17º Festival Nacional de Folclore - 7 de Julho de 2001 – pp. 6 a 12

Subsídios para história da Gafanha da Nazaré

Os primeiros passos do desporto

Há mais de cem anos, era a Gafanha da Nazaré um deserto com algumas casitas semeadas a esmo e a desafiarem ventos que fustigavam tudo e todos. Águas salgadas lambiam terras e gentes e queimavam sementeiras da borda de água, que teimavam em furar areias ainda virgens. No meio deste cenário pouco acolhedor, um homem rude mas obstinado sonha com terra de progresso. Era o gafanhão.

Não satisfeito com o que a terra solta avaramente lhe oferecia, sonha levar por diante a sua transformação a todo o custo, regando com bátegas de suor areias estéreis. E à força de um trabalho insano, foi plantando hortas e depois jardins, quantas vezes roubando espaço à ria e ao mar, ao mesmo tempo que fazia crescer, um tanto sem nexo, pobres casebres que lhe serviam de habitação.

O gafanhão, porém, não estava satisfeito e aspirava a mais. O trabalho e o suor de gentes e animais não bastavam para a transformação de areias até então improdutivas. Era preciso mais. Vê o moliço cair-lhe aos pés atirado pelas vagas remansosas das águas sedutoras da ria. Imagina-o apodrecido a fertilizar campos durante séculos abandonados. E da imaginação à realidade pouco distou. A princípio lá foi rapando o moliço que lhe era oferecido de mão beijada. Depois, sem pressas, foi a aventura do moliceiro e da bateira. E as areias, qual milagre tantas vezes sonhado, cedo começaram a dar frutos que se vissem.

Contudo, o gafanhão não era homem de têmpera frágil e logo perdeu o medo do mar. Ei-lo a seguir noutra faina não menos importante. A boroa e as batatas tantras vezes insípidas precisavam de conduto que lhes compensasse o esforço de gerações. E vai ao bacalhau, e pesca na ria, e labuta nas salinas, e aprende artes e ofícios. O gafanhão do século XX é já outro. Aprende a ler e voa mais alto em cursos de toda a ordem. Emigra e descobre o comércio. Bate-se na indústria de igual para igual com outros. Aceita outras gentes de mil e tal freguesias do País, com quem se mistura. Não descura a cultura, as artes preenchem momentos / 7 / de lazer e não esquece a matriz cristã que desde o berço o embalou com certezas de eternidade. E também pratica desporto, cuja história ainda está por fazer.

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Os primeiros clubes

Os primeiros gafanhões eram, sem dúvida, mais dados ao trabalho do que ao desporto. Aliás, nem outra coisa seria de admitir, se imaginarmos o esforço desenvolvido no dia-a-dia para alcançar o milagres da transformação destas terras em oásis verdejantes. Os tempos livres, quando os tinha, passava-os a cantar e a bailar, sobretudo nos fins de semana, e no termo dos trabalhos agrícolas e outros, sobretudo aquando do fabrico dos adobos nos areais da mata, na altura da cobertura da casa em construção, nas desmanteladas, nas rasgadelas de tiras para fabrico caseiro de mantas, chamadas de farrapos, e noutros serviços que envolviam diversas pessoas. Desporto seria mais com os rapazes.

Sem preocupações de praticar desporto oficial, limita-se a dar uns pontapés na bola, entre diversos jogos populares, como o pião e a macaca para os mais jovens, e o futebol e a malha para os mais espigadotes ou adultos. Claro que nas tabernas não faltava o jogo de cartas, mais concretamente a sueca. Mas isso são outras histórias a que um dia haveremos de voltar. Hoje ficamo-nos pelo Futebol que nos nossos dias arrasta milhões de pessoas e envolve milhões de contos em todos os quadrantes da Terra.

Lembramos, e com que saudade, antigos clubes que há cerca de meio século por aqui congregavam a juventude desta terra da Gafanha da Nazaré. E faziam-no com tal garra que ainda sentimos o entusiasmo com que os jogos eram aguardados e disputados. Referimo-nos, concretamente, à Associação Desportiva Gafanhense, que tinha o seu quartel-general na Cale da Vila, à União Desportiva Gafanhense, que cantava de galo na Cambeia, e ao Atlético Clube da Marinha Velha que, como o nome indica, se impunha no lugar que o baptizou. Mas não se julgue que só o Futebol foi rei nesse tempo. Também o Basquetebol e a / 8 / Natação, mais sob a responsabilidade da Associação, por aqui se praticavam nessa data já um pouco distante da nossa meninice.

O Futebol, esse sim, foi sempre o desporto favorito dos gafanhões e todas as tentativas para implantar outro qualquer saíam muitas vezes frustradas, com poucas mas muito dignas excepções.

