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farol n.º 1 - mil novecentos e cinquenta e sete ♦ cinquenta e oito, págs. 23-26.

Contornos e Esbatidos

Rui Manuel L. Araújo

1.º Prémio – Prosa – 3.° Ciclo


SILÊNCIO fundo.

Uma porta entreaberta.

Meia luz.

Uma respiração branda, compassada, em ritmo...

Um ruído, um rumor surdo. Depois silêncio. De novo algo se ouve.

Alguém que ressona.

Lá ao fundo, no escuro, arqueja o velho despertador num tic-tac monótono e pesado. O ponteiro grande avança, avança cada vez mais através daquele silêncio profundo e morno. Corre, corre, avançando no seu passinho miúdo, mas certo.

Assim é o tempo.

Eis que chega. Algo ressoa no escuro, arrepiando o ambiente. Alguém mexe, rolando no quente, mergulhando no travesseiro, afundando-se mais e mais....

Uma mão sai, tacteando nas trevas. Tacteia e encontra.

Tudo cai de novo em silêncio.

Mais uma volta e mais outra e aquele alguém adormece.

O ponteiro grande corre e corre cada vez mais no silêncio morno e fundo.

Abrem-se uns olhos em sobressalto, vermelhos e inchados. Alguém num repente, melenas descaídas e olheiras fundas, salta da cama lançando longe cobertores e lençóis.

De pé, pijama de listras, alguém se espreguiça e uma boca grande se abre num bocejo quente.

Um outro repente e as portadas abertas de par em par.

Alguém se ofusca por momentos.

Depois um céu azul muito aberto, caindo sobre o vermelho dos telhados, brilhantes ainda no seu manto de orvalho.

Ao escancarar a janela alguém pensa nesta natureza bela, toda luz e cor. Uma fufada fria e cortante e um sol a brilhar lá no alto, muito no alto.

A carroça das hortaliças correndo no empedrado, os tamancos dum bom velhote batendo calçada acima, as leiteiras muito / 24 / apressadas nas suas batas brancas... tudo isto numa manhã de outono.

Já vão longe as matinas.

Ali um telhado, mais além outro e ainda outro, vermelhos, dum vermelho garrido salpicado pelo verde amarelecido do musgo.

Num beiral soalheiro um pombo atrevido e uma pombinha recatada beijam-se discretamente. Beijos e arrulhos.

Acolá, noutro telhado um gato lambe-se todo, estirado ao sol acolhedor.

E pronto. Alguém sai. Fecha-se uma porta.

E lá na cama sozinho fica o travesseiro amarrotado a brincar satisfeito com um fio de luz matutina...

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Noite encharcada e fria. Sem lua.

Por trás das vidraças um vulto recortado na claridade.

Sorri, não. Chora, também não. Que faz, que faz ele?

Olha para mim, sim para mim que sou a chuva.

E eu caio gota a gota lá do cimo, do escuro....

Caio num pingo grosso sobre o asfalto negro, brilhando à luz mortiça do candeeiro da esquina. Coitada de mim, que de tão alto caio.

Venho, poiso de mansinho sobre as ralas folhas de uma tília, escorrego pelas nervuras e também caio.

E ali um guarda-chuva, muito preto e esticado a amparar-me na queda. Eu lá fico sem escorregar.

Embalo-me além numa poça de água barrenta; bem no meio da rua, onde um pé grande, desmedido me calca e esmaga.

Dorida, eu grito em voz rouca.

Aqui, nesta janela de caixilhos desbotados, cá vou eu devagarinho, vidro abaixo... Lá de dentro vem um bafo quente, embacia-se o vidro e um dedo comprido e magro risca um boneco.

Tombando das trevas, saltitando no telhado eu canto chorosa.

Desço grossa, em grandes pingos sobre a cidade e depois, arrepiada, correndo na valeta, caio num buraco escuro e muito fundo.

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Abre-se acolá uma porta e sai uma mãozinha pequenino e rechonchuda.

Deixei-me cair devagarinho.

E aquela mão pequenina arrepiou-se e fugiu. Uma toalha, um breve esfregar e morri.
Triste fim. Eu que fui, sou e serei sempre as lágrimas do SENHOR.

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Um vento frio e cortante silva pelas frestas das janelas bem trancadas.

Lá fora, um nordeste gelado assobiando nos ramos despidos I e enrugados...

A última, a derradeira folha, queimada e amarelecida pela geada desprende-se, baloiça no ar por momentos e depois lentamente cai morta.

Mas aqui está quentinho. Ali, debaixo da mesa, um crepitar vivo faz adivinhar a velha braseira sempre acolhedora.

Ouve-se o tilintar dos garfos, o tinir dos copos, o barulho duma conversa animada, o riso alegre das crianças...

A porta está aberta. Entremos.

Uma mesa enfeitada, coberta de bolos, queijadas, filhós, rabanadas e tanta coisa apetitosa.

Ainda ali, bem no centro vemos duas pinhas a brilhar à luz trémula das velas.

À volta da mesa, muitas pessoas... a avozinha vestida de preto e o cabelo todo branco, branquinho de neve, as faces rosadas e os cabelos loiros dos netinhos, o sorriso aberto da mamã, e os óculos grossos e a careca brilhante do papá e a cadeira vazia do avozinho.

Junto aos guardanapos ali estavam os raminhos airosos de azevinho.

O peru, recheado e bem tostadinho, lá estava no aparador, ao lado da faca brilhante e afiada.

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À mesa, uma mão pega numa concha bem cheia de sopa, enche um prato, outro e mais outro...

É uma rica canja com suculentos nacos de chouriço a boiar. E a terrina sempre a fumegar.

E assim se foi comendo naquela noite, uma noite de natal agreste e ventosa.

Acabaram por fim. Um arrastar de cadeiras e uma voz doce, alquebrada pela velhice, fez-se ouvir no silêncio da sala:

«Pelo avôzinho, meus filhos, Avé-Maria, cheia de graça....»

E ela, a pobre velhinha, de olhos baixos, chorava.

Na mesa, as velas também choravam em silêncio, choravam lágrimas de cera.

Lá longe, na escuridão, o sino batia as suas badaladas imensas. Chamava à missa do galo.

No alto, muito no cimo uma estrelinha tremia de frio.

SENHOR?

 

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04-06-2018