17º Festival Nacional de Folclore - 7 de Julho de 2001 – pp. 13 a 20

Gafanha da Nazaré: Saudades do futuro!


Anos sessenta...

A sede da empresa era em Aveiro. Um pequeno escritório logo a seguir ao café Gato Preto na Rua João Mendonça, número seis, ali mesmo sobre o Terreiro do Rossio onde, antigamente, se fazia a Feira de Março.

Mas a seca – a do Milena, claro – ficava na Gafanha, no mesmo sítio onde ainda hoje estão de pé os armazéns de madeira que o Sr. Egas tinha mandado construir.

Era uma incongruência esta, a da empresa onde trabalhava ter a sua parte administrativa em Aveiro e as instalações de secagem do bacalhau, mais o ancoradouro do lugre Milena, mais a oficina de carpintaria, tudo no canal de Vagos, para sul da já desaparecida, há tantos anos (!), ponte de madeira da Gafanha.

Mas a empresa era aveirense e os seus sócios queriam pagar as contribuições na cidade, onde, pelo pacto social, se localizava a sua sede.

O facto de estarmos separados obrigava-nos a constantes deslocações; ao princípio, de bicicleta; depois, de motorizada. E o acompanhamento dos trabalhos, de todos os trabalhos de terra, era defeituoso, dando azo a falhas constantes.

Não descansei enquanto não convenci as pessoas de que se tornava imperativo encerrar o escritório de Aveiro e passarmo-nos, com armas e bagagens, para a Gafanha.

No fundo, para além das evidentes vantagens económicas, toda a gente ficou feliz.

A frieza dos contactos telefónicos, o esporádico das visitas da gerência, foram substituídos pela presença física dos funcionários administrativos que, assim, até melhor podiam compreender a vida da empresa.

É certo que o correio ainda ficava no apartado em Aveiro; é certo que alguns problemas – da Repartição de Finanças aos Bancos, por / 14 / exemplo – ainda obrigavam a vir à cidade. Mas o grosso do trabalho passou a ser feito no sítio certo. Para contornar engulhos de consciência, a sede social da empresa passou simbolicamente para a casa de um dos gerentes, continuando, virtualmente, em Aveiro.

Isto de se mudar tudo para Ílhavo era muito complicado. Mexia com o amor próprio das pessoas e dizia muito do "chauvinismo" que ainda hoje se sente.

–o-O-o–

Quando o saudoso Eng. Coutinho de Lima anunciou que uma nova estrada e uma nova ponte iriam ser construídas para ligar Aveiro à Gafanha, foi uma festa.

Algumas vozes até diziam que seria dessa vez que a aldeia da Gafanha se iria ligar administrativamente a Aveiro.

É claro que nada disso aconteceu. A razão da nova estrada e da nova ponte assentava, tão só, na exigência imposta pelo plano do novo cais comercial do porto de Aveiro, a construir na área deste concelho, e que implicava a formação de terraplanagens de 500 metros de largura, ao longo da Cale da Vila.

Lá se foi parte da antiga estrada da Barra; lá se foi a ponte de madeira.

E com o surgir da ponte de betão, para sul da seca do Milena, houve a possibilidade de se construir novos trapichos de acostagem para aumentar o porto bacalhoeiro, então a regurgitar de barcos da pesca longínqua.

Inicialmente, mais trapichos eram de madeira. Mas, rapidamente, foram substituídos por sólidas estruturas de cimento.

As camionetas do Vieira & Roque entravam por eles dentro até à borda dos navios.

E com a ajuda dos guinchos de bordo as nassas eram arrancadas dos porões, ajoujadas de bacalhau verde e despejadas nas camionetas que, uma vez carregadas, iam à balança da Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, com o Carlos Chatice a tudo acompanhar, não / 15 / fora alguém amanhar-se com uns peixitos surripiados.

–o-O-o–

Quando o telegrama chegava anunciando a largada do navio dos Bancos da Terra Nova, logo se começavam a fazer contas ao dia da entrada no porto de Aveiro.

