Inéditos
Contou-nos alguém destas terras, pessoa que estimávamos e que
já não se encontra entre nós, que tendo como familiar um homem
um tanto dado à bebida e pessoa de comportamentos estranhos,
aconteceu várias vezes ele chegar a casa, noite fora, já bem
bebido, vindo de casa de algum amigo, ou da taberna, e numa
fúria incontida, começar a andar
à volta, no quarto, a subir as paredes, sempre à volta, quase
até ao tecto, mantendo-se equilibrado, descendo e voltando a
subir, num frenesim indescritível. Essa pessoa não sabia
explicar tal fenómeno, mas afiançou-nos que presenciou várias
vezes este espectáculo. Imaginem! E era pessoa de bem, nada
dada a mentiras, pessoa em quem acreditávamos.
Além deste, contava-nos de outro que tratava certos males, de
algumas pessoas, apenas com o tacto e que com um simples olhar
estilhaçava um copo de vidro.
Sendo que, para o episódio de estilhaçar o copo existem
explicações, as curas, essas, ficam por conta da imaginação de
cada um.
Parece que o Ti Carramão ia ao moliço e ficava por lá dois e
três dias. Quando voltava visitava a sua namorada, a Naziré
Cuteta, cheio de saudades. Um dia foram a uma festa e no
caminho tiveram de atravessar uma vala larga, com muita água.
Como a vala era funda, o homem, num gesto de cavalheiro,
resolve pegar na cachopa ao colo, para lhe facilitar a
travessia.
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A meio da corrente o mancebo, agarrando fortemente a musa dos
seus sonhos, pergunta-lhe aflito:
– Ó Naziré a tua honra está por fora ou por dentro da saia? Ai
mulher! Se está por fora já te desonrei...
Também nos falaram da subserviência e dedicação demonstradas
por uma mulher que chegava ao cúmulo de ir levar o jantar,
pelo meio-dia, ao seu marido, enquanto ele passava um dia
atrás de outro, na taberna do Ti Silvino, a fumar e a beber,
quase só indo a casa para dormir.
E segundo nos disseram, viveu uma mulher na Quintã cujo marido
era bastante mais velho do que ela e, consta que, quando a
dama se zangava com ele, resolvia pô-lo de castigo. E qual era
esse castigo? Quereis saber?
Pois dizem que a mulher forçava o velhote a sentar-se numa
trempe
quente.
Ele há cada uma!
Também soubemos que um determinado sujeito, ainda antes da
chegada da electricidade, comprou um grande aparelho de rádio
o qual era alimentado com a bateria de um carro. Como era
coisa rara, novidade que, na terra, ainda ninguém tinha,
vizinhos e conhecidos juntavam-se para ouvir a música saída
dali, como por magia. Havia um programa com ranchos
folclóricos. Para escutar essa maravilha uma certa mulher
nunca faltava em casa do vizinho. Qyando a dona da casa
baixava o volume, por qualquer conveniência, a mulher dizia,
convicta e com ar sabedor: "Olha!... Os pares agora vão a dar
a volta, vão ao longe... quase nem se
ouvem..."
Curiosa é a facetada tradição da ida a Aveiro à Procissão das
Cinzas, momento alto na cidade e na igreja diocesana que, como
o nome indica, tinha lugar todos os anos, na quarta-feira de
cinzas.
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Pois era comum grande massa de povo deslocar-se a Aveiro para
assistir a esta manifestação de fé e penitência.
Como os transportes eram raros e o dinheiro muito pouco, o
pessoal
ia a pé ou de bicicleta, logo pela manhã, regressando à
tardinha.
Rapazes e raparigas partiam em ranchos e este trajecto era uma
das oportunidades ideais para conversas e encontros que
poderiam mais tarde resultar em namoro.
Ao voltarem era comum virem os jovens aos pares caminhando e
conversando animadamente.
Se, por ventura, alguma moça apesar dos seus esforços,
regressava sozinha, era certo e sabido que vinha triste, mas
pior ficava ao chegar à sua terra, pois ali era geralmente
aguardada por bandos de garotos matreiros, sempre prontos a
espiar quem vinha com quem. Essa "canalha miúda" ao ver uma
rapariga sozinha, como se não bastasse a sua desilusão, apupava-a gritando-lhe:
– Oh! Vens de rapóla! Vens de rapóla!
