Ana, olhos roxos e pisados, afogados em lágrimas, transportada para horizontes ocultos.

– ... aquecido por manto heróico, sentir-me-ás adormecido no alvor íntimo do nosso amor conjugal. Ver-nos-ão dois jovens enamorados, escravos de um mesmo ideal. O pequeno..., o nosso filho, há-de sentir o aroma desse jardim e desabrochar para a vida, um vigor fértil de homem erecto.

Naufragado nas trevas, pálpebras entreabertas, deixando escapar um raio indeciso, entranhava-se já no ruído do mar. À sua volta, tudo era confuso, tudo era uma espessa nuvem de poeira. É que ele sabia que os sonhos do mundo são tão ténues, tão frágeis, que a menor brisa os esboroa para sempre.

De repente..., desperta da funesta solidão que o atraiçoa, passeia a mão pela testa, respira fundo, e fecha os olhos para prolongar a ilusão.

O tempo corre vertiginosamente, a lua esconde-se por detrás da escuridão, e o vento, rude e frio, beija-o bruscamente.

Mário, por instinto, pára. Sente todos os movimentos paralisados. Acorda para a crua realidade da vida, e descortina, ainda que, a olhares sequiosos, os umbrais de uma prisão. Recua... 11 horas!... A noite vai alta e triste. Uma casa sombria, alvo da mais pertinaz algazarra.

Pela porta entreaberta, sai um ai aflito, tão misto de tristeza e de dor, uma dor amarga que se intensifica. Aproximava-se a hora cruel da despedida. No ar, o apito, estridente do comboio.

O terrível aspecto de uma estação, testemunha de tantas lágrimas traiçoeiras, de tantos abraços doridos, onde esmorece uma imensidão de desejos e propósitos, de tantos beijos, para quantos o último, que alanceiam e separam corações há muito unidos, e para sempre!...

Uma massa compacta de mães, irmãs, parentes, namorados e amigos, desfalecida, é dominada pela longa cegueira de um adeus. Lá estava a Claudina, a «a mulher da malta» como o vulgo lhe chamava, a animar com o seu conforto, e a ver desaparecer na linha da estação, o rasto traiçoeiro de alguém que parte, a alma vazia de uma dor que fica.

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À esquina da rua, uma multidão impaciente espera. Manhã de 11 de Fevereiro. No horizonte coava-se o Sol por entre os salgueirais. Era o edifício dos correios e com ele a ânsia de boas novas. Notícias de entes queridos, perdidos na nostalgia da Pátria distante, sentido talvez, as névoas da saudade dum alguém ausente.

A um canto, debruçada em pedra tosca, uma figura seca, / 11 / faces congeladas, cabelo desgrenhado, olhos brilhantes e colados à mão, onde num dos dedos brilhava uma pedra esverdeada, como um emblema de esperança...

Era a Ana do Cabeça, trémula, prevendo forte desilusão.

É que há muito se lhe negavam notícias de quem saíra... com promessa de voltar.

Expressão dura, gelada, começava já a acreditar no desenlace.

Cobria-a o véu de saudade, que a morte perpetua, e atrofia o espírito dos menos prevenidos, não sem hesitações e incertezas, que o tempo vai esclarecendo, abrindo as janelas nuas da triste realidade.

O tempo passava, os dias sucediam-se, e essa remota esperança ia jazendo em campo infinito. Aí se sepultava lentamente, o exemplo do desinteresse mais puro, do sacrifício da vida mais completo, da mais alta noção de servir.

– Mãe..., se Deus nos dá tudo, porque deu aos outros pai e a mim não? Porque andas de preto e as outras mulheres não?

A Ana, apagando com o lenço uma lágrima rebelde, vê desvendar-se, aos poucos, o mistério que a sua boa fé tentara ocultar. Com a máscara do luto estampada no corpo, que de claro só a pele macia e alvacenta do seu rosto, deixava-se arrebatar por um mar de recordações. Pintava-se-lhe vivamente na imaginação o amor heróico do marido.

– O teu pai, filho; implora para que tu sejas alguém por que ele suspira.. porque ele suspirava!

– Eu sei. Julgas que não sei. Eu sei por onde vagueia o meu pai.

Caía a tarde, e o Sol sumia-se por detrás da terra, grande e vermelho no ocaso.

Na ponte do arco-íris da esperança, a Ana quedou-se por momentos num silêncio impassível... É que estava perante a eminência do irreparável, com os olhos perdidos no longe da paisagem, que se escondia num tom saudoso de encanto.

– Mas que sabes tu, filho? Sabes que teu pai foi defender a terra que pisamos, a casa que habitamos, este ar desanuviado, que respiramos, e defender-nos a nós mesmos, defendendo a nossa querida Pátria? E talvez um dia... venha abençoar o teu coração grande.

E essa mocidade, toda crepitante; deixa-se assim voar na ilusão, mal acordada da dolorosa certeza.

Seis anos eram volvidos! O António crescera, era agora um rapaz vivo, bem nascido em sabedoria, manha e robustez e era alvo das mais variadas atenções, não só pela sua nobreza de carácter, mas também porque punha de prevenção os seus / 12 / vizinhos, à hora que usualmente regressava da escola. É que a sua fácil agilidade era atraída pela fruta dos pomares.

Esse hábito acarretara-lhe amargos dissabores, e não se podia ocultar à fama de rapinador, que correra célere por toda a região. Entrara mesmo na própria escola, onde desaparecera algum dinheiro que distraidamente havia sido colocado na secretária.

Fatigado de investigações, o professor não ficara incólume da ferida que o rapaz alastrara. Intima-o então, a apresentar a quantia desaparecida.

– Rapaz, onde escondeste o dinheiro? – perguntou o professor Neves, já fora dos domínios da razão.

– Eu, eu não escondi nada!

– Então que lhe fizeste?

A insistência do professor teve agora resposta seca.

-- Nada!...

– Não tiraste nada, meu patife? Ainda ousas enganar o teu professor, o mestre amigo de tantas horas, que com tanto carinho e abnegação te tem arrancado da inocência passiva em que jazias, te tem procurado iluminar a inteligência, dar-te o conforto espiritual de que tanto carecias, meter-te dentro da unidade consciente e forte da nossa escola, encaminhar-te num puro ideal, resiste a todas as paixões, a que tão infantilmente andavas ligado?

– Diz-me, António, é assim que agradeces o trabalho do teu professor? É assim, procurando enganá-lo? É assim António? Ainda tentas negar o teu roubo?

O rapaz mantém um silêncio mudo e frio.

– Porque não abres a tua consciência, meu malandro? E dizendo isto, arremessa-lhe à cara as mãos ásperas e fortes de cólera.

Nem uma lágrima lhe aflorou aos olhos, mais esgazeados agora que até aí; nem um grito de revolta lhe subiu da garganta seca; nem um ruído lhe vibrava nos ouvidos que não fosse o eco já disperso das palavras para ele disparadas:

– Anda, confessa, que fizeste ao dinheiro roubado?

– Não, não, não roubei nada!...

No auge do desespero, o professor esquece-se da orfandade do rapaz que, com a cabeça aturada nas mãos e o cotovelo apoiado nos joelhos, perecia esconder a vergonha da sua triste condição.

– António, tu não tens pai? Que faz o teu pai?

E aqueles olhos vivos, erguem-se com o olhar pesado e o cabelo desgrenhado, e fazendo do polegar indicador, deixam-se cair.

– O meu pai... o meu pai está aqui... aqui dentro do meu peito.

 

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05-06-2018