Aida Viegas, Oliveira do Bairro. Memórias de um século. Águeda, AVI, 1994, pp. 189-190.

Sarramento da Velha

Sarruque, sarruque. Sarruque, sarruque.

- Ó velhinha, vai mais um fio?

- Sarruque, sarruque. Sarruque, sarruque.

O estranho som do “sarruque” era produzido por uma corrente velha de bicicleta a surrar num cortiço já velho e estragado ou numa tábua carunchosa.

Este concerto ouvia-se na noite da “demicareme”, à porta dos velhos mais velhos dos lugares.

Os brincalhões lançavam o desafio através de um funil e com a voz mudada fazendo as mais diversas incita­ções:

- Sarra a velha e sarra a nova, sarra o cu à Ti Custó­dia.

- Ó velhinho, mais um fio?

Tudo isto era feito em tom brejeiro e jocoso, com cari­nhosa malandrice, desafiando os velhotes a tentarem reto­mar a sua actividade sexual e, ao inquirirem “vai mais um fio”, incitavam-nos à prática ao menos naquela noite.

- Vossemecê precisa ser sarrado(a) para viver mais uns anitos!...

Sarruque, sarruque. Sarruque, sarruque.

- Queremos voltar outra vez para o ano, ouviu?

Sarruque, sarruque; e os velhos mais gaiteiros e sim­páticos, sentindo-se lisonjeados e bem queridos, abriam a porta e ofereciam aos “sarradores” uma bucha e um copo e, agradecendo a deferência, riam-se com eles, fazendo votos para que voltassem no ano seguinte, sinal que os velhotes ainda estariam entre os vivos; ideia que os anima­va e confortava.

A coisa mudava de figura quando a dona da casa era rabugenta ou não se considerava velha a ponto de entrar no rol dos que deveriam ser visitados pelos “sarradores” e pior ainda se fosse uma solteirona ou viúva alegre. Aí, ou ela conseguia conter a sua raiva e remeter-se ao silêncio, ou os insultava lá de dentro, chegando mesmo a vir à porta e escorraçá-los, atirando-lhes penicadas mal cheirosas.

- Aí vem uma penicada! - gritava um ao menor indício de movimento.

- Foge que lá vem outra! - diria outro ao ouvir o mínimo ruído.

Nestas ocasiões o gozo e a galhofa subiam ao rubro.

Se houvesse rapaziada nova entre os elementos do grupo e algum deles tivesse namorada ali por perto cujos pais fossem tolerantes e galhofeiros, a malta ia sarrar também nas imediações da sua casa. Isto era levado na brincadeira, sendo todos recebidos alegremente pelo pai da rapa­riga que lhes franqueava a adega.

Tal tradição caiu em desuso como muitas outras, o que é pena, pois as pessoas vão ficando cada vez mais isoladas na sua concha; falta-lhes o convívio sadio e, em consequência, sobram-lhes as depressões e outros males congéneres do corpo e da alma.


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