E quanto mais ela se zangava, mais eles gritavam fugindo e
escondendo-se por detrás dos muros:
– Vens de rapóla! Vens de rapóla!
Que nem portas!
Antigamente as pessoas destas terras, necessitando de mudar a
cama ao gado e fazer estrume para fertilizar as terras, iam ao
mato à floresta. Saíam de madrugada para que o dia rendesse.
Lá pelas cinco da matina
já estavam prontos a partir para uma jornada de trabalho
árduo. Normalmente num dia roçavam o mato e no dia seguinte
iam buscá-lo. Para se ajudarem mutuamente, sobretudo ao fazer
a carrada, dava sempre jeito a companhia de algum vizinho,
pelo que era usual combinarem ir juntos.
O João Daqui, e o João Dali, velhos amigos, iam sempre um com
o outro, acertando pormenores na véspera. O João Daqui
forçosamente passava pela casa do amigo, visto esta calhar em
caminho e, num dia como muitos outros, encontraram-se para
combinar a partida na manhã
seguinte.
Dizia o João Dali:
– Eh Ião! Amanhen passas por qui às cinco da manhen, e chamas
pro
mim. Carregar os dois carros ainda demora e as bacas
carregadas lebam muito
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a cá chegar. Combém irmos bem cedinho p'ró tempo dar p'ra
tudo. Olha qu'eu
no bou sem ti.
– S'tá bem, s'tá bem home! Se assim queres. Bai atão cada um,
cando
queer.
– Combenado passas por qui e bates à porta.
– Certo, se assim queres, tá tudo bem, home. Cada um bai cando
quejer. E repetiram a conversa, e o comprometimento várias
vezes, para não
restarem dúvidas.
Separaram-se, e depois de uma noite bem dormida, o João Daqui
levantou-se, e maila mulher, puseram as vacas ao carro. A tia
Arminda puxou de um saco e sentou-se entre os taipais, no
lastro da carroça, enquanto o homem, de vara na mão, pegou na
soga das reses. E lá seguiram rumo à floresta, ainda o dia não
rompia.
Ao passarem junto da casa dos amigos, a tia Arminda, vendo que
o seu home nem sequer para lá olhava, nem parava as bacas,
pensou que ele fosse destraio, e gritou-lhe:
– Atão home! No chamas o Joãozito?
– O quê melher?
– No chamas o Joãozito?
– Xíu. Ante combenámos que cada um ia cando quejesse.
– Oh diacho! Afinal no vamos todos juntos?
– Xíu. Já te disse que cada um bai cando quejer.
Tia Arminda estranhou mas, calou-se, e lá seguiram sozinhos,
embora
ela não fosse muito contente. Sem outro home pra ajudar,
sobrava para ela. E calhava mesmo mal. Ajeitar a carrada tem
muito que se lhe diga.
Com o mato roçado, mal chegaram, começaram logo a carregar.
Já estavam a amarrar a carrada quando, caminho fora, apareceu
o
João Dali e a sua mulher, ambos com cara de arrenegados.
Ao acercarem-se, logo o João Dali, danado, se atira ao amigo:
– Atão João, onte no combenamos bir ambos os dois?! Não me
chamastes
proquê? É lá coisa que se faça?! Linda acção! Sim senhor!
Estinve eu toda a vida à tua spera, com tanto p'ra fizer, e
ali a engonhar, p'ra vir de companhia, e tu nada de apraceres!
Até pensei que te tivesse assucedido alguma coisa mas, cifinal
já tinhas bindo sem dezer nada e eu ali feito palonço, à tua
spera.
– Ó home! Atão onte no combenámos que binha cada um cando
quejesse? –
ripostou convicto o João Daqui.
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– Pois, o que tratámos é que me batias à porta, cando
passasses. Porque o
no fejeste?
E continuaram em grande discussão, cada um falando para seu
lado,
sem chegarem a conclusão nenhuma.
As mulheres riam-se à socapa, que o caso não era para menos...
mas, lá bem no fundo, inquietava-as uma grande preocupação: os
seus homens, tão amigos que eram!... para ali numa discussão
sem fim, arreliados um com o outro, sem motivo. Até dava
pena! Mas a verdade é que eles estavam cada vez mais surdos.
Surdos, que nem portas! E não havia nada a fazer.
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