João Mateus Ferreira, mais conhecido pelo Mateus, o
pintor de conchas apresenta-se: «Nasci na cidade mais linda do mundo; nasci na
proa de um barco, no canal mais
bonito de Aveiro, o canal de S. Roque. As pessoas por vezes não
acreditam
no orgulho que sinto pela minha cidade. A minha mulher ralha comigo;
é que eu não posso pintar tanto como pinto e ela às vezes vai à porta da minha sala e diz-me: "Ainda
não chega?"; mas eu não
consigo; é mais forte do que eu».
Mateus: o homem
No início da nossa conversa, Mateus não sabia o que o
esperava e nós muito menos. Estava um pouco tenso. A pouco e pouco foi
descontraindo. Começou a falar e só parou quando, da porta de sua casa,
nos disse adeus. Fizéramos uma visita à casa de Mateus; acolhedora, onde transpira a simpatia e a simplicidade do pintor. Vimos a matéria-prima
−
as conchas
−, os pincéis, as latas de tinta e o produto acabado: as lindas conchas pintadas com motivos de Aveiro. Ao longo da
nossa conversa, Mateus revelara-se o mais genuíno cagaréu e
aveirense.
A sua casa é um autêntico museu: nela guarda peças da
pesca, da praia e o mais típico artesanato aveirense. E ele também lá
está. Sente-se Mateus em cada canto da sua
casa.
Mateus é um excelente conversador, um homem simpático,
muito acolhedor e muito, muito simples; mas é essa simplicidade que valoriza e dignifica o trabalho que faz: a
pintura das conchas, que assina somente Mateus.
As conchas chamam-me
O gosto pela pintura, e desculpem a frase feita, nasceu
com ele. Como o próprio diz: «Consegui safar-me da dureza das salinas
para ir fazer aquilo que mais gostava: pintar. Tirei o curso de desenho e,
depois, fui trabalhar para as Faianças de S. Roque. Lá, pintei durante 24
anos, mas tive de sair, porque estava a cegar.» Mesmo assim, a quase
cegueira não foi suficiente para lhe tirar o gosto pelos pincéis e pelas tintas e pelas conchas, que anseia ver durante muitos anos, para sempre poder pintar.
«Vivo da pintura, não pela riqueza que me dá em termos monetários, mas
pela riqueza interior e pelos amigos que me permite fazer. Não posso
deixar de pintar».
Mateus ensinou muitas pessoas e até já foi convidado para «ir dar umas aulitas de pintura, na
Universidade», disse o pintor, não se apercebendo da valorização que lhe
estavam a dar. «Um dia, um dos moços quis fazer uma exposição e pediu-me
para pintar alguma coisa. Pensei no que havia de pintar. Uma vez fui ao
Porto e, passeando pela Rua de Santa Catarina, vi uma brincadeira com as
conchas e pensei: "E se eu brincasse com isto ?". A brincadeira pegou de
tal maneira que dura até hoje. Arranjou a exposição ao aluno e «levei 70 e
vendi-as todas e o rapaz não vendeu quase nada; eu até tive vergonha.» A
partir dessa exposição nunca mais consegui parar. «Apaixonei-me por
elas, nelas pretendo levar um bocadinho de mim e da minha cidade a todo
o mundo».
Este simples pintor de conchas, como ele se
auto-intitula, orgulha-se de ser o único no país, senão mesmo do mundo,
a fazer estas pinturas. «Tenho conchas espalhadas por toda a parte, mas
não me envaideço nem me julgo mais que os outros. O Dr. Girão,
ex-presidente da Câmara de Aveiro, não acreditava que era o vizinho
dele que pintava aquelas conchas. Mateus é um apaixonado pela cidade de
Aveiro, como ele lhe chama. «Adoro a ria de Aveiro, é nesta linda cidade
que me inspiro para pintar.» Como Mateus é um excelente comunicador,
utiliza as conchas como forma de levar Aveiro além-fronteiras. «Todos me
procuram as conchas, mas eu não lhes faço publicidade. São as pessoas
que as compram que levam para amigos e esses amigos depois vêm buscar.
Ainda a semana passada mandei umas para o Brasil, outras para a China; enfim, todos me querem as conchas e
eu sinto-me orgulhoso disso.».
Não vendo nas conchas uma forma de enriquecer, Mateus não as põe à venda em qualquer
lado. Tem-nas expostas na Cooperativa de Artesãos da Região de Aveiro
−
A Barrica
− e em duas lojas de Aveiro. «Muitas pessoas me pedem, mas eu
não quero estar a pintar à sôfrego; eu pinto porque gosto muito. Não
consigo, sequer, conceber a ideia de deixar de pintar. Pinto o que quer
que seja: motivos de tourada, flores, quadros, mas o que eu mais adoro são as minhas conchas, essas é que me dão um prazer
que não consigo explicar... Gosto de pintar os moliceiros, as varinas, as tricanas, tudo o que diga respeito à nossa
cidade. Eu vivo as salinas, os pescadores, a ria que eu tanto adoro».
Ninguém se interessa por salvar as tradições
Mateus, o pintor de conchas, tem pena de ninguém se interessar em salvar as tradições
aveirenses. «A Câmara Municipal de Aveiro vai deixar morrer os
costumes, bem como as pessoas que ainda os defendem e que podem fazer
alguma coisa por eles. A cooperativa da qual faço parte, e que defendo, vai fazendo o que pode e às vezes o que não pode. Os artesãos
ajudam, mas a Câmara tem de colaborar. Como não vêem na cooperativa um sítio para tirar lucros, não investem.
Não se apercebem que é através da cultura da cidade que ela se dá a
conhecer; não é só o futebol que traz cá as pessoas. Tudo isso faz a cidade e também o
defendo, mas esquecem-se da parte genuína da cidade.» Falar de ajudas
por parte do Governo, isso então nem se sonha.
Qual o seu sonho?
Quando lhe fizemos a pergunta, foi a primeira vez que
Mateus demorou a responder. Parou a pensar e disse: «Não me falta nada; tenho amigos, a minha família junto de mim...
Só peço saúde para continuar a pintar as minhas conchas, para continuar
a conviver com os meus pincéis e a pintar a minha linda cidade nestas
simples pedrinhas do mar. Isto é a minha riqueza, não quero mais
nada.»
Mateus não tem medo do futuro, guarda um pequeno
desgosto: não deixar ninguém a substituí-lo, mas isso também seria impossível. Mateus o pintor de conchas, é
inigualável, impossível de substituir. Mateus é uma pessoa que não se
esquece nunca. Serenamente diz: «Gosto muito da vida, mas quando fechar os olhos ficam cá as
minhas conchas e sei que as pessoas, quando as virem, vão dizer: "Olha,
esta ainda foi pintada pelo Mateus!"»
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