Consultavam-se as tabelas das marés, falava-se com o Sr. Ferreira, piloto da barra, que ficava à escuta de notícias mais precisas quanto à hora da entrada do navio; combinava-se com o mestre Mário o serviço de reboque; avisava-se a alfândega; ia-se à Capitania dar notícia; o telegrama cifrado dava-nos a pesca de cada homem; as contas eram feitas, descontando os avanços; ia-se ao Banco buscar as notas e os trocos com uma grande mala de viagem.

A primeira vez que o fiz, tremiam-me as pernas com medo que alguém me assaltasse. Eram novecentos contos que eu transportava. Uma fortuna! O suor de meses de quase setenta homens.

Os telegramas tinham sido enviados às famílias da tripulação.

E no dia da chegada, era ver as mulheres e os filhos em roda, ali na Meia Laranja.

Era uma alegria enorme. O barco mesmo em frente, barra dentro, a esgotar em minutos a viagem de meses. E o pessoal todo a correr pelo paredão fora até à ponte da Barra.

Depois, pouco depois, não se sabe bem como, todos estavam reunidos de novo com a Guarda Fiscal a impedir que o trapicho de atracação do navio fosse invadido.

– Passa o "spring". Passa o cabo. – E o navio encostava mansamente aos grandes pneus que amorteciam o embate.

A passarela era colocada para bordo.

Os mais ágeis saltavam para terra para abraçar os seus.

Uma chegada era sempre uma chegada!

Às vezes, até havia foguetes.

Os sacos da roupa já estavam no convés para serem fiscalizados pelos "fiéis" da alfândega.

O pagamento era feito na câmara dos oficiais. Às vezes na ponte. / 16 /

Tudo com muita pressa, pois que as saudades de casa roíam e havia que as matar.

–o-O-o–

As fafeiras já tinham vindo para a Gafanha; os armazéns já desinfectados para receberem o peixe.

As mesas da seca já estavam reparadas e os seus arames pareciam cordas de guitarra de tão retesados.

Os porões abriam-se. E as mulheres entravam a rastejar, tal a altura da carga.

– Amigas, isto está a andar muito devagar! – gritava eu contando as nassas que passavam por cima da minha cabeça.

– Raios! Se nos chama a nós de amigas como chamará à mulher? – respondiam-me lá de dentro, num misto de espanto e de galhofa.

Não era leve aquele trabalho que os fiscais dos pescadores acompanhavam cuidadosamente. O complemento da soldada dependia do peso da descarga.

A ressalga ia-se acumulando no trapicho à espera de melhor preço a oferecer pelas fábricas de cerâmica que a disputavam para o seu fabrico.

–o-O-o–

Ainda com a descarga a fazer-se e já a seca do peixe se começava. Havia que realizar dinheiro, pois que uma a safra redonda, desde a reparação e armamento do navio até à última escama a sair para o armazenista, levava mais de um ano.

–o-O-o–

Eram outros tempos, nesta Gafanha buliçosa.

As casas que os pais se esforçavam por construir para os filhos casadoiros surgiam ao longo dos caminhos de chão de areia, sem qualquer preocupação de ordenamento do território. / 17 /

Metia-me impressão isso. Cá com os meus botões repetia-me: isto podia ser uma Holanda, mas não! Cada um fazia quase o que queria, e onde queria.

Reconheço que, por esses tempos, seria muito difícil convencer os donos das leiritas de terreno a ceder um palmo que fosse de terra para garantir arruamento que tivesse levado régua e esquadro.

Com os saltos que o tempo dá, a Gafanha do final da década de 1960, arvorada a vila, viu-se em 2000 catapultada a cidade.

Os técnicos do urbanismo do município de Ílhavo foram-lhe fazendo operações de cosmética e, hoje, a terra vai-se mostrando orgulhosa por ter sido capaz de aglutinar aos seus íncolas, gentes vindas de mil e tal diferentes freguesias de Portugal; por ter sido capaz de ultrapassar a machadada de quase morte que foi dada na frota da pesca do bacalhau que tanto movimento gerava nas secas, no comércio, nos estaleiros, no porto, por ter sido capaz de receber nova indústrias, novos comércios, novos tráfegos de navios.

