O Moliço
O moliço foi durante largos anos o único fertilizante e adubo
das terras. Em tempos remotos eram as gentes daqui que faziam
a recolha deste precioso elemento, nos tradicionais barcos
moliceiros. Mais tarde passaram a ser gentes da Murtosa que o
vinham trazer às Folsas e os interessados, aí o iam comprar.
Uma barcada, que dava quatro carradas, custava, então, à volta
de duzentos escudos.
Consta que, em 1941, altura do grande ciclone que assolou todo
o país, arrancou a maior parte dos pinheiros da região, fez
voar telhados pelos ares, tendo as telhas atravessado ruas e
sido projectadas muito longe, derrubou árvores quase
seculares, muros, casas, tudo desfa¬zendo com enormes
prejuízos, a tragédia bateu à porta de uma família do Corgo do
Seixo de Cima que, andando na recolha do moliço, foi apanhada
pela tempestade. O barco onde andavam virou-se e pereceram
três dos seus ocupantes, pai e dois filhos.
Mas já antes a desgraça batera à porta das gentes de Vagos e
seus vizinhos. Segundo relato feito pelo Padre Manuel António
Carvalhais no seu livro "Histórias no Presente" editado em
2002, ele diz: "Em 16 de Janeiro de 1922 a noite nunca se fez
dia para mais de meia centena de moços
e homens moliceiros. A mãe natureza que por estas bandas quase
sempre nos
/
72 / arrouba com o perfume das flores, o azul do céu, a leveza dos
prados verdejantes, a tranquilidade do rio Boca, a suavidade
ondulante das suas margens e outeiros, vira madrasta
irracional e furibunda, monstro carnívoro e indomável,
assassina cruel e impiedosa. Em poucas horas, a fúria dos
ventos ciclónicos, o ribombar medonho dos trovões, os raios
fulminantes dos relâmpagos, as marolas do rio revolto travam
uma luta vitoriosa contra a vida destes pobres e indefesos
trabalhadores, naturais dos concelhos de Vagos, Murtosa e
Mira. Gigantes de perícia e de valentia, habituados a arriar e
a levantar o mastro do barco à passagem sob
as pontes, treinadíssimos na arte de puxar do leito do rio os
ancinhos carregados de moliço, nadadores exímios como peixes,
morrem no bojo da tempestade entre gritos de angústia e
pedidos de socorro, sem que ninguém lhes valha.
Quando as forças da natureza calam finalmente a sua revolta e
o sol do
Inverno vem espreitar, envergonhado, os destroços dos barcos
partidos em mil pedaços, as mães, as filhas, as irmãs e as
noivas amortalham nas próprias lágrimas os corpos dos seus
entes queridos espalhados pelas margens do rio como moliço
arrolado. "
Olhando o rio Boco, com toda a sua tranquilidade parece-nos
quase impossível um acontecimento desta envergadura, mas o
certo é que a natureza nunca deixará de nos surpreender.
O moliço foi escasseando de tal forma que deixou gradualmente
de ser usado, e sabemos que, no ano de 2009, os organizadores
da festa do Moliceiro já não conseguiram fazer o tradicional
leilão, pelo facto de os antigos fornecedores deste elemento
não o conseguirem apanhar, por não o haver. Dizem que a
poluição terminou com ele.
Extracção do barro
Durante muitos anos, a extracção do barro era feita entre
Lombomeão, Lameiro e Vagos, num local chamado Vergeiras;
noutro apelidado de Barrinhos entre a Qyintã e o Boco, e
também no Corgo do Seixo de Baixo, Corgo do Seixo de Cima e
Cabeço das Pedras.
Da terra fazer dinheiro era um processo simples, embora duro,
que envolvia muita gente: quem cavava o barro, quem o carreava
e ainda os barqueiros.