Mas continuemos mexer nas gavetas da nossa memória para lembrar o que foram os jogos entre esses dois clubes rivais da nossa terra. Antes, porém, diga-se que a Associação tinha o seu campo de jogos nas areias da mata, na zona denominada das lebres (haveria, por ali, tantas lebres que se justificasse o baptismo?), em terra batida, como os outros campos existentes por aqui; o Atlético no campo da borda, onde presentemente está o porto de pesca costeira, com o moinho do tio Conde à vista, sujeitando-se os jogadores e a assistência a ver a bola fugir levada pela corrente, principalmente em hora de maré cheia, isto se entretanto um mais afoito não conseguisse salvá-la das águas salgadas; e a União aproveitava a cedência do campo do Forte que a JAPA (Junta Autónoma do Porto de Aveiro), actualmente APA (Administração do Porto de Aveiro) mandara construir perto do Forte Novo ou Castelo da Gafanha. Serviu, como as actuais gerações sabem, o Grupo Desportivo da Gafanha até 1983, embora por falta de iluminação no novo complexo desportivo, os treinos nocturnos ali tivessem continuado durante cerca de dois anos.

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As rivalidades

As rivalidades próprias de qualquer desporto também naqueles tempos se viveram com alguma paixão. Os jogos não eram oficiais, já que se tratava de clubes não filiados em qualquer Associação, excepção feita para o Atlético que, segundo na altura foi amplamente divulgado, chegou a ser clube oficial, porém sem qualquer proveito desportivo. E a paixão dos seus dirigentes, por pressão logicamente psicológica dos / 9 / respectivos adeptos chegava ao ponto de procurarem e convidarem, expressamente para cada jogo, pertencessem eles aos clubes rivais da terra, a outros clubes amadores da região ou ao Beira Mar que já era instituição de respeito na altura. O importante era ganhar, custasse o que custasse. E tal como hoje, também naquela época as vitórias ou derrotas eram comentadas com fervor clubista e com promessas de "vingança" para a próxima vez, que podia ser no domingo seguinte.

A curiosidade maior dos muitos adeptos estava em saber quem é que jogava e em que clube! E se os dirigentes não eram suficientemente diligentes ou bastante abonados para cativar os melhores jogadores, podiam muito bem fazer as malas e desandar. Esses dirigentes não serviam. E ainda hoje é assim. Aliás, o único dirigente, que saibamos, que acompanhou sempre o seu clube, desde o nascimento até à morte, foi o senhor Casqueira, mais conhecido por Casqueirita. Quando ele se cansou de gastar quanto tinha e não tinha com o seu Atlético, o clube morreu. É que, naqueles tempos, como hoje, os profissionais ou aparentados podem levar um clube à ruína, principalmente se não houver ponderação nos gastos e realismo nas contratações.

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Alguns nomes

Em 1956 pouco restava destes três clubes amadores, a não ser o gosto pelo Futebol que eles souberam deixar como herança. Daí o viveiro de praticantes, alguns dos quais se impuseram mesmo a nível nacional, representando clubes da primeira divisão. Perdidos pelo tempo e pela nossa memória, ou mais ignorados, muitos outros jogaram em escalões inferiores, enquanto alguns, quando já eram certezas no mundo do desporto-rei, optaram por profissões mais estáveis ou emigraram.

Para não nos tornarmos fastidiosos, apenas lembramos neste escrito, em jeito de parêntesis, os que, em nossa opinião, mais se evidenciaram: Sílvio, que foi internacional júnior no tempo do célebre José Augusto do Benfica; Fidalgo, que esteve no Benfica e brilhou no Vitória de Guimarães, no Tirsense e na Sanjoanense; Lázaro, jogador do / 10 / primeiro plano e que se distinguiu no Beira Mar, no Leixões e no Vitória de Guimarães; Calisto, Violas e Adérito Ribau, que muito deram à equipa da capital do nosso distrito. E muitos outros poderíamos citar, alguns já dos nossos dias, se tempo e espaço tivéssemos. Fica a tarefa para outros ou para edições futuras. Aos mais ligados ao desporto deixamos o desafio de um registo mais circunstanciado.

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E nasce o Grupo Desportivo da Gafanha

Em 1 de Agosto de 1957, segundo reza o artigo número um dos Estatutos, nasce o Grupo Desportivo da Gafanha. Da Gafanha, por pretender, na altura, representar toda a sub-região assim denominada.

Tempos antes, na barbearia do Hortênsio Ramos, nasceu a ideia de se criar um clube desportivo que fosse, de alguma forma, o herdeiro dos atrás citados e entretanto extintos. A escolha do nome logo se pôs, porque havia outros tantos adeptos dos clubes que anos antes haviam entusiasmado os gafanhões. Houve então necessidade de ultrapassar o obstáculo e a primeira proposta de baptizar a nova instituição com o nome de Grupo Desportivo da Gafanha partiu do indigitado presidente Henrique Correia. Era um nome pouco expressivo para a época e, talvez, para os nossos dias. Mas foi o que ficou.