–o-O-o–

É mais do que evidente que a cidade da Gafanha da Nazaré tem ainda muitas carências, principalmente a nível de infra-estruturas, sendo a mais prioritária a do saneamento básico. Mas a verdade é que as suas gentes revelam um dinamismo que só uma postura jovem, irreverente e inventiva, ávida de saberes, pode justificar.

E é assim que esse dinamismo também se manifesta na vertente cultural.

Sem esquecer o seu passado que o Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré, por exemplo, se encarrega de, superiormente, preservar: a recolha dos cantares, das roupas, dos usos e costumes, tudo a ser Sacralizado na Casa Gafanhoa, lar comum onde os gafanhões se revêem e se mostram aos visitantes.

Sem esquecer o futuro que se vai construindo com uma Rádio Terra Nova, que tão longe leva o Concelho de Ílhavo, sem fronteiras mesquinhas, ali sediada no magnífico Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, alfobre de tantas, tão frequentes e tão belas iniciativas que só / 18 / cimentam os saudáveis apetites culturais duma comunidade.

Sem esquecer os projectos que ainda mais aumentarão o amor próprio das gentes gafanhoas! A transformação da seca do Milena em pólo museológico; o Museu de Arqueologia Náutica e Subaquática, pólo museológico e de investigação náutica e subaquática centrado nos vestígios do navio dos meados do século XV descoberto no canal de Mira, para sul da Ponte da Barra; a recuperação do Forte da Barra e do Jardim Oudinot com características únicas para o uso turístico e gozo dos locais; a implementação da estratégia de desenvolvimento do Porto de Aveiro, cuja parte mais significativa assenta no território da cidade da Gafanha da Nazaré; o ancoradouro do navio-museu Santo André; logo em frente, na outra margem do canal de Mira, a projectada marina atlântica da Barra, uma das muitas apostas de Raul Martins, presidente da APA – Administração do Porto de Aveiro, que tem também no seu horizonte a construção do Terminal Especializado de Descarga de Pescado e o novo Porto de Abrigo para Pesca Local; bem como do Terminal de Granéis Líquidos, do Terminal Ro-ro e do Terminal de Granéis Sólidos. Tudo isto sem esquecer a reparação e reacondicionamento dos Molhes Sul e Central e do Triângulo de separação das correntes, bem como o belo arranjo encontrado para a recuperação da praia velha da Barra.

A Universidade de Aveiro, que tem na nossa região uma leitura alargada, aponta para a localização, para norte do Porto de Pesca Costeira (um dos mais modernos e eficazes da Europa!), de um Centro de Investigação Marítima. E já li algures que a sua Escola Superior de Saúde poderá vir a ser implementada na mata da Colónia Agrícola.

–o-O-o–

Das alturas de um avião de carreira a sobrevoar as nossas terras, só se vê um enorme espelho de água que beija terras de verdes matizados com aglomerados urbanos sem barreiras administrativas.

É um acidente geográfico único, de beleza ímpar.

A Gafanha da Nazaré também lá está, fazendo parte de um todo / 20 / dominado pela Ria, máximo denominador comum de todos nós, ribeirinhos.

É nesta perspectiva de grandes horizontes que eu gosto de sentir o seu pulsar.

–o-O-o–

Ainda há dias expus no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, intencionalmente aqui e não noutro sítio, um conjunto de quadros a óleo sob o título de "Homenagem ao Pescador Manuel".

Foi a minha romagem aos tempos idos da Frota Branca dos lugres do bacalhau que, nas águas gafanhoas, encontravam o descanso para a dura Faina Maior nos bancos da Terra Nova e da Gronelândia.

Foi o meu reencontro com as gentes da Gafanha que, há mais de 40 anos, me conhecia por senhor Antoninho.

Vieram-me as lágrimas aos olhos ao ouvir ainda gente boa a tratar-me assim, apesar dos meus cabelos brancos: senhor Antoninho.

Foram dezenas de anos a acompanhar esta terra da Ti Ermelinda, do Ti Manel, do Zé Catarino, da Alice, da Fátima, do ti Augusto, do senhor Necas Mónica, do Professor Pinho, do Dr. Vasco Branco da farmácia de bordo, das fafeiras sem nome, mas com rosto rosado e perna roliça. Tudo isto me provoca saudades do futuro...

Gaspar Albino

 

 

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