EM AVEIRO
Andava eu
entusiasmadíssima a preparar uma nova exposição de pintura e,
nesse meu entusiasmo, deixava de parte tudo o que me pudesse
desviar das minhas telas, dedicando-me a tempo inteiro à minha
inspiração e vontade de terminar as obras que tinha entre mãos.
A família, vendo todo o meu empenhamento, procurava ajudar-me nos
trabalhos inadiáveis e até tentava deixar-me só, em casa, durante
grande parte do dia, para, sem interrupções, eu me poder dedicar
de alma e coração à minha arte.
Estando pois de pincel na mão, embrenhada na pintura, talvez até
já suja de tinta, eis que toca o telefone. Toca, toca
insistentemente, e, entre continuar a ouvir aquele retinir
incomodativo, que me incomodava e roubava a calma necessária para
a tarefa que desempenhava, e interromper o meu trabalho, optei
pela segunda hipótese, até porque nunca foi hábito na família
desligar o telefone em nenhuma circunstância, para que qualquer
dos membros, em caso de urgência, pudesse comunicar com os
restantes.
Um tanto contrariada lá fui atender o telefone. Era uma voz
feminina, contando uma daquelas histórias que antecedem um pedido
para uma instituição de caridade, ao qual nunca adiro por não
confiar no sistema. Desenvencilhei-me o mais rápido que pude
daquela insistente intromissão, e regressei ao meu trabalho, um
tanto contrariada.
Ainda mal tinha recomeçado, e de novo o telefone a tocar. Outra
vez uma voz feminina, a perguntar se era de casa do senhor fulano
de tal, o meu marido, óbvio. Disse-lhe que sim. Que ele não
estava, mas que poderia deixar recado. Respondeu-me que era do
banco e pretendia apresentar um novo produto de investimento.
Não estando eu minimamente interessada em ouvir tal prelecção,
descartei-me, com gentileza e rapidez.
Novo recomeço na pintura, agora já despistada, sem saber onde
antes me situava, e tendo de fazer um esforço acrescido para
prosseguir.
Quando tudo estava já a correr bem, e o trabalho a fluir, nova
chamada.
Acorri, maldizendo a minha vida, por não me darem sossego, e não
me deixarem um momento de tranquilidade.
Desta feita era um cavalheiro, desconhecido. Começou por se
apresentar como representante de uma determinada firma, da qual,
como de costume, eu nunca ouvira falar. Dizia-me com o tom mais
alegre do mundo que eu era uma das felizes contempladas, num
sorteio. Tinha acabado de ganhar um prémio que deveria ir levantar
no dia tal, ao hotel tal.
Sabendo destas artimanhas usadas para venda dos mais diversos
produtos, quase perdi as estribeiras. Não o descompus, porque a
minha educação não me aconselha tal procedimento.
Por estranho que pareça, o malvado telefone ainda me importunou
mais duas vezes naquela tarde. Embora tendo ficado cheia de
remorsos, por pensar que poderia incorrer em falta com alguém,
confesso que fechei as portas, para o som ser menos intenso, e não
acendi.
Já tarde baixa, tendo eu deixado de parte a pintura, porque a
disposição para pintar se sumira, como por encanto ou maldição, e
encontrando-me na cozinha a começar a preparar o jantar, ouço
outra vez o retinir do telefone. Estava tão desesperada pelo facto
de me terem estragado a tarde, que acabara, por não me render
nada, que esta circunstância justifica a atitude que tomei de
seguida.
Fui atender.
Do outro lado, uma voz feminina perguntava se era de casa do
senhor fulano, o meu marido, claro.
Irritada ao extremo, e pensando ser mais uma daquelas inoportunas
chamadas, prontamente e sem mais delongas, respondi:
– Não, minha senhora é de casa do vizinho do lado. – E no mesmo
instante, sem dar ensejo a qualquer reacção ou resposta, desliguei
o telefone.
Nos meus ouvidos, porém, ficou a soar aquela voz, que me
perguntava pelo António. Só após uns momentos de reflexão, eu
fiquei ciente de que essa voz era bem minha conhecida. Era, nada
mais, nada menos, que uma colega pertencente ao coral no qual o
meu homem cantava. A senhora em questão costumava telefonar-lhe
ocasionalmente a dar-lhe informações sobre os ensaios; eu
conhecia-a muito bem e até gostava dela. Não sei o que terá
pensado de tal resposta, pois nunca aferi a sua reacção.
Desatei a rir sozinha, divertida e, de certo modo encabulada, pela
resposta repentina que dera, mas não tive coragem de lhe ligar a
pedir desculpa e muito menos de contar ao António.
Pode dizer-se que pagou o justo pelo pecador. |