Quando o barco chegava, o seu dono entrava em contacto com
Manuel Tereso ou António Serôdio e um destes homens tocando o
seu
/ 73 /
búzio, geralmente por volta das trindades, anunciava que o
barco acabara de atracar, estando pronto para na manhã
seguinte receber o barro que tinha de ser extraído, num
trabalho duro feito à enxada. Cavado o barro, este era
amassado com os pés, de modo a formar pequenos blocos, todos
iguais. O carro era carregado com um determinado número desses
blocos dispondo no lastro uma camada, seguida de outra, com os
blocos colocados no intervalo dos primeiros, repetindo-se o
esquema em pirâmide até perfazer o número de blocos
estabelecidos por carrada, tudo feito de forma a facilitar a
contagem de modo que, com um simples olhar, se pudesse
verificar se a carrada vinha ou não completa.
Ao toque do búzio, feito pelo Serôdio ou pelo Tereso, e ouvido
por toda a freguesia, organizavam-se os cavadores para, muitas
vezes ainda de noite, ou madrugada alta, começarem o serviço e
acorriam os carreiros pois bem cedo os carros deveriam estar
prontos a partir de modo a serem os primeiros afazer a entrega
do material.
O barro era transportado em carros de bois até às Folsas, e
dali era levado nos barcos, saleiros ou mercantéis, através da
ria, tendo como destino as olarias de Ovar.
Os barqueiros tinham aqueles tantos homens marcados para lhes
levarem as carradas suficientes para carregar o barco. Cada
fornecedor habitual poderia entregar, de cada vez que o barco
vinha, duas carradas. Se, por azar, não o conseguisse fazer,
por não ter o gado à moda, estando doente, ou lhe surgisse
qualquer outro imprevisto, aquele que lá chegasse primeiro,
era quem tinha direito a substituir o faltoso, podendo pois
entregar quatro carradas: duas dele e outras duas do que
faltava.
Devido às marés que condicionavam a navegabilidade dos barcos,
sucedia por vezes o toque do búzio ser ouvido numa hora
diferente do habitual. Quando isto acontecia, porque o
dinheiro fazia muita falta no orçamento familiar, ao toque do
búzio, todos acorriam o mais rápido possível, já que o
primeiro a chegar seria o beneficiado. O desejo de fazer mais
alguns tostões nesta tarefa era de tal ordem que, segundo reza
a história, um certo dia, estando um grupo no campo a jantar
(por volta do meio-dia) o Ti João tal pressa teve em largar
tudo, para se pôr em marcha, que ao levantar-se, tropeçou,
saltou e virou por si abaixo, a tigela das papas de farinha de
milho que estava a comer. Ficou tão danado com o que lhe
sucedeu, e foi alvo de tanta chacota por parte dos
companheiros, que ainda hoje é lembrada essa peripécia.
/
74 /
A vida era tão dura e tão difícil que tudo se tinha de
aproveitar até à última migalha.
A extracção feita entre a Quintã, S. Romão e a Lomba foi de
tal monta que nos terrenos de onde o barro saía ficaram
barrocos, os quais, depois de nivelados e alisados, deram
lugar a praias de arroz, dado que por ali passava uma vala
foreira, que nos anos invernosos inundava tudo, ficando
alagados, por muito tempo, campos onde os carros de bois, ao
tentar passar, apesar de as suas rodas serem de madeira e bem
largas, se enterravam, acarretando essa situação, graves dores
de cabeça para os donos que os tinham de retirar dos
atoleiros.
A abundância de barro nestas terras atraiu uma família de
ceramistas que aqui se veio instalar na fronteira da
freguesia, sendo conhecida por Loiceiros, da qual ainda há
descendentes com este apelido. O barro era transportado para a
olaria em carros de bois que, para o descarregarem, encostavam
a uma janela larga e, à pazada, este era atirado directamente
para dentro de uma masseira. Ali era amassado, moldado e
cozido dando forma a diversas peças utilitárias tais como
alguidares, jarras e cântaros para ir à fonte à água, caçoilas,
tudo em barro vermelho e não vidrado.
... ... ... |