Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro - 2006/2007


Telefonema Inoportuno

EM AVEIRO

Andava eu entusiasmadíssima a preparar uma nova exposição de pintura e, nesse meu entusiasmo, deixava de parte tudo o que me pudesse desviar das minhas telas, dedicando-me a tempo inteiro à minha inspiração e vontade de terminar as obras que tinha entre mãos.

A família, vendo todo o meu empenhamento, procurava ajudar-me nos trabalhos inadiáveis e até tentava deixar-me só, em casa, durante grande parte do dia, para, sem interrupções, eu me poder dedicar de alma e coração à minha arte.

Estando pois de pincel na mão, embrenhada na pintura, talvez até já suja de tinta, eis que toca o telefone. Toca, toca insistentemente, e, entre continuar a ouvir aquele retinir incomodativo, que me incomodava e roubava a calma necessária para a tarefa que desempenhava, e interromper o meu trabalho, optei pela segunda hipótese, até porque nunca foi hábito na família desligar o telefone em nenhuma circunstância, para que qualquer dos membros, em caso de urgência, pudesse comunicar com os restantes.

Um tanto contrariada lá fui atender o telefone. Era uma voz feminina, contando uma daquelas histórias que antecedem um pedido para uma instituição de caridade, ao qual nunca adiro por não confiar no sistema. Desenvencilhei-me o mais rápido que pude daquela insistente intromissão, e regressei ao meu trabalho, um tanto contrariada.

Ainda mal tinha recomeçado, e de novo o telefone a tocar. Outra vez uma voz feminina, a perguntar se era de casa do senhor fulano de tal, o meu marido, óbvio. Disse-lhe que sim. Que ele não estava, mas que poderia deixar recado. Respondeu-me que era do banco e pretendia apresentar um novo produto de investimento.

Não estando eu minimamente interessada em ouvir tal prelecção, descartei-me, com gentileza e rapidez.

Novo recomeço na pintura, agora já despistada, sem saber onde antes me situava, e tendo de fazer um esforço acrescido para prosseguir.

Quando tudo estava já a correr bem, e o trabalho a fluir, nova chamada.

Acorri, maldizendo a minha vida, por não me darem sossego, e não me deixarem um momento de tranquilidade.

Desta feita era um cavalheiro, desconhecido. Começou por se apresentar como representante de uma determinada firma, da qual, como de costume, eu nunca ouvira falar. Dizia-me com o tom mais alegre do mundo que eu era uma das felizes contempladas, num sorteio. Tinha acabado de ganhar um prémio que deveria ir levantar no dia tal, ao hotel tal.

Sabendo destas artimanhas usadas para venda dos mais diversos produtos, quase perdi as estribeiras. Não o descompus, porque a minha educação não me aconselha tal procedimento.

Por estranho que pareça, o malvado telefone ainda me importunou mais duas vezes naquela tarde. Embora tendo ficado cheia de remorsos, por pensar que poderia incorrer em falta com alguém, confesso que fechei as portas, para o som ser menos intenso, e não acendi.

Já tarde baixa, tendo eu deixado de parte a pintura, porque a disposição para pintar se sumira, como por encanto ou maldição, e encontrando-me na cozinha a começar a preparar o jantar, ouço outra vez o retinir do telefone. Estava tão desesperada pelo facto de me terem estragado a tarde, que acabara, por não me render nada, que esta circunstância justifica a atitude que tomei de seguida.

Fui atender.

Do outro lado, uma voz feminina perguntava se era de casa do senhor fulano, o meu marido, claro.

Irritada ao extremo, e pensando ser mais uma daquelas inoportunas chamadas, prontamente e sem mais delongas, respondi:

– Não, minha senhora é de casa do vizinho do lado. – E no mesmo instante, sem dar ensejo a qualquer reacção ou resposta, desliguei o telefone.

Nos meus ouvidos, porém, ficou a soar aquela voz, que me perguntava pelo António. Só após uns momentos de reflexão, eu fiquei ciente de que essa voz era bem minha conhecida. Era, nada mais, nada menos, que uma colega pertencente ao coral no qual o meu homem cantava. A senhora em questão costumava telefonar-lhe ocasionalmente a dar-lhe informações sobre os ensaios; eu conhecia-a muito bem e até gostava dela. Não sei o que terá pensado de tal resposta, pois nunca aferi a sua reacção.

Desatei a rir sozinha, divertida e, de certo modo encabulada, pela resposta repentina que dera, mas não tive coragem de lhe ligar a pedir desculpa e muito menos de contar ao António.

Pode dizer-se que pagou o justo pelo pecador.


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