Recordamo-nos do último argumento que entretanto foi aduzido e que foi mesmo convincente: «Não podemos adoptar qualquer nome dos clubes extintos – dizia o Henrique Correia, cuja memória sentidamente recordamos para a homenagem que lhe é devida, já que foi, embora por pouco tempo, o primeiro presidente do Grupo Desportivo da Gafanha – porque não queremos nem devemos assumir responsabilidades perante os credores desses clubes.» Naquele tempo, tal como nos nossos dias, os clubes desportivos tinham inúmeras dificuldades económicas e financeiras e era legítimo que o grupo nascesse sem quaisquer vinculações aos anteriores, a não ao gosto pelo desporto que eles nos legaram. Também assim, livre de tutelas do passado de qualquer deles, poderia o jovem clube congregar à sua volta todos os gafanhões, / 11 / amantes, principalmente, do desporto-rei.

Ao entusiasmo da primeira hora, que conduziu mesmo à elaboração dos Estatutos e consequente registo e publicação no Diário do Governo (lII série, n.º 63;, de 14 de Julho de 1958) e inscrição na Associação de Futebol de Aveiro, não correspondeu uma adequada organização. O presidente Henrique Correia emigrou para o Canadá e os colegas da Direcção, mais jovens e inexperientes, deixaram o Grupo Desportivo da Gafanha em letargia, até que o calor da Primavera o fizesse acordar para uma vida nova. E assim aconteceu no dia 31 de Maio de 1968. Nessa data, e conforme reza acta n.º um, foram eleitos os novos corpos gerentes, cujos cargos ficaram assim distribuídos:

Assembleia Geral

Presidente – Padre Domingos José Rebelo dos Santos

Vogal – Manuel Vergas Caspão

 

Direcção

Presidente – José Henrique dos Santos Sardo

Secretário – José Alberto Ramos Loureiro

Tesoureiro – João Gandarinho Fidalgo

Vice-Presidente – Carlos António da Silva Loureiro

Vogal – Hortênsio Marques Ramos

 

Conselho Fiscal

Presidente – Carlos Sarabando Bola

Vogal – Nelson Mónica Modesto

Vogal – José Casqueira da Rocha Fernandes

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Os novos

É justo lembrar, mesmo de fugida, os primeiros passos da ressurreição do Grupo Desportivo da Gafanha. No Café Central do saudoso António Fidalgo Carlos, no antigo e que decerto talvez poucos / 12 / recordarão, havia uma espécie de tertúlia onde os problemas da comunidade eram acerrimamente discutidos em espírito construtivo. Da discussão às vezes acalorada nasciam quase sempre propostas de projectos, alguns dos quais se impuseram. O da restauração do Grupo Desportivo da Gafanha foi um deles. E em boa hora, diga-se de passagem.

Animava essa tertúlia o prior da freguesia, padre Domingos, e dela faziam parte alguns gafanhões, inclusive o autor destas linhas e alguns dos que vieram a ser dirigentes do novo clube. Não os citamos para não corrermos o risco da indelicadeza do esquecimento, aliás sempre desagradável. Bons tempos! Ali mesmo foi elaborada a lista dos primeiros corpos gerentes e numa ou noutra reunião foram acertadas as agulhas e criadas as condições para se avançar. E foi o que aconteceu.

Claro quer o Grupo Desportivo da Gafanha não foi só Futebol, embora seja esse desporto a mola real do clube. O Atletismo atingiu grande projecção e foi escola de atletas de renome que levaram muito longe e muito alto o nome da Gafanha da Nazaré, principalmente enquanto teve como timoneiro o João Gandarinho Fidalgo. O Automobilismo também deu nas vistas, quando o Dr. Humberto Rocha, bem acompanhado pelo Nelson Mónica, pelo Levi Ribau e pelo actual empresário Silva Vieira, gostava das aventuras das corridas e gincanas. A Pesca Desportiva mostrou quer na Gafanha da Nazaré também se sabia e sabe pescar com arte, especialmente quando o Benjamim Albuquerque teve paciência para levar alguns gafanhões a contemplarem as águas calmas da Ria ou as mais agitadas do Mar , enquanto aguardavam que o peixe picasse. Outras secções foram surgindo ao sabor da maré, tal como outras foram desaparecendo.

E por hoje ficamo-nos por aqui. Numa próxima oportunidade voltaremos ao assunto, se outros, entretanto, o não fizerem.

Fernando Martins

 